Estádio do Dragão, segunda parte. Kokcü e Fábio Vieira desentendem-se. O turco olha de forma ameaçadora ao jogador portista e faz um gesto com os dois dedos a apontar para os olhos, como quem diz "Look at me". Fez lembrar a cena mais famosa de um filme que de outro modo cairia no esquecimento, o Captain Phillips, em que a personagem de Barkhad Abdi, um pirata da Somália, invade o barco do capitão Phillips, interpretado por Tom Hanks, e depois de uma discussão, pára, olha o capitão nos olhos e diz
"Hey! Hey! Look at me [enquanto faz aquele gesto com os dois dedos a apontar para os seus olhos]. Look at me...I'm the Captain now."
Foi o que o Benfica fez este ano ao FC Porto. 4-1 na Luz e 4-1 no Dragão. 8-2. Oito a dois no confronto direto. Terminou o jogo, logo após o quarto golo e um arrepio correu o corpo do cronista e de certo muitos benfiquistas. "Agora sim, começamos a ter verdadeiramente noção...Pinto da Costa morreu." E não foi só a vida do controverso, mas incrivelmente vitorioso presidente do FC Porto que se extinguiu. É mesmo a sua era, a sua hegemonia, a sua dinastia. Porque dizer "Isto com o Pinto da Costa nunca teria acontecido" parece exagero, até pensarmos que nunca aconteceu mesmo. Nem nunca esteve perto de acontecer. Durante muitos, muitos, muitos anos o Benfica esteve subjugado ao rival do norte e nunca o conseguiu humilhar. Pelo contrário, quem sofria humilhações era o Benfica. Manitas? Foram três, em 1996, em 2010 e no ano passado. Porto campeão na Luz? Duas vezes, em 2011 e 2022. Aquele golo do Kelvin. O Benfica ir ganhar 0-2 ao Dragão para a Taça de Portugal em 2011 e depois o Porto virar para 1-3 na Luz. Mas agora cada vez mais são coisas do passado, a que os portistas se agarrarão, tal como os benfiquistas muito fizeram durante tanto tempo. Lembram-se da conversa dos "benfiquistas vivem do passado"?
Tanto se falou de complexos. De bloqueios. De medo cénico. Ou de medo, só medo. Dos outros quererem sempre mais. De comerem a relva. Ou até nos comerem. De nos fazerem sofrer como cães. Jogar nas Antas e no Dragão era para o Benfica enfrentar o seu pior pesadelo, o seu maior rival, era ir a Mordor, às profundezas do Inferno. Ali estava Pinto da Costa na tribuna, o Macaco na bancada, o Luís Gonçalves no banco, os suplentes do FC Porto a rodearem o fiscal de linha, o Guarda Abel no balneário, aquele médico do FC Porto dos anos 90 que festejava sempre os golos com os braços no ar, alternando-os, enquanto apontava para o céu (É difícil de descrever o gesto, mas qualquer benfiquista que viveu as deslocações do Benfica às Antas nos anos 90, sabe do que falo), aquelas camisolas da Revigrés, os árbitros sempre intimidados, o Paulinho Santos a dar uma cotovelada e a perguntar "Mas o que é que eu fiz?" e os jogadores do Benfica atarantados a não conseguirem fazer três passes seguidos
Mas entramos noutra era. Acabou. Não existe mais Pinto da Costa. Não existe mais Macaco. Não existe mais nenhuma dessas personagens que nos deram pesadelos e traumas, dignos dos soldados americanos em Vietname. Continua ali o nome Futebol Clube do Porto, continuam a entusiasmar-se mais quando insultam o Benfica do que quando apoiam a sua equipa, continua a ser aquele Estádio do Dragão e os adeptos certamente tentam explicar a estes novos treinadores e jogadores do FC Porto o que é para eles enfrentar o Benfica. Mas já não é a mesma coisa.
Ou pelo menos, este ano já não foi a mesma coisa. As coisas no futebol mudam muito rápido. Ainda o ano passado o Benfica levou lá 5-0, bem sei. Mas o Benfica venceu cinco dos últimos sete jogos com o FC Porto, o clube da cidade invicta só venceu três dos últimos 12 campeonatos e pode estar a haver aqui wishful thinking da minha parte e os azuis irem renascer das cinzas nos próximos tempos e ó se o Benfica tem uma capacidade infindável de ressuscitar rivais feridos! Mas atendendo à situação deles, não me parece. Vejo neles muito do que foi o Vietname do Benfica (ou o início, pelo menos). Uma crise financeira que se torna numa crise desportiva. E uma crise desportiva que já se começa a tornar também numa crise de valores. Exatamente igual ao que aconteceu ao Benfica. Ou a outras hegemonias no futebol, como a do Manchester United por exemplo, também no exato momento em que perdeu a sua figura esmagadora e icónica, Sir Alex Ferguson. E até podem (e certamente irão) recuperar, mas nunca mais será aquele FC Porto de Pinto da Costa. Será outra coisa. Da mesma maneira que o Benfica pós-1994 nunca mais foi o mesmo que o pré-1994. Há eras que terminam e nunca mais voltam
Agora há que olhar para o Sporting. Que empatou com o SC Braga e cedeu a liderança ao Benfica, com todo o impacto psicológico que isso pode ter. Mas o clube de Alvalade é o campeão em título, tem o melhor jogador do campeonato, uma autêntica besta que aterroriza as defesas do campeonato, um calendário teoricamente mais favorável e também está bem lançado para chegar à final da Taça de Portugal. Ao Benfica só resta continuar a pensar jogo a jogo e saber que neste momento tem tudo nas suas mãos, até para repetir um Triplete que fez em 2014. E a nós adeptos, compete-nos apoiar a equipa do mesmo modo que o fizemos de forma esmagadora este sábado no Dragão
Por isso...vai com tudo, meu Benfica! Rumo ao 39! You're the captain now!