Há coisas difíceis de explicar, mas não é o caso desta. Tenho uma ligação umbilical a Viseu e ao futebol do distrito, por aí ter crescido, por aí ter jogado uns 10 anos federado, por aí me ter lançado no jornalismo. Longe, muito longe vão os tempos de Sampedrense e Carvalhais, de Taça Coca-Cola, de Jogos da Amizade. Mas estiveram pertíssimo este sábado. E não, não vou dizer que ali é diferente e que só quem passou é que sabe. Não. É aquilo, como noutros lugares também há um rótulo especial para quem por lá passou.
Em trabalho, pude regressar a uma zona mágica, tão peculiares são os seus defeitos, tão enormes são as suas virtudes. Para acompanhar o jogo entre Lusitano de Vildemoínhos e Sporting, pude finalmente respirar na plenitude o antigamente de que passei a adolescência a ouvir falar: do meu avô, que saía de motorizada dos confins do distrito e viajava pelas deficientes nacionais quase duas horas para ver o seu Académico dos tempos áureos, ao meu pai, que por Viseu esteve em parte da etapa escolar e que também alinhava nas romarias ao Fontelo. Não há dados que o comprovem, mas dizia-se que, no começo dos anos 80, única vez que o Académico subiu e se manteve, a seguir aos três grandes, era naquele estádio que mais gente ia à bola. Eu acredito... porque não?
Memórias contadas com a distorção normal e genuína de uma região que viveu muito tempo afastada do futebol de primeira. Tem-no agora, em Tondela, um clube brilhante na forma como cresceu e se afirmou no panorama nacional, que coleciona admiradores (eu sou um deles) e novos adeptos, mas que, obviamente, não tem o suporte de massas que tem um Académico de Viseu, clube mais emblemático da região - mas que vai colecionando falhas que o impedem de chegar aonde há tanto tempo tenta estar.
Sempre foi assim. Mas também sempre foi ao Académico que, pelo menos na formação, mais se quis ganhar, por ser o maior, por ter o mais belo palco (embora nos calhasse sempre o sintético ao lado), por ser o clube 'da cidade' para os outros 'da aldeia', que se agigantavam quando havia duelo.
Viseu tem, sem que seja caso único, claro, esses condimentos internos, que passam despercebidos a quem não vive a realidade de perto. Eu próprio já me tenho desamarrado dessa realidade, desde que saí por razões profissionais. Mas, este sábado, o saudosismo bateu. Percebi-o quando tentava apaixonadamente explicar alguns pormenores ao meu camarada Igor Gonçalves, que foi em reportagem comigo e que transpareceu um lógico «humm, ok».
Mas fiquei a absorver tudo aquilo. Sobretudo no estádio, onde me tive de focar em Marcel Keizer para anotar os seus traços na primeira aparição, embora sem me abstrair de tudo o resto. O tratamento de Champions que a AF Viseu teve com o jogo pode ter soado a exagero a quem é de fora. A mim encheu-me de orgulho, porque sei bem a diferença que foi a organização deste jogo e a que existia regularmente quando relatava jogos na VFM e na Rádio Lafões. Fantástico.
Depois, outros dois pormenores. O speaker do jogo, que entoou praticamente com a mesma intensidade os dois nomes, as duas equipas, os adeptos das duas partes, foi alvo de críticas nas doentias redes sociais. Meus caros, esta a forma de receber no distrito. Clubismos e clubites de parte, o instinto é o de fazer com que quem chega se sinta em casa. Muito mais do que picardias ou rótulo "visitante", quase em sussurro, presente nos palcos onde o futebol se resume ao "ganhar ao outro". E os adeptos, que acorreram em massa ao mini-Jamor e que se expressaram de uma forma genuinamente saudável.
Para muitos, foi o regresso das romarias ao Fontelo, que está com um desenho belíssimo após a remodelação das bancadas. Para mim, um regresso ao passado e a uma zona que abraço com enorme estima e consideração. Uma zona onde, perante todas as tradicionais desavenças e pontos divergentes, precisa de mais momentos como este. Uma zona que não tem milhões nem craques de alto nível, mas que tem uma paixão global por futebol. Uma região onde sempre, com avô, pai ou amigos, a atividade de domingo à tarde era ir a um qualquer jogo de uma qualquer divisão entre duas quaisquer equipas.
E acaba por ser muito disto a magia da taça, a mais bonita prova do futebol português.