O momento é especial. Aos 28 anos, Ryan Gauld entrou, finalmente, na órbita da seleção escocesa. O criativo, conhecido em Portugal pela passagem fugaz pelo Sporting e pelo posterior brilharete com a camisola do Farense, chegou ao topo da pirâmide. Mais tarde, porventura, do que se lhe apontava, mas Gauld fez a caminhada nos seus próprios termos e no seu ritmo. Mais vale tarde do que nunca, dirá.
Longe vão os tempos do rótulo, aquela curta expressão, aquele par de meras palavras que podiam nada significar, mas que por vezes tanto peso transportam. O rótulo é pesado, tão pesado que muitos não tiveram a força necessária para o carregar, para gerir a expetativa que aquelas palavras colocam em torno de si.
No caso de Ryan, o rótulo não era um qualquer: o mini-Messi da Escócia. Comparações trazem pressão e expetativas desmedidas, mas então e quando essa comparação é com um dos jogadores mais dominantes e geniais da história da modalidade? Duro, muito duro.
Foi nessa sombra que Ryan Gauld viveu os primeiros anos da carreira, porventura os mais importantes no seu desenvolvimento enquanto atleta. Mas esta não é uma história de what if. A cruz que carregou terá tido o seu peso, mas o pequeno criativo de Aberdeen soube resistir e trilhar o seu caminho, caminho esse que o levou ao topo da montanha na última quinta-feira, com a primeira internacionalização pelo seu país. O topo da montanha que agora o traz, este domingo, de volta a Portugal para quiçá adicionar uma segunda.
Contextos...
Apesar das várias temporadas em Portugal, foi nas duas últimas, em Faro, que Ryan Gauld se encontrou com o seu melhor futebol. O zerozero foi, por isso, conversar com o responsável por ter fornecido a estabilidade e as restantes ferramentas necessárias para o escocês sobressair: Sérgio Vieira.
O técnico de 41 anos não tem um único defeito que seja para apontar a Gauld. Pelo contrário, coloca o escocês num verdadeiro pedestal, mas culpa também os contextos desfavoráveis pelo atraso na afirmação de um grande talento.
«Acho que não foi o rótulo que lhe colocaram, mas as circunstâncias. As circunstâncias do Sporting e dos clubes onde esteve emprestado que, infelizmente, não potencializaram o melhor das caraterísticas de um jogador que, neste momento, jogaria em qualquer um dos grandes e seria uma das opções iniciais», opinou o treinador, que utilizou Gauld em 42 partidas, sendo o quarto técnico que mais usou o escocês na carreira.
É notório o impacto que o médio ofensivo deixou no técnico, que se desfez em elogios: «É o tipo de jogador com que eu desejaria sempre poder trabalhar e qualquer treinador gostaria de trabalhar. Como ser humano, é fantástico. Vem de famílias humildes, trabalhadoras. Subiu a pulso e com muito trabalho na carreira, desde o Dundee United até chegar ao topo da carreira, com a chamada à seleção.»
Há até espaço para uma pequena comparação com... Cristiano Ronaldo. «Se virmos o percurso da carreira dele, foi sempre em ascensão, embora em alguns momentos nem sempre dependeu dele, mas dos contextos envolventes. Quando estabilizou, não perdeu tempo e mostrou o que é como homem e como atleta. Acho que mais profundo do que jogador é a forma como é como atleta, a forma como se cuida. Quando falámos do Cristiano Ronaldo e da forma como é um atleta dentro e fora do campo, o Ryan Gauld é uma espécie de Cristiano a este nível. Quem trabalha com ele sabe que é focado nessa parte atlética e humana. Acho que ser um jogador de topo acaba por ser uma consequência natural», disse.
Inteligência e maturidade
Apelámos às memórias de Faro, embora já uma mão cheia de anos tenham passado. Por detrás daquela canhota capaz de fazer valer o dinheiro do bilhete, Sérgio Vieira descreveu-nos um jovem altamente maturo e muito inteligente.
«O Ryan Gauld que encontrei é o que provavelmente permanece até hoje. Já tinha uma maturidade muito grande em termos intelectuais e humanos e isso permitia extrair o máximo de cada momento de treino e aprendizagem. Já tinha um conhecimento tático muito interessante e estava numa fase de transformação a nível físico, apesar da baixa estatura, para ser extremamente resistente, forte e agressivo nos duelos aéreos. Sentimos esse processo a acontecer», recordou o treinador.
A primeira época desse Farense trouxe sucesso, com a subida à I Liga. No coletivo algarvio, sobressaía o talento individual de Gauld. «Na primeira época na II Liga, quando subimos, ele apanha um contexto de estabilidade e tudo o que precisava, o amadurecimento tático, o crescimento físico, a confiança. Tudo o que ele precisava acabou por aparecer nessa época. Toda a estabilidade na forma de jogar, a qualidade que tínhamos e que passava muito por ele. Era o jogador mais influente, mais desequilibrador e com potencial maior para chegar a clubes de topo mundial», afirmou Sérgio Vieira.
O treinador português lamentou apenas que as circunstâncias menos favoráveis - o único what if desta história - tenham atrasado o caminho de quem, na sua opinião, nasceu para os grandes palcos: «A convicção que tenho é que as circunstâncias que viveu, em função da idade, nos períodos mais importantes da vida dele não foram circunstâncias que o beneficiassem. Hoje vemos um Sporting extremamente estável para aproveitar todo o talento que vem da formação. O Ryan, naquela fase, apanhou um Sporting muito turbulento, instável e a perder grandes valores. O que lhe aconteceu podia ter acontecido a todos estes jovens que vemos no Sporting, no Benfica ou no FC Porto a aparecer nas principais equipas, se estruturalmente o clube não estivesse estável como está hoje.»
«Neste momento teria um destaque idêntico ao Pedro Gonçalves»
Embora se veja uma carreira em constante crescimento, a jornada de Ryan Gauld podia ser bem mais marcante. Pelo menos é essa a convicção forte de quem viu o escocês no seu melhor e nele identifica um talento capaz de integrar os grandes campeonatos.
«A personalidade dele e o potencial que tinha mereciam ter um desfecho, em relação à chegada ao topo do futebol mundial, mais cedo. A MLS é uma grande liga, está numa grande equipa e tem um destaque enormíssimo, é uma estrela no Vancouver. Mas acredito que isso podia acontecer em Inglaterra, na Premier League, num dos clubes grandes em Portugal, em Espanha ou em França. Em qualquer uma das melhores ligas do Mundo, acredito que o Ryan ia ter esse destaque», contou-nos Sérgio Vieira.
Recuperando uma das frases que iniciaram esta reportagem, na ótica do treinador haveria espaço para que Gauld fosse, hoje em dia, uma figura de proa em qualquer um dos ditos grandes em Portugal. Fazendo a transposição para o Sporting, porta de entrada para o atleta em Portugal, Sérgio Vieira aponta a... Pedro Gonçalves: «Fazendo um bocadinho a comparação do Sporting de onde ele veio com o Sporting atual, acredito que neste momento teria um destaque muito idêntico ao que o Pedro Gonçalves tem. Quando falo em excelente atleta e ser humano, já pressupõe que é um jogador extremamente inteligente e capaz de interpretar várias posições dentro de uma equipa, do meio-campo para a frente. Além de jogar a extremo sobre a direita e sobre a esquerda, na posição '10', num meio-campo a dois como um '8'... É um jogador capaz de interpretar diferentes posições, explosivo, rápido. Quando faço essa comparação com o Pedro Gonçalves, sei do que falo. O Ryan tem caraterísticas muito interessantes para o futebol do Sporting de hoje em dia.»
Sem dúvida de que seria «uma aposta imediata» e «um destaque muito grande» no Sporting atual, Sérgio Vieira reconheceu que a carreira daquele que outrora foi o maestro da sua orquestra podia ter alcançado outras dimensões. O técnico mantém, contudo, a esperança de que ainda possa acontecer. «Acho que acabou por passar um pouco ao lado do topo do futebol em Portugal e também na Europa. Não quer dizer que não o venha a fazer ainda», rematou.
Este domingo, Portugal volta a receber Ryan Gauld, agora num contexto de seleção. O Estádio da Luz acolhe a partida entre portugueses e escoceses, a contar para a Liga das Nações, com o príncipe de Vancouver à espreita de mais uma internacionalização.