«Pesadelo» e «desastre» foram alguns dos adjetivos utilizados pelos jornais desportivos em Itália para descrever o que aconteceu em Bodø, Noruega, na passada quinta-feira. No modesto Aspmyra, o Bodo/Glimt goleou a AS Roma, de José Mourinho, por uns impressionantes e surpreendentes 6x1, em jogo a contar para a jornada 3 do grupo C da Conference League.
«Um resultado expressivo como este será sempre escandaloso tendo em conta a diferença orçamental e o golfo financeiro brutal que existe entre clubes das principais ligas europeias (e a Roma é um dos clubes mais ricos do Mundo) e um clube como o Glimt. Ainda assim, alguns indicadores já deixavam antever de certa forma alguma capacidade para que isto pudesse acontecer. O Glimt já tinha dado boa conta de si frente ao AC Milan [em 2020] e tudo aquilo que vem fazendo ao longo dos últimos meses no futebol norueguês não podia ser ignorado. Não há grande segredo. É uma equipa bem trabalhada, de pendor altamente ofensivo e que nunca tem medo de jogar olhos nos olhos contra qualquer adversário independentemente da dimensão deste», começou por dizer-nos.
Bodo/Glimt x Roma, 6-1:
➡Maior derrota de José Mourinho nas competições europeias
➡1.ª vez que uma equipa orientada por Mourinho sofre 6 golos num jogo
➡Igualada a maior derrota da carreira de Mourinho:
⏺2010 Barcelona x Real Madrid, 5-0
⏺2021 Bodo/Glimt x Roma, 6-1 pic.twitter.com/ABIHGCX72D
— playmakerstats (@playmaker_PT) October 21, 2021
Em 2020, o New York Times publicou um longo artigo sobre o crescimento do Bodo/Glimt que viria, então, a sagrar-se campeão pela primeira vez na história sem o apoio dos adeptos no seu «ano dourado». Uma «história de sucesso construída com estilo e inovação» baseada num pensamento dicotómico em relação ao futebol: «O foco nos resultados provoca imenso stress. O foco na performance é um processo realmente criativo», disse Bjorn Mannsverk, mental coach da equipa, à fonte citada anteriormente.
«Sendo um clube do Norte da Noruega e nos limites do Círculo Polar Ártico a história do clube teria de ser sempre diferente da dos clubes do Sul. Até aos anos 70, por exemplo, os clubes do Norte não podiam sequer competir com os restantes e tinham estruturas competitivas próprias. Por questões desportivas, demográficas e geográficas, o Glimt nunca teve grande expressão e os sucessos que foi alcançando (um par de Taças) foi mais pontual do que consecutivo. É por isso um fenómeno recente, mas fruto de um projeto bem delineado conseguiu em apenas três ou quatro anos virar do avesso a hierarquia futebolística na Noruega. Em 2017 o clube ainda jogava a segunda divisão e hoje é a par do Molde o grande candidato ao título e isto, com um ínfima parte do orçamento dos maiores clubes do país. Aliás, parte esmagadora do orçamento anual do Glimt está destinada para as deslocações já que a quase totalidade dos adversários está no centro e sul do país», acrescentou-nos João Pedro Cordeiro.
A evolução «entusiasmante»
O Glimt lidera a Eliteserien e a sua evolução num curto espaço de tempo tem sido notável, levando a melhor sobre alguns dos crónicos candidatos. Um trabalho rigoroso, realista e, acima de tudo, com visão clara para o futuro.
5 títulos oficiais
Por dentro de um plantel onde reina juventude - a média de idades não chega a 23 anos -, alguns nomes destacam-se pela positiva. Desde logo Erik Botheim, autor de dois golos (e três assistiências) contra os italianos e que, esta época, se tem destacado como o grande artilheiro. Mas não só: «Fredrik Bjorkan e Patrick Berg são claramente os jogadores que estão num patamar mediático e qualitativo acima dos restantes e que nesta altura teriam capacidade para assumir uma equipa de uma das grandes ligas. Acredito que nomes como Alfons Sampsted, Sondre Fet, Hugo Vetlesen, Ola Solbakken ou Erik Botheim também poderão chegar a clubes de boa dimensão num futuro próximo, tal como Victor Boniface dependendo da forma como regressar da lesão grave que o afastou esta temporada dos relvados».
«Acima de tudo é uma equipa que tem uma ideia de jogo corajosa, que procura ser altamente ofensiva independentemente do adversário que enfrentar. Uma equipa que joga bem subida no terreno, que projeta imenso os laterais, que pressiona agressivamente a primeira linha de construção adversária que procura recuperar a bola imediatamente após a perda e fruto disso criar uma grande superioridade numérica em zonas avançadas do terreno. É forte em ataque posicional, com apoios e triangulações constantes, mas especialmente devastadora em transições rápidas. Resumidamente, focam-se em ser ofensivos, corajosos, ter uma grande intensidade e pressionar bem alto no terreno», reforçou.
O «corajoso» Bodo/Glimt é apenas um exemplo que comprova a fantástica evolução do futebol nórdico nos últimos anos, com um trabalho meticuloso a ser realizado desde a formação. Terá sido uma chamada de atenção para os mais desatentos?
«De certa forma, sim, mas precisa de consistência. De pouco vale um clube nórdico vencer a Roma por 6x1, se depois na mesma noite os outros cinco não vencem os seus jogos. Mas são pequenos passos. É um trabalho continuo e em evolução. Nunca saíram tantos jogadores nórdicos para equipas de topo como aconteceu nos últimos mercados de transferências e diria que essa sim é a grande chamada de atenção para a evolução do futebol naquela zona do planeta. Naturalmente isso não tem o mesmo impacto mediático, mas enquanto um resultado de um jogo de futebol pode ser altamente contextual/pontual, isso é o que verdadeiramente reflete a consistência e a qualidade do trabalho que vai sendo feito em países como a Noruega, a Suécia, a Dinamarca, Islândia ou Finlândia», explicou.
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— FK Bodø/Glimt (@Glimt) October 21, 2021
«Basicamente e de forma resumida aquilo que tem acontecido é um fenómeno tripartido. 1) Mudança cultural nos países do norte da Europa que começam a ter outro interesse no futebol tendo aumentado o número de praticantes e aumentado o número de jovens que pretendem realmente ser futebolistas. 2) Globalização e democratização da informação e recursos humanos permitiu que diferentes contextos se misturassem e que a qualidade da formação em países menos evoluídos futebolisticamente aumentasse. No caso dos países nórdicos a importação de técnicos estrangeiros e a implementação de métodos de trabalho e treino internacionais possibilitou a formação de jogadores de perfis bem diferentes do habitual. 3) De certa forma ligada à anterior, a democratização das infraestruturas e evolução tecnológica permitiu que praticamente todos os clubes passassem a estar dotados de condições de treino que não tinham até há pouco tempo. Nomeadamente relvados sintéticos e campos cobertos que permitem fazer frente ao inverno rigoroso e treinar o ano inteiro em ambientes controlados. Mais uma vez, isto permitiu formar jogadores diferentes já que a bola passou a poder estar no chão e não no ar, algo especialmente importante na evolução técnica do jogador norueguês», frisou.
Será que, com este crescimento, resultados destes podem acontecer com maior frequência? Que equipas devemos manter debaixo de olho daqui para a frente? Existem alguns exemplos e o certo é que o futebol nórdico está a deixar marcas visíveis. Para os mais desatentos, uma chamada de atenção: há muita qualidade!
«É sempre cíclico já que depende muito das razias que vão acontecendo nos mercados de transferências, mas clubes como o Midtjylland, o Nordsjaelland ou o Copenhaga na Dinamarca têm alguns dos jovens mais entusiasmantes do futebol nórdico. À sua maneira, clubes como o Silkeborg ou o Kalmar têm muito daquilo que faz o Glimt um clube especial: uma identidade tática bem definida, são equipas de autor e têm vários jovens jogadores capazes de chegar a um patamar mais elevado. Na Islândia, o Breidablik tem uma história muito parecida com a do Glimt e é também um clube que tenta fazer diferente dentro do seu contexto. O Glimt é especial já que é uma equipa que vale pelo coletivo num contexto em que geralmente quem se destacam são as individualidades. Nesse sentido clubes como o Molde, o Malmö ou o Rosenborg (mesmo o Valerenga) merecem ser seguidos já que despontam por lá alguns jogadores que deverão estar ao mais alto nível em pouco tempo. Hammarby e Djurgarden, na Suécia, são clubes com identidade e têm sempre jovens interessantes», finalizou.