A crise em que o FC Porto está mergulhado é de muito difícil resolução. E um dos obstáculos mais complicados resulta da crença ilusória numa ideia feita: a de que no Dragão, como antes nas Antas, se ganhava porque se lutava mais que os outros, com mais raça, mais alma, o tal ADN de que muito se fala. Só que não. Não negando, porque ninguém pode negar, que há essa identidade guerreira entre os portistas, o FC Porto ganhou mais que os outros porque ao longo dos anos, por razões diversas - e umas quantas controversas -, foi conseguindo construir equipas melhores que as dos rivais de Lisboa. Como tal, produziu vitórias que garantiam a (re)construção de novas melhores equipas. Ora, o ciclo virtuoso que permitiu dominar em Portugal e brilhar na Europa com assinalável mérito surge agora como irrepetível, por fragilidades próprias mas também porque o Benfica voltou a ser competitivo há década e meia e o Sporting saiu da letargia no último lustro.
Coloquemos a história recente em fatias de décadas e olhemos os títulos de campeão, que ilustram o que digo: se entre 1994/95 e 2003/04 os dragões somaram sete títulos (sem que o Benfica conseguisse nenhum) e entre 2004/05 e 2013/14 acumularam mais sete (desta vez foi o Sporting a viver uma década de seca), de 2014/15 a 2023/24 só três campeonatos ficaram na Invicta, contra cinco do Benfica e dois do Sporting. Moral da história: a perda da hegemonia portista não começou com Villas-Boas nem manifestou os primeiros sintomas na época atual. Ocorreu, aliás, em plena presidência de Pinto da Costa e numa década em que teve durante sete anos o mesmo técnico, Sérgio Conceição, a quem quase unanimemente se reconhece o contributo para que não tenha sido uma sequência mais frustrante.
Não invalida isto que a época em curso esteja muito abaixo do mínimo exigível, desde logo porque, como é hoje evidente, o plantel é manifestamente insuficiente para a ambição do clube e claramente inferior ao dos rivais. E vale a pena recordar que na época anterior, que já esteve longe de ser um sucesso - o último FC Porto de Conceição só garantiu o terceiro lugar no derradeiro jogo em Braga e acabou a 18 pontos do Sporting - ainda havia no plantel gente como Taremi, Evanilson, Francisco Conceição, Galeno e Pepe, mais um Nico González a todo o tempo. Agora é o que se vê. O lote permite, apenas, um onze razoável, as alternativas não passam de sofríveis, e até os melhores jogadores parecem piores do que são. Para complicar, a atuação no mercado de janeiro é incompreensível, porque às saídas de Nico e Galeno corresponderam as entradas de dois jovens sem utilidade imediata, agravando decisivamente a fragilidade do grupo.
Acresce a isto a troca aparentemente falhada de um treinador que a casa conhecia bem, por outro que toda a gente conhecia mal. Vítor Bruno podia não entusiasmar, mas deixou o clube com uma Supertaça ganha e ambições possíveis em todas as frentes. Martín Anselmi, a despeito de uma comunicação interessante, não consegue dar solidez à equipa (defensivamente está mesmo muito frágil e o problema não é só individual) e insiste numa roupagem tática que deixa desconfortáveis os jogadores. Em resumo, as individualidades estão longe de outros tempos e a qualidade tática não ilude o problema, antes pelo contrário.
André Villas-Boas e Jorge Costa são inexperientes nas funções, mas têm uma história no jogo que os devia remeter para esta evidência: só a qualidade pode inverter o plano inclinado em que o clube desportivamente se encontra. Se o FC Porto não mostrar mais competência do que agora exibe, desde logo no desempenho de treinador e jogadores, não é na luta nem no esforço que vai encontrar a fórmula do sucesso. Aliás, no recente clássico com o Benfica, os jogadores portistas entraram determinados e, apesar do golo madrugador, repartiram o jogo na primeira parte graças à capacidade para pressionar e recuperar a bola. O problema é que a qualidade do Benfica – individual e coletiva – é hoje bem maior e fatalmente veio ao de cima. Castigar os jogadores com um estágio forçado após um jogo daqueles não é apenas um erro de momento, é a manifestação de uma perceção errada e que pode condicionar o futuro, além do presente.
O futebol português mudou muito nas últimas décadas, com acréscimo de importância para o estudo do jogo, a tática e o treino, além de que o ADN da raça não é, obviamente, exclusivo de nenhum emblema. A atitude, a alma ou a entrega são ótimas para acrescentar à qualidade, à competência, ao talento. Sem estes últimos são uma ilusão, um logro.
P.S.: Morreu o Senhor Aurélio Pereira, pioneiro do scouting, mestre da avaliação de talento, descobridor de Futre, Figo, Nani e Cristiano. As tantas homenagens, de tão diversas origens, são reflexos do muito que nos deixa um homem raro, com níveis de competência e humildade singulares. Era do melhor que o nosso futebol tinha. E tem. E terá, que exemplos destes não morrem nunca.