O tempo passa e a época aproxima-se do fim. Alguns campeonatos já acabaram, outros estão prestes a recomeçar e há outros que foram criados durante este tempo de pandemia para enfrentar alguns problemas existentes já antes do aparecimento do coronavírus. As críticas ao formato do Campeonato de Portugal eram recorrentes e esta semana a FPF avançou com um novo modelo para as divisões inferiores do futebol nacional, que vai trazer mais uma competição ao nosso panorama, a 3.ª Liga.
A ideia não é propriamente nova, mas com esta alteração há várias mudanças que importa analisar. Se a reunião entre os dirigentes do futebol nacional levou à decisão da criação da 3.ª Liga e da reformulação do Campeonato de Portugal, o zerozero decidiu ir falar com quem anda no terreno e conhece bem todas estas realidades.
Toni Pereira, também conhecido como o «Mourinho dos pobres», não hesitou em falar com o nosso jornal sobre as alterações previstas para as próximas temporadas. A mudança no Campeonato de Portugal é bem-vinda pelo facto de dar mérito a quem vence, mas o experiente técnico de 63 anos não se ilude com as mudanças, que diz serem poucas e apenas servirem para iludir os menos atentos. Afinal, o que se pode esperar? O que mudaria? Será possível avançar com algumas das medidas propostas? Foi isso que fomos descobrir.
zerozero (ZZ): O mister está a par das mudanças nas competições nacionais já a partir da próxima época? Para já, qual é a sua opinião? Vai trazer coisas boas?
Toni Pereira: Para já parece-me benéfico só por uma coisa: quem chega ao fim e ganha a sua série sobe de divisão. Não há play-offs. Já subi com e sem play-off. Com play-off pode haver um jogo mau e a época vai pela água abaixo, assim há mais possibilidade de recuperar porque quem ganhar a Série pode ter um jogo mau, mas tem os outros para recuperar. Quem ganhar, quem for o mais regular, sobe de divisão. Nesse aspeto parece-me perfeito.
ZZ: E a criação da 3.ª Liga? Parece-lhe positiva?
Toni Pereira: Pode ser uma coisa boa e pode ser uma coisa má. Os mais antigos, como é o meu caso, têm essa experiência. É a mesma coisa, os nomes é que são outros. Já houve Primeira, Segunda e Terceira, depois com a Segunda dividida em três zonas e os primeiros subiam à primeira divisão, existindo quatro séries na terceira divisão. Já houve 2.ª divisão B e a terceira, depois acabou e chamou-se CNS. Depois acabou o CNS e chamou-se Campeonato de Portugal. Nesse aspeto não me parece que haja grande vantagem, nem desvantagem. Já vivi isso há 30 anos. Voltou ao mesmo, o que me parece importante é que quem ganha a série acaba por ganhar o campeonato e sobe de divisão. Isso é que é importante. As pessoas dizem quem este campeonato é para aproximar. Já se tentou isso. Quando subi com o Mafra era assim que isso funcionava, eram os seis primeiros, os outros faziam um campeonato entre eles... era a mesma coisa. Acho que não traz nada de novo ao futebol.
ZZ: Mas não acha que esta espécie de competição intermédia entre a Segunda Liga e o Campeonato de Portugal vai trazer maior profissionalismo entre os campeonato já profissionais e os amadores?
Toni Pereira: O amadorismo no Campeonato de Portugal é uma mentira das grandes, o profissionalismo já existia, mas estava encoberto. Tirando uma ou duas equipas que treinavam à noite, o resto treinava de manhã e eram todos profissionais. Não recebiam como profissionais, mas treinavam como profissionais, com pequenos almoços, tudo o inerente ao profissionalismo. Havia uma ou duas que não, mas isso há sempre diferenças, na Primeira Liga o Benfica, o FC Porto e o Sporting também têm ordenados maiores e depois há equipas com ordenados mais pequenos. Aqui era a mesma coisa, havia duas ou três equipas com um investidor melhor e que investiam mais alguma coisa e os outros tinham o orçamento mais pequeno. Acaba por ser a mesma coisa e o profissionalismo estava encoberto, não estava registado. Era tudo igual. Agora as coisas têm de ser descobertas e isso é benéfico para o jogador.
ZZ: Uma das medidas da 3.ª Liga é colocar um teto salarial mínimo idêntico ao salário mínimo nacional, 635 euros. Parece-lhe que os clubes vão conseguir pagar salários destes?
Toni Pereira: Não vão ter condições. É tudo outra mentira, vai ser mais uma vigarice. As pessoas não gostam de ouvir isso, mas essa é que é a verdade. Os clubes não vão ter hipóteses de pagar o salário mínimo - 635 euros. A maioria dos clubes vão pagar entre os 500 e 600 euros, depois há alguns que ganham entre os 700 e os 900 euros, um ou dois que ganha mil euros. A maioria dos jogadores ganha 300 ou 350 euros, os atletas que vêm dos juniores. Essa é a grande fatia. Se eles metem o ordenado mínimo nos 635 euros é mais uma vigarice, ninguém pode cumprir. A 3.ª Liga não tem dinheiro de lado nenhum, a Primeira e a Segunda Ligas têm direitos televisivos, mas este campeonato não tem nada, vive do investidor que entretanto chega a dezembro e não paga mais nada a ninguém. É mais uma mentira que vai surgir.
ZZ: Como assim?
Toni Pereira: O jogador vai assinar um contrato a dizer que ganha 635 euros e depois assina outro a dizer que afinal não ganha, para o caso de haver uma rescisão não terem de pagar o excedente. Não vai ser nada verdadeiro enquanto não arranjarem uma situação em que a 3.ª Liga tenha rendimentos de algum lado, ali não há rendimentos de lado nenhum, até há dificuldade em pagar ao policiamento. Aqui é a boa vontade de duas ou três pessoas que trabalham dia e noite. Ninguém quer ver isso, mas há muitos anos que é assim. Este é o futebol pobre e depois há o futebol dos ricos. Ninguém se preocupa com nada e depois quando há estes problemas, há estas situações para se ajudarem uns aos outros e aí têm sido inexcedíveis. Isto vai continuar a ser a mesma mentira. Mas há algum clube da nossa divisão que possa apresentar um orçamento antecipadamente? Que saiba onde vai buscar o dinheiro? Que vive com 5 euros de 10 placares que tem lá de publicidade? Há algum clube que possa fazer isso? Não há, a não ser que haja um investidor e o investidor quando a equipa não ganha vai embora e a equipa fica pendurada, cheia de dívidas. Vai ser tudo igual, não tenho dúvidas nenhumas.
ZZ: Se o mister tivesse poder de decisão, o que mudaria?
Toni Pereira: Uma das coisas que não faria era criar tantas divisões. E lá em cima, para não serem sempre os mesmos, deviam descer três da Primeira Liga e três da Segunda Liga, tem de se mexer em alguma coisa, não há que ter medo de mexer lá em cima. É preciso mexer para as coisas se movimentarem, para haver mais motivação. Descem sempre dois e é sempre a mesma coisa. Não querem, porque não interessa senão o dinheiro não chega, mas façam a Segunda Liga em dois, façam a Primeira Liga, a Segunda Liga em dois e sobem os dois primeiros, depois fazem três séries na 3.ª Liga, subindo os três primeiros de cada série. Lá em cima sobem dois e descem dois, parece-me que a competitividade não é grande, não é preciso fazer grande coisa porque só descem dois. São quase sempre as mesmas equipas. Se houver mais um lugar de descida se calhar a competitivade vai aumentar. Não tenho dúvidas, já passei por isto tudo.
Nota: Ainda esta sexta-feira, não perca a opinião de Rui Quinta sobre as mudanças dos quadros competitivos