Futebolista, que tão perto está do tudo e do nada, que tão rapidamente escala degraus como cai a pique, que tão dificilmente distingue o acessível do utópico. Milhões tentam, milhares tentam, centenas chegam ao estrelato. Mas poucos conseguem, ainda no decorrer da carreira, alcançar uma visão distanciada que lhes permita ter noção real do que os rodeia. Andreas Samaris, jogador do Rio Ave que connosco conversou durante cerca de uma hora, já depois de conhecer as instalações do zerozero e de transmitir um enorme conhecimento sobre o jogo, parece ser um desses casos.
A conversa que se segue é exemplificativa. Também é exemplar, pela forma como o internacional grego, de 33 anos, se abriu em relação à sua profissão. Que é, antes disso, uma paixão, mas que o próprio tem tentado gerir para o ser de forma saudável.
Em carne e osso, transparente, com um humor muito próprio e discreto, com uma presença impactante, Samaris proporcionou uma conversa com poucos clichés e muitos condimentos de interesse. Ao invés de lhe procurarmos uma frase polémica sobre o passado ou sobre algo que já lhe foge de mão, optámos por lhe estender a passadeira para uma conversa mais franca e profunda. Samaris, como se comprova na entrevista (escrita e em vídeo, à vontade do freguês e sem custos), acedeu de bom grado, de forma crescente e entusiasmada.«Rio Ave foi melhor do que o que eu esperava»
zerozero: Como se deu este regresso a Portugal?
Andreas Samaris: Houve uma aproximação das pessoas do Rio Ave ao meu empresário. A partir daí, eu comecei a pensar a situação. Todas as pessoas se aproximaram de uma forma exemplar, gostei muito do projeto que me foi apresentado pelo diretor, tive também uma conversa com o Luís Freire. Não tive muito para pensar, porque gostei muito do que ouvi. A minha única dificuldade era a minha família e o facto de eles não poderem vir comigo. Tive uma conversa com eles e, a partir daí, foi fácil decidir.
ZZ: Na tua apresentação, disseste que demoraste 10 dias para a decisão. Houve algum clique nas conversas ou foi só uma questão de amadurecer a ideia?
AS: Eu acho que foi mais uma questão de a minha família me dar as garantias de que ficava bem, porque eles estão na Grécia. No ano passado, foi a mesma coisa quando estive nos Países Baixos, apesar de o tempo ter sido mais curto. A partir do momento em que me disseram que eu podia ficar descansado e fazer o meu trabalho, já não tinha nada para pensar. Agora, que a época está a acabar, posso dizer que, felizmente, tudo correu bem.
ZZ: Não foi uma decisão por dinheiro, mas sim afetiva, de ligação ao país, certo? Tinha estado num dos maiores clubes de Portugal até há apenas um ano antes e, depois, tinha pela frente a hipótese de um clube que subiu de divisão, apesar da solidez do Rio Ave.
AS: Não considero o Rio Ave um clube que tinha acabado de subir, apesar de ser um facto. Mas, nos anos em que tinha estado em Portugal, o Rio Ave foi sempre, aos meus olhos, um clube a lutar pela Europa. Mesmo no ano que desceu, esteve muito perto de eliminar o Milan nas competições europeias. Por isso, não pensei «é um clube que tinha subido da segunda Liga», mas sim «é o Rio Ave», toda a gente sabe que tipo de clube é no panorama nacional. Além disso, a forma como sempre fui tratado pelos portugueses, a relação com o país e o conforto que aqui tenho, foram mais razões para eu voltar.
ZZ: Completamente satisfeito por essa decisão?
AS: Óbvio, óbvio. Sinto-me muito feliz e foi melhor do que o que eu esperava.
ZZ: Que clube foi este que encontraste?
AS: A minha transição foi no ano passado, quando fui para os Países Baixos e não encontrei as condições a que estava habituado nos oito anos anteriores, no Olympiacos e Benfica. No Rio Ave, encontrei o que esperava em termos de estrutura, as pessoas fazem um trabalho excelente para extrair o máximo das instalações. Obviamente, as pessoas é que tiram o máximo do que dispõem. Isto vai fazer com que os jogadores possam ter o máximo rendimento. Não tenho visto muito os clubes da Segunda Liga, mas o Rio Ave está bem acima disso.
ZZ: Daí ter subido tão rápido.
AS: Sim, é muito mais um clube de Primeira. Os meus colegas e treinadores explicam que não foi fácil para eles, precisamente por não ser um contexto a que não estavam habituados. Eles mantiveram os princípios do Rio Ave e passam-no para o campo. É o mais importante: continuar fiel aos seus princípios e tradição.
ZZ: No início da época, parecia haver um claro esforço de moderar as expectativas e passar essa mensagem aos adeptos. Porém, nesta altura, a manutenção está garantida e até já se espreitou a Europa. Para vocês, a mensagem também foi moderada ou mais ambiciosa?
AS: Não estamos na luta pela manutenção e acho que estamos a lutar pela Europa. Estamos a seis pontos do 6.º lugar, que parece que vai dar acesso às competições europeias. Em relação à mensagem, apesar de a equipa não ter começado bem e de ter andado lá em baixo, sentimos sempre a confiança de todas as pessoas do Rio Ave. A partir daí, funcionámos sempre com metas. Atingimos as metas da manutenção mais rápido e isso deu-nos a liberdade de hoje falar que estamos a seis pontos do 6.º lugar.
ZZ: Há sempre a tendência para se ser mais cauteloso e não vais tanto por aí. Vens de uma realidade em que só o primeiro lugar e já percebi que não és nada de mergulhar nessas cautelas, mas sim de puxar o clube para cima.
AS: Sim. Isso foi construído ao longo destes oito anos, em que estive em clubes que só querem ganhar e ser campeões. A mentalidade surgiu aí, quando vives num clube que só quer ganhar. A realidade do Rio Ave não é estranha para mim, porque os clubes que tive antes do Olympiacos também eram assim. No início da carreira, não tinha a experiência que tenho agora e esta mentalidade torna-me mais resiliente.
ZZ: O calendário inicial do Rio Ave era complicado, a defrontar o top-5 da época passada nas primeiras nove jornadas. Qual foi o clique para se pensar «não, a luta não vai ser em baixo, mas mais acima»?
AS: Sabíamos que tínhamos esse calendário. Na segunda volta, depois de um jogo menos bem conseguido em Vizela, a equipa sentiu que tinha de ser capaz de dar a volta e aquilo não voltar a acontecer. Fizemos bons jogos, mesmo com os grandes só perdemos em pormenores, e ganhámos em casa.
ZZ: És já um dos líderes do Rio Ave?
AS: [risos] Isso tens de perguntar aos meus colegas ou ao meu treinador.
ZZ: Mas és muito procurado pelos mais jovens para se aconselharem?
AS: Sim, há ambição. Todos querem jogar e não é só irem perguntar ao Samaris, ao Vítor Gomes, ao Ukra. São conversas que vão surgindo no dia a dia, que vão ajudando os mais novos. Neste aspeto, o Rio Ave está bem servido para o futuro, porque há talento e ambição, jogadores capazes de chegar mais longe.
ZZ: Estão a aparecer alguns jovens na equipa, como o Costinha ou o Fábio Ronaldo.
AS: E vão aparecer mais, porque o Rio Ave tem essa mentalidade, quer lançar mais jogadores e tem as ferramentas para isso. É uma questão de tempo até chegarem a um nível mais alto. O mais difícil no futebol é a mentalidade, mas, graças a Deus, no nosso grupo as mentalidades dos mais jovens são as certas. Acho que o Rio Ave está em boas mãos para o futuro, com os ativos que têm.
ZZ: Dos que já jogam na equipa principal, qual o que tem mais capacidade para chegar lá acima mais rapidamente?
AS: Para mim, os dois [Costinha e Fábio Ronaldo]. Em termos de jogo, o mais experiente é o Costinha, mas o Fábio vai a caminho e está perto. E há outros que vêm já a seguir...
ZZ: Quem?
AS: O Bruno Ventura. O Lomboto também, é um médio com boas capacidades e que pode subir no futuro e assumir a posição. Outros da equipa de sub-23, que treinam habitualmente e que podem subir à equipa principal.
ZZ: Têm bons professores para isso.
AS: [risos] Tens de lhes perguntar a eles...
«Portugal está a exportar jogadores melhor do que ninguém»
ZZ: Portugal está "condenado" a ser um país de formação e um país exportador. É inevitável?
AS: É óbvio. Isso tem a ver um bocadinho com o país, porque um país com 10 ou 11 milhões de habitantes vai ser engolido por um maior, com mais população ou com um produto com o qual não dá para competir. O caminho, a meu ver, só pode ser este, o de exportar para esses países. Só os três grandes podem ser comparação com os clubes desses países, no resto não há comparação. Portugal está a fazer isso melhor do que ninguém. Venho de um país com a mesma população, mas que não está nada perto. Pode ter estado em relação aos clubes, mas não em relação a exportar jogadores.
ZZ: Porquê? Portugal percebeu mais rapidamente esse caminho?
AS: Porque nós não aproveitámos a conquista do Euro 2004. Não aproveitámos em nada. Continuamos a ser um país que não lança jogadores gregos para poder ajudar nesse caminho. Hoje em dia, o jogador português é considerado, na Europa, um bom jogador, com bons princípios de jogo e taticamente evoluído. Isso é muito importante, porque aí tu vais para fora e não começas do zero, já levas uma boa base. Vejo muitos jogadores portugueses a destacarem-se nestas Ligas e, neste momento, os clubes portugueses não devem sair deste caminho. É a única maneira de desenvolver os clubes, investindo ainda mais nas instalações e formação.
ZZ: O problema é apenas gerir a frustração dos adeptos, que todos os anos veem as principais estrelas saírem e a equipa ter de ser reconstruída.
AS: Infelizmente, é assim. Hoje em dia, nestes países que não têm o dinheiro de uma Premier League, que é vista fora da Europa, têm de ser vendidos os jogadores aos mercados maiores.
ZZ: Em 2014, quando chegaste a Portugal, já era assim. Como vês a evolução desde aí? Está melhor, pior, diferente?
AS: Há pessoas que podem dizer que exportar mais jogadores é pior. Eu acho que está melhor. Os clubes portugueses estão no topo mundial das vendas de jogadores, o que é sinal que se está a trabalhar bem. Já venderam tantos jogadores que podem voltar a investir nas formações. Isto leva a uma consistência de se vender cada vez mais para fora. Está muito melhor do que há nove anos. Não tenho ainda o curso de diretor desportivo para saber quais são os próximos passos...
ZZ: «Ainda». Disseste «ainda».
AS: [risos] Ainda.
«Tivemos uma conversa muito longa, [Jorge Jesus] explicou-me os motivos»
Andreas Samaris
9 títulos oficiais
AS: Sim. É óbvio. A minha saída não mudou nada do que eu sentia. Foi uma questão do treinador, que é totalmente respeitada por mim. O treinador optou por outro jogador e cada treinador assume a equipa para tomar decisões e temos de respeitar.
ZZ: Conversou contigo [Jorge Jesus]?
AS: Sim, sim. Tivemos uma conversa muito longa, ele explicou-me os motivos. Podemos concordar ou não, mas, no fim, temos de respeitar. Está tudo bem. O clube sempre foi 100 por cento comigo. Fui sincero com eles, eles também foram comigo. Não mudou nada.
ZZ: Como achas que ficaste visto pelos adeptos? Este ano vimos, no estádio da Luz, um enorme aplauso para ti, que deve ter mexido contigo.
AS: Pffff... De certeza que foi o jogo mais difícil desta época. Recebi muito apoio e carinho, isso encheu-me de orgulho. É a imagem do que eu signifiquei para eles. Não tenho 100 por cento de perceção do que todos pensam de mim, mas essa foi uma prova que me encheu de orgulho.
«Pizzas e hambúrgueres é para esquecer. Já não lhes toco»
ZZ: Estás numa realidade de comprometimento total com o futebol, o que é notável para um jogador com 33 anos e que já ganhou tanto. Como é o teu dia a dia?
AS: Como já sabem, a minha família não está aqui, mas tenho uma empregada, que já trabalhava para a nossa família. Já a tinha levado para a Holanda para me ajudar a cuidar da nutrição, para seguir o plano como deve ser. Quando passas os 30 anos, já tudo conta, seja o sono, a nutrição, a forma como trabalhas no dia a dia...
ZZ: O que é que gostavas de comer e que agora já não comes?
AS: Nem é que gostava... O que é que era mais fácil? Ok, pizzas e hambúrgueres é para esquecer. Já não lhes toco. Este ano, devo ter comido uma ou duas vezes. Estou totalmente dedicado ao meu desporto. Como costumo dizer, não sou jogador só pelas cinco ou seis horas que vou ao campo para treinar, ou as duas horas do jogo. Somos profissionais 24 horas por dia e temos de cuidar de tudo para conseguirmos o máximo de rendimento possível.
ZZ: E és 100 por cento rigoroso?
AS: Sim, sou rigoroso, mas também preciso das folgas. E aí também preciso de ser rigoroso. Como, no dia a dia, cumpres tudo o que tens de cumprir, também na folga tens de a aproveitar. Não podes falar de futebol, não vês televisão, vai passear, vai à praia, tira o cérebro do futebol.
ZZ: Mas tu gostas de futebol. Em off, a conversa que aqui tivemos antes mostrava que tu conhecias bem os golos icónicos do futebol e onde estavas quando eles aconteceram.
AS: Sim. Até aos meus 30 anos, eu acompanhava tudo. Tenho uma paixão por videojogos no geral, tudo ligado ao futebol. A partir daí, fartei-me um bocado, pois já me afetava de uma maneira menos positiva no meu trabalho.
ZZ: Porquê? O futebol relacionado contigo ou o futebol em geral?
AS: No geral. Ultimamente, tenho acompanhado outros desportos, porque senti que era um pouco demais. Estava muito ligado a táticas, jogo, treinos, estava a analisar muito futebol na minha cabeça. Cheguei a um ponto que não consigo ver um jogo tranquilo, como vocês ficam, a beber uma cerveja, comer uma pizza e relaxar a ver um jogo. Para mim, não é assim. Eu vou ter de ver tudo, vou ter de analisar cada jogador, não consigo ficar tranquilo. [risos]
ZZ: Por isso é que, nas folgas, tu desligas.
AS: É, desligo e ligo mais ao basquetebol, à NBA, que temos aí um grego ao mais alto nível.
ZZ: Tendo em conta esse rigor que tens contigo mesmo, por quantos mais anos te vamos ver a jogar futebol?
AS: Ah, isso não sei, depende da oportunidade. Há muita coisa que está a entrar no futebol que ajuda na consistência do jogador, na saúde e bem-estar do jogador, que não havia antigamente e que faz com que dure mais. Fisicamente, não tenho nenhum problema em relação ao cardio-vascular, mas o meu problema é mais a oportunidade. Quero conhecer outras realidades, mas tem de ser um projeto em que possa ajudar e sentir-me importante. Não quero apenas que vejam o meu currículo e me metam para lá.
ZZ: Tens de sentir ambição no projeto.
AS: Sim, e também que vou lá chegar e ter coisas para poder ajudar em campo. Podemos ajudar de várias maneiras, mas não penso nisso, ainda penso como jogador de futebol.
ZZ: O teu contrato acaba no verão. Continuar é uma possibilidade?
AS: Não tem nada a ver com o Rio Ave, mas com a minha visão de conhecer outras realidades. Não tenho grande pressa, tenho paciência e posso esperar para ver o que vai surgir.
ZZ: Depreendo então que estás mais interessado em conhecer outras realidades. É isso?
AS: Gostei de conhecer a Holanda, por exemplo. Voltei a Portugal pelo que falámos, o projeto apresentado foi bom e senti que podia ajudar. O meu trabalho feito foi bom, pelo feedback que tive. Ainda não tenho a cabeça 100 por cento limpa para pensar no futuro, porque agora tenho saudades dos filhos e não vejo a hora de voltar à Grécia no verão, e logo se vê. Mas a minha visão é mais para conhecer outras realidades.
ZZ: E depois, quando a carreira acabar, o que é que vem aí? Um Samaris de fato e gravata, como treinador?
AS: Fato e gravata? É muito pesado! [risos] Isto já é o mais formal que eu posso fazer [camisa]. Não sei, tem-me passado muita coisa pela cabeça. Agora estou a tirar um curso de transição de carreira, que a UEFA proporciona, só para conhecer o que há para além da carreira de futebolista no mundo do futebol. Explicam quais as funções que existem e quais as ferramentas que deves ter para cada uma, tal como as características que encaixam em cada uma. Ainda não estou 100 por cento virado para uma função, vamos ver, mas não estou com muita pressa.
ZZ: Dirias que não é a última vez que te vemos em Portugal ligado ao futebol.
AS: Sim, diria que sim. No meu país... não queria trabalhar lá.
ZZ: O que é mais atrativo em Portugal? Já experimentaste o sul, agora no norte pode fazer mais vento [risos].
AS: A diferença entre Grécia e Portugal é que, aqui, ainda há conversa sobre futebol e tática. Não é só sobre arbitragens e bastidores. Há um ligeiro respeito em relação ao desporto. No meu país, posso estar enganado, mas creio que não existe.
No final da entrevista, Samaris acedeu ao desafio do zerozero e participou num quizz de cinco perguntas. Competitividade e boa disposição não faltaram: