* Chefe de Redação
O cemitério de Raiz da Serra tem um morador famoso. Amante do sacrilégio, devoto da boémia, Mané Garrincha tem no depósito de almas - vizinho de Pau Grande - a última morada.
O descanso eterno não tem ares de Jardim do Éden. Há poeira, jazigos abandonados, garrafas de cachaça espalhadas ao deus dará e um silêncio perturbador.
Visitei o túmulo de Mané em 2016. Acompanhei Carlos, coveiro e guardador de vidas, pelos recantos do terreno. Ouvi-lhe os lamentos, os relatos mórbidos de rituais mais profanos do que religiosos, e apontei-lhe um erro imperdoável.
«Carlos, a data do falecimento do Garrincha na lápide está errada.»
O homem sacou do chapéu queimado pelos mil sóis, coçou os oleosos cabelos, afagou o queixo e driblou a responsabilidade.
«Xi, pois é! Ele morreu em 1983, né? Não sei quem gravou 1985. Vou informar o responsável.»
A indigência na preservação da memória do Anjo das Pernas Tortas é um mistério para mim. Encontrei-o esquecido, remetido a um anonimato incompatível com a grandeza de um bicampeão mundial (958 e 1962), figura maior de um Botafogo que se julgava perdido.
Ao assistir a este renascimento do emblema da Estrela Solitária – nome acertadíssimo, de resto, da biografia de Mané redigida pelo génio de Ruy Castro -, lembro-me instintivamente desse dia passado na região serrana do Rio.
Artur Jorge, o portuguesíssimo Artur Jorge, está perto de devolver o Botafogo, do eterno Garrincha, ao firmamento dos imortais, o Olimpo do futebol brasileiro e sul-americano.
Se Artur, o Artur nado e criado em Braga, derrotar o Atlético Mineiro na final da Libertadores e não falhar nos dois últimos jogos do Brasileirão (visita ao Internacional e receção ao São Paulo), terá a bênção de Mané Garrincha e de todo o mundo do Fogão.
Poucos dias antes de me aventurar pelas estradas que conduzem a imponência selvagem do Rio à modéstia rural de Pau Grande, rumei em peregrinação ao muro do Botafogo.
Lugar sagrado para os botafoguenses, na zona de General Severiano, eleva ao éter as gravuras de Nilton Santos, Didi, Jefferson, Loco Abreu, Jairzinho e demais monstros sagrados do clube.
Escutei da boca de João Cláudio, taxista e amigo do peito, indefetível do Flamengo e de Zico, estórias e conquistas do passado. Todas a preto e branco, como se fossem encenadas pelo cinema mudo, tempos que ameaçavam não voltar.
Falou-me também de Afonsinho, Paulo César Caju e Nei Conceição, os Barba, Cabelo e Bigode. O trio subversivo afrontou o pestilento período da ditadura militar, desenhou a desobediência civil, o anseio pela democracia, cuspiu na sanha persecutória de coronéis de chicote na mão e ódio no olhar.
Triunfou.
É esta a responsabilidade de Artur Jorge. Devolver a felicidade a esta gente, este povo reverente dos feitos de Mané Garrincha, de Jairzinho, de todas estas figuras folclóricas, nobres e grandiosas.
Boa sorte, Artur Jorge.
De Pau Grande a Braga, «a torcida leva um imperecível estandarte de paixão» *.
* frase do escritor Nélson Rodrigues, o mais indefetível dos adeptos do Fluminense