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      Entrevista de fim de carreira ao zerozero

      Entrevista de carreira a Nuno Coelho: «O meu joelho direito acabou por me atraiçoar»

      Este é o Ponto Final. Aqui vamos dar espaço ao adeus, vamos pendurar as chuteiras e vasculhar no álbum das recordações de jogadores que marcaram gerações, mas saíram sem que a maioria das pessoas soubesse. Não há parágrafo, sem antes haver um ponto final.

      O nosso convidado tem 35 anos. Tem idade para jogar, mas decidiu pendurar as chuteiras há um ano, ainda com 34, na II Liga. A sua história começou muito cedo. A estreia nos campeonatos profissionais aconteceu com 16 anos. Esteve ligados a dois grandes, mas não fez qualquer jogo na equipa principal de ambos. Jogou dez épocas na I Liga, em seis clubes diferentes. Só teve uma experiência no estrangeiro, apesar de começado e terminado a carreira na zona raiana.

      De quem falamos? A pergunta, antes do Ponto Final.

      zerozero: Com este perfil, adivinhas quem era este jogador? 

      Nuno Coelho: Se calhar não. Acho que ia ser difícil. Essa frase faz-me recordar muitas coisas. Tenho 35 anos e está, praticamente, a fazer 20 desde que foi a minha estreia. Parece que foi ontem. O tempo passa mesmo a voar e, no futebol, muitas vezes, acabamos por perder a noção do tempo. Estamos tão focados no nosso dia-a-dia. As épocas passam rápido. Passam lento quando estão a correr mal e passam rápido quando estão a correr muito bem. A verdade é que já passaram 20 anos, desde a minha estreia. 

      qO meu joelho direito acabou por me atraiçoar e fui obrigado a «pendurar as botas» mais cedo
      Nuno Coelho, ex-futebolista

      zz: 8 de maio de 2022. Chaves 2-2 Estrela da Amadora. Falharam um penálti mesmo a terminar. Achavas que era o teu último jogo?

      NC: Não, não. Nunca pensei que esse seria o meu último jogo. Não esperava que estivéssemos aqui, agora, a fazer uma entrevista do rescaldo da minha carreira. Há um ano, pensava que iria estar a jogar porque, fisicamente, sentia-me muito bem. Estava no auge das minhas capacidades físicas, em termos de maturidade enquanto jogador. O meu joelho direito acabou por me atraiçoar e fui obrigado a «pendurar as botas» mais cedo. Tinha mesmo a convicção que poderia prolongar a minha carreira, até aos 37 ou 38 anos. Nunca tive uma idade-limite. Eu sentia-me bem. Fiz uma época e meia em Chaves a jogar regularmente, e, em outubro de 2021, comecei a ter um problema no joelho que não consegui resolver. Consegui aguentar essa época da subida de divisão e, infelizmente, não deu. Tentei os possíveis e os impossíveis para voltar, mas não consegui. Considero bastante triste acabar uma carreira assim, principalmente ter tido uma carreira que considero bonita, com muitos jogos. Custou e consegui ultrapassar, mas, como é óbvio: custou terminar como terminou. 

      zz: Normalmente, nós vemos a emoção dos jogadores no fim da carreira no relvado. Contigo não houve isso. Pesou de alguma forma ou de forma consciente pensaste que não valia a pena o sacrifício para ser homenageado? Tu terminas a carreira sem saber que vais terminar?

      NC: Quando termina essa época, a subida de divisão com o Chaves, fiz um grande esforço para terminar essa época. Tive uma grande cooperação do meu treinador e da direção, que me permitiram que eu estivesse disponível para ajudar quando fosse preciso e resguardaram-me bastante durante a semana. Eu não me preparei para terminar, porque eu não sabia.

      zz: Para ti, tu ias fazer aquela operação e ias ficar bem…

      NC: Exatamente. Para mim, esses quatro ou cinco meses, onde andei ali a tentar aguentar. Foi um período em que, apesar de quase não treinar, nunca parei para me tratar. Na minha ideia foi: ‘Agora vêm as férias, vou fazer esta cirurgia de limpeza ao joelho e vou ficar bem’. Fiz três meses de reforço muscular, que é muito importante para o tipo de lesão que que eu tenho, e eu pensei que ia ficar bem. Quando vi o processo a ficar cada vez melhor, e apesar de não ter clube - porque, entretanto, tinha chegado a um acordo com o Chaves para rescindir contrato - fui sempre achando que que ia dar. Depois, naquelas semanas em que eu começo a ir novamente ao relvado, as sensações começam a não ser as melhores. Neste momento começou a cair um pouco a ficha e comecei a pensar que, se calhar, não vai dar mesmo. Comecei a pensar em tudo aquilo que já não vais ter: os teus colegas de trabalho diários, a tua rotina diária - que é algo que que eu não tenho a mínima dúvida que é muito complicado para quem deixa de jogar futebol.

      Nuno Coelho
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      zz: Como é que foi essa decisão em casa? 

      NC: Essa decisão acabou por ser tomada internamente. Fui começando a tomá-la. Claro que a minha mulher e os meus amigos diziam sempre: «Calma, não te precipites. Não tomes já uma decisão de ânimo leve. Dá mais algum tempo.» 

      zz: O facto de tu teres feito a operação e, nesse período, já não estavas com rotina da equipa, ajudou a esta decisão?

      NC: O que ajudou foi ter-me preparado, um pouco fora do futebol, para ter um «pós-carreira». 

      zz: O teu amigo Taratini ajuda-te muito nisso, certamente. É um exemplo teu.

      NC: Sim, o Tarantini foi e é uma grande inspiração para muita gente. É um grande amigo que eu tenho e fui seguindo, de certa forma, a ideologia dele. Então, ao longo dos últimos anos, estou ligado ao ramo do imobiliário e da construção. Estes quatro anos em que eu estive fora da minha área de residência, toda essa gestão fazia à distância e dava-me muitas dores de cabeça. Quem é meu amigo sabe. Eu estava constantemente ao telemóvel, porque muitas das coisas passavam por mim. Quando deixei o futebol, fiquei na Póvoa de Varzim e isso ajudou-me. Foi uma grande ajuda para não sentir o vazio de não ter a rotina de acordar de manhã ir para o treino. A minha vida fora do futebol ajudou-me muito a compensar isso. Tive quatro anos fora da Póvoa, sem os meus filhos e sem a minha mulher. Conseguir estar aqueles três meses da recuperação em casa, poder ir buscar os meus filhos à escola… Tudo isso acabou por compensar o abandono. A verdade é que, quando cai a ficha, realmente percebes que acabou mesmo, custa. Lembro-me perfeitamente. Fui amadurecendo a ideia, mas quando fiz o comunicado nas redes sociais, custou-me e chorei, obviamente. Parece que foi mesmo o oficializar. Mesmo que já estivesse há três ou quatro meses sem competir, acaba por ser duro. 

      Nuno Coelho, durante a gravação do Ponto Final @zerozero.pt

      zz: São sentimentos diferentes, mas há de ser a mesma coisa quando uma pessoa diz o «sim» no casamento.

      NC: Sim, sem dúvida. [risos]

      zz: Aquele rapaz que, com 16 anos, se estreou no Covilhã, achava que ia conseguir isto que conseguiu na carreira? 

      NC: Não… O João Cavaleiro, como costumo dizer muitas vezes, «vacinou-me» para a vida. Era um treinador muito exuberante, muito rigoroso e um treinador à antiga, como já não há. Poderemos apanhar um ou outro treinador assim, mas o João Cavaleiro… Eu era um miudinho com 16 anos. O Sporting da Covilhã tinha uma equipa com bastante idade; tinha muitos jogadores com mais de 30 anos e eu apareci ali com 16 aninhos, numa época em que o Covilhã já tinha descido de divisão. Lembro-me perfeitamente disso: o clube estava com muitos problemas financeiros e foram buscar alguns jogadores aos juniores. Tive de fazer uns exames médicos porque eles quiseram inscrever-me e, como eu era de dois escalões abaixo dos seniores, tive de ir fazer exames ao Centro de Medicina Desportiva. Curiosamente, a minha estreia acaba por acontecer no estádio do Varzim, na cidade onde eu resido, agora. A minha mulher está sempre a dizer isso, que eu ia acabar por ir parar à Póvoa de Varzim. 

      zz: Tu começas a jogar futebol quando? Quando é que surge o futebol na tua vida?

      NC: Aos 12 ou 13 anos. Durante toda a minha infância, joguei basquetebol. Nunca joguei futebol porque os meus pais tinham sido jogadores de basquetebol e eram treinadores dos escalões de formação do clube do meu bairro – dos Penedos Altos. Por volta dos meus 13 anos, eu saí do basquetebol, porque, na altura, o basquetebol na Covilhã estava pouco desenvolvido - na escola, tinha todos os meus colegas a terem jogos ao fim-de-semana, ao sábado ou domingo de futebol, todas as semanas tinham competição e o basquetebol fazia um torneio de dois em dois meses. Como tinha algum jeito para jogar futebol, porque em educação física e nos intervalos jogava, os meus amigos, estavam sempre a dizer «vai para o futebol, vai para o futebol». Na altura, o Sporting da Covilhã não tinha camadas jovens. Passado um tempo, fui experimentar os iniciados do Sporting da Covilhã e foi aí que comecei a ir para o futebol. 

      Nuno Coelho tinha 16 anos quando vestiu a camisola do SC Covilhã, pela primeira vez @Arquivo Pessoal Nuno Coelho

      zz: Como médio ou como defesa? 

      NC: Como médio. Eu fui sempre médio, só fui mais defesa central nos últimos cinco ou seis anos. 

      zz: Como eram esses treinos? 

      NC: Foram anos difíceis esses primeiros anos para a formação do clube, devido às poucas condições. Lembro-me que treinávamos em quatro ou cinco estádios à volta da Covilhã. Eram campos pelados porque não havia sintéticos, nessa altura. Eu ia para os treinos na carrinha do clube e, no fim, era o meu pai que que me ia buscar para poder voltar o mais rápido possível para casa, para poder estudar. Acabei por fazer só três anos de formação - os dois anos de iniciados e o primeiro ano de juvenil. No segundo ano de juvenil foi quando comecei a treinar com os seniores. 

      zz: Nos seniores, há algum nível de profissionalismo na segunda B? Tu és campeão nacional nessa altura…

      NC: Eu estreio-me na Segunda Liga, no ano em que nós, em janeiro, praticamente, já tínhamos descido e com sérios problemas financeiros. A minha estreia é contra o Varzim. Lembro-me de outro jogo que me ficou na memória e foi o meu primeiro jogo a titular: quando fomos jogar contra o Vitória FC, no Bonfim. O estádio estava completamente cheio: se eles ganhassem, podiam subir nesse jogo. Joguei com o Bonfim completamente cheio, a titular, algo que nunca vou esquecer porque nunca mais joguei com o Bonfim assim, nem na Primeira Liga. Mas, em relação à pergunta, o Sporting da Covilhã era a equipa mais profissional da zona centro. O normal ali era descia um ano à segunda B e, no ano a seguir, automaticamente subia, pois era a equipa mais forte. Era sempre a equipa mais forte. Era bastante profissional. 

      zz: Para um jovem de 16 ou 17 anos, como é que era o teu dia a dia? 

      NC: No primeiro ano, eu estava no 11º ano e não deixei a escola interferir. Eu ia, normalmente, treinar ao sábado e a um ou outro treino que conseguisse ir durante a semana. Depois, no ano a seguir, fiz uma opção de risco. Eu estava no 12º ano e fiz oito disciplinas no total. Decidi, em conjunto com os meus pais, e arrisquei um pouquinho no futebol. Entretanto, assinei contrato com o Covilhã a ganhar 200 euros por mês. Eu fazia parte do plantel principal. Nunca se pensou que eu ia começar a jogar a época a titular, mas, na altura, a decisão que nós tomamos, para não falhar treinos foi dividir o ano ao meio. Decidimos fazer o 12º ano em dois anos, o que me permitia ir a todos os treinos dos seniores.

      qFui abordado pelo Chelsea de Mourinho. Muitos jornais quiseram fazer entrevistas. Foram à minha escola e aquilo teve uma dimensão muito grande. Toda a gente sabia daquilo. Eu sempre fui um miúdo muito tímido e aquilo incomodou-me um pouco na escola
      Nuno Coelho, ex-futebolista

      zz: A nível escolar, não houve qualquer tipo de problema? 

      NC: Não. Entretanto, começa a aparecer a seleção. Aí é que tudo começa a ficar ainda mais diferente, porque não era normal um miúdo do Sporting da Covilhã ir para a seleção. Surge, essencialmente, pela idade que eu tinha. Não era normal ter um miúdo de 16 anos a ser titular na 2ª divisão B. A questão é que eu não jogava só cinco ou dez minutos, eu estava mesmo em todos os jogos e a jogar a titular durante os 90 minutos. Eu acho que, sinceramente, o que acabou por chamar mais à atenção foi a idade que eu tinha. A partir do momento que tu vais a uma seleção nacional e tu só tens jogadores do Benfica, FC Porto, SC Braga, um ou outro que estava no estrangeiro e aparece ali um miúdo do Covilhã com 16 anos que joga muitos jogos a titular nos seniores. A partir daí, estás sinalizado e foi um massacre completo. [risos]

      zz: Como é que se gere essa fama? 

      NC: Acabou por ser fama mesmo. Já passaram muitos anos, mas lá na Covilhã, onde quer que eu fosse era visto de forma diferente… Na altura, fui abordado pelo Chelsea de Mourinho. Ainda tenho esses vídeos guardados muitos jornais quiseram fazer entrevistas. Foram à minha escola e aquilo teve uma dimensão muito grande. Toda a gente sabia daquilo. Eu sempre fui um miúdo muito tímido e aquilo incomodou-me um pouco na escola. Quando eles quiseram ir à escola filmar-me, foi um pouco embaraçoso, mas eu acabei por começar a lidar naturalmente. Quando fui para o Porto, esse mediatismo continuou.

      zz: Achas que, por exemplo, se fosse agora, com o mediatismo das redes sociais, isso acontecia? 

      NC: Eu acho que, atualmente, é completamente diferente. Com as redes sociais, tens um miúdo que ainda não jogou em lado nenhum e já tem 30 ou 40 mil seguidores no Instagram. Naquela altura, um canal de televisão ir à tua escola fazer uma reportagem sobre ti…? A televisão quis falar com dois ou três amigos que me eram mais próximos, filmaram-me a sair da escola, tudo parecia quase uma novela mexicana. Acho que, agora, acabaria por ser mais normal. 

      zz: Porque é que houve o FC Porto e, por exemplo, não houve o Chelsea?

      NC: Na altura, o presidente do Sporting da Covilhã - o professor José Mendes - era empresário de futebol. Eu estava na terrinha e não conhecia ninguém. Ele, quando pegou no clube, era empresário. Tinha mais de 100 jogadores nas divisões B da zona norte, centro e sul. Ele tinha muitos jogadores e, quando começa a aparecer este mediatismo e começa a aparecer o Benfica, o Sporting, o FC Porto, o Braga, depois aparece o Chelsea, através do Jorge Manuel Mendes - não o Jorge Mendes -, eu e os meus pais ficámos um pouco naquela situação: «E, agora, com quem é que os clubes falam?» Foi ele que fez esse papel de empresário. Ele fez muita força para eu ir para o Porto, e, ainda por cima, ele residia no Porto. Na altura, foi uma grande ajuda para mim, em termos de adaptação porque eu nunca tinha saído da Covilhã e eu fui logo viver sozinho para o Porto. Acabo por escolher um pouco o FC Porto em função disso. Nós achámos que o Chelsea era um passo demasiado grande para mim. A família dele – ele, a mulher e a filha - foram muito importantes para mim, porque foram quase como a minha família no Porto.

      zz: Sabias que ias para a equipa B com a esperança da equipa principal? 

      NC: Eu era júnior de primeiro ano e fui para a equipa B que era onde estavam os melhores juniores: o Bruno Gama, o Ivanildo, o Paulo Machado.

      zz: Chegaste a ser colega do Thiago Silva?

      NC: Quando eu cheguei ao FC Porto B, foi na altura em que ele tinha tido uma doença – ele teve tuberculose. Já não o apanhei na equipa B. Ainda apanhei o Rubens Júnior. No ano a seguir, tivemos alguns brasileiros lá - Luís Fabiano, o Diego, Ibson mas mais por castigo do que do que propriamente por outra coisa [risos].

      zz: Nunca jogaste pelo FC Porto, mas tens a camisola. Foste ao banco nesse jogo? 

      NC: Sim, fui ao banco no último jogo do campeonato no Boavista x FC Porto. O FC Porto já era campeão e foi um jogo em que o que o Adriaanse mudou a equipa toda. Eu fui convocado, chamou o Bruno Gama e o João Pedro, o central - sendo que o Hélder Barbosa já fazia parte do plantel. Fomos ao banco nesse jogo, mas não entrámos e não deu para ser campeão «oficialmente». Era um título para o currículo, mas não deu. Foi um jogo complicado. O Co Adriaanse, no hotel, no dia anterior, já tinha dito quem é que ia entrar:  era o Sokota, que estava a voltar de oito meses de lesão, era o Hélder Barbosa, porque estava a treinar com a equipa A, e era o Paulo Ribeiro - o terceiro guarda-redes -, só que o Hélder entrou ao intervalo e passado dez minutos foi expulso. Aquilo embrulhou tudo e o Paulo Ribeiro já nem se sagrou campeão - nem nesse ano, nem no ano a seguir - Já nem deu para mim, nem para o Gama, nem para o João Pedro. 

      Nuno Coelho entre André Leão e Sonkaya @Arquivo Pessoal Nuno Coelho

      zz: Há alguma tristeza por não teres sido campeão?

      NC: Não, tristeza não. A maior tristeza é que isto já foi há 17 anos. Os tempos eram outros. A realidade em termos de aposta nos jovens… Ainda hoje, o FC Porto não é aquele que aposta mais, tal como há uns tempos o Benfica também não o era. Mas, na minha altura, quando eu estive no FC Porto, era muito difícil jogar na equipa principal. Eu lembro-me que o Paulo Machado jogou um ou dois jogos, o Vieirinha jogou um ou dois jogos. O que jogou mais até foi o Ivanildo, no ano do Co Adriaanse, mas depois também acabou por sair. Era muito fechado para nós, miúdos da formação, conseguir chegar. Hoje em dia, é o oposto. Hoje em dia, eles querem é colocar os miúdos para fazer os 30, 40, 50 milhões - e muito bem, nada contra -, mas era muito difícil. Eu acho que não tem a ver com qualidade. Nós tínhamos todos jogadores com muita qualidade. Nesses dois anos em que estive na equipa, lembro-me perfeitamente que, no primeiro ano, era a equipa do Paulo Machado, o Márcio Sousa, Ivanildo, Bruno Gama, Hélder Barbosa, Vieirinha. Com essa equipa toda, jogámos contra o Sporting que era de Miguel Veloso, Nani, João Moutinho. Todos esses tiveram as suas oportunidades na equipa A e fizeram carreiras internacionais. Nós, no FC Porto, não tivemos e tivemos de ir para o outro lado. Acho que a diferença entre se fazer uma grande carreira internacional ou não, muitas vezes, está na diferença de oportunidade. O Paulo Machado e o Vieirinha que, se calhar, foram os que fizeram melhor carreira, foram para o estrangeiro e por lá ficaram. Nós, se calhar, não tivemos, numa primeira fase, as melhores escolhas e fomos para equipas mais pequenas. A minha principal tristeza é mesmo essa. Eu acho que tinha tido condições para jogar no FC Porto ou para fazer parte do plantel. 

      zz: Nesse período, tens o Mundial…

      NC: Aí, já estou no Portimonense. Sou emprestado ao União de Leiria, porque, entretanto, aconteceu o que aconteceu. Foi algo que nos prejudicou muito a mim e ao Hélder.

      zz: A equipa B do FC Porto acabou.

      NC: Acabou. No nosso primeiro ano de sénior acabou a equipa B e nós tivemos de encontrar alternativas. Na altura, o Domingos [Paciência] tinha ido para o União de Leiria e é aí que eu faço a minha estreia na Primeira Liga.

      zz: A estreia, se não me engano, até é contra o FC Porto.

      NC: Não. Acho que foi contra a Académica. Fomos quatro emprestados ao União de Leiria. Foi uma equipa muito boa do União de Leiria que, nesse ano, acabou em quinto lugar. Foi à Europa e eu tenho muito poucas oportunidades com o Domingos. Joguei muito pouco e, no fim desse ano, tinha o Mundial de sub-20 no Canadá. Na altura, eu e o meu empresário decidimos que era importante jogar para não perder a possibilidade de ir ao Mundial. O treinador falou comigo e disse que queria muito contar comigo, mas que eu tinha de jogar. É aí que surge o convite do Portimonense. Eu fui para Portimão a pensar que só ia ficar seis meses e acabo por ficar dois anos e meio.

      zz: Pensavas que só ficavas seis meses?

      NC: Pensava que só ia ficar seis meses, pois o meu objetivo de ter ido para Portimão era jogar para ir ao Mundial. Já tinha algumas sondagens de equipas da Primeira Liga só que o Portimonense tinha um protocolo com o FC Porto, através do presidente do Portimonense, Fernando Rocha. Ele tinha muitas ligações ao FC Porto e eu acabei por fazer esses seis meses em Portimão - em que jogo e eles gostaram muito de mim -. Todos os anos, o Portimonense tinha direito a pedir três ou quatro jogadores do FC Porto. Acabei por ter de ficar mais dois anos em Portimão, a jogar Segunda Liga. Já tinha a Académica e o Belenenses - clubes da Primeira Liga - que queriam o meu empréstimo. Quando temos um contrato com equipas grandes não mandamos, não é? A verdade é esta: vais para aqui, porque sim e quase não temos direito de escolha. A mim acabou por me acontecer um pouco isso e fui mais dois anos para Portimão jogar Segunda Liga quando tinha mercado de Primeira.

      Nuno Coelho com a seleção de Sub-20, no Mundial de 2007 @Arquivo Pessoal Nuno Coelho

      zz: Tens este Mundial. Havia grandes expectativas em torno de vocês.

      NC: Sim. Expectativas altas, apesar de não termos uma equipa recheada. Tínhamos Paulo Machado, Vierinha. O Hélder Barbosa teve uma lesão grave e não foi, mas já não me recordo o que é que ele teve. Eram nomes fortes da nossa formação e nós tínhamos uma equipa com já com alguma experiência. O Fábio Coentrão, que apesar de ser mais novo, foi. O Rui Patrício, o Pereirinha…. Juntámos ali uma série de jogadores que, apesar de serem mais novos, já tinham muita qualidade e tinham alguma experiência inclusive de equipas de Primeira Liga. Mas não correu bem. Passámos a fase de grupos mesmo no limite e, depois, fomos eliminados pelo Chile. Valeu, essencialmente, pela experiência de estar numa grande competição mundial. Sentir o que é um Mundial, apesar de ser à escala da formação.

      zz: Ficas com pena, olhando a esta distância, que as pessoas ainda olhem para vocês como sendo os «amigos do Zequinha» e os homens que andaram ali a importunar o árbitro e a roubar cartões?

      NC: Sim. Acabámos por ficar um pouco ligados a essa situação. Quando as coisas não correm bem, lembra-se sempre mais das coisas negativas. É perfeitamente normal. Foi um ano difícil para a Federação porque eu lembro-me que, nesse ano, o Campeonato Europeu de sub-21 não correu bem e eles tinham, também, uma super-equipa. Lembro-me perfeitamente disso. Foi um ano difícil para a Federação e, depois, acontecendo essa história com o Zequinha no último jogo, fomos um pouco esmiuçados por essa situação. Não tem desculpa aquilo que ele fez, mas no calor do jogo…

      zz: O próprio Zequinha já falou sobre isso.

      NC: Na altura, como é óbvio, ele não pensou no que estava a fazer. Ele ficou incomodado pela maneira como o Mano foi expulso e teve aquela reação. Eu lembro-me de estar lá e tenho fotografias disso - ter o Coentrão nas costas dele a rir-se, o Zequinha com o cartão do árbitro -…, mas foi complicado. Foi complicado porque, depois, no hotel tivemos de dar a cara perante a administração, os diretores da federação, e pedir desculpa. Quando chegámos a Portugal, fizemos exatamente a mesma coisa. Falo disso muitas vezes: é dos momentos que eu tenho mais saudades, jogar pela seleção. Nós quando começamos a ir dos sub-18 aos sub-19, sub-20 e sub-21 acaba por se tornar uma rotina e, na verdade, não damos o devido valor e não desfrutamos desta camisola como devíamos. A partir do momento em que vamos lá 40 ou 50 vezes, como foi o meu caso, acaba por se tornar normal. 

      zz: Tu nunca sabes efetivamente quando é a última chamada...

      NC: Eu só comecei a sentir isso quando cheguei aos sub-21. Eu ainda fui a esse torneio do sub-23 e, aí, tu começas a dizer «se calhar este estágio é o último a que venho» e, entretanto, depois. ainda vais a mais um e «se calhar este é o último que vem» e aí começa-te a cair um bocadinho a ficha. O campeonato da Europa de sub-19 foi a minha primeira grande competição. Vivi um bocadinho mais do que se calhar, por exemplo, este Mundial que deveria ter vivido. Parecia tudo muito normal. Nós, estando naquelas equipas grandes, é normal irmos e quando tu sentes que estás naquele lote, dificilmente vais sair fora. Acabas por não desfrutar da maneira que queres…. São os estágios da seleção, estamos ali com os nossos colegas das outras equipas, com quem muitas das vezes estamos a jogar contra e estamos picados. ‘Puxando a cassete atrás’, acho que foram momentos que poderia ter aproveitado mais, mas passa muito rápido. Entretanto, já passou e, agora, só se for aos estágios da seleção de veteranos [risos]. Não vou voltar lá, é certo.

      qLembro-me de estar lá e tenho fotografias disso - ter o Coentrão nas costas dele a rir-se, o Zequinha com o cartão do árbitro -…, mas foi complicado
      Nuno Coelho, ex-futebolista

      zz: Mesmo que um dia sejas treinador é completamente diferente. 

      NC: Sim. Se eu pudesse dar algum conselho ao pessoal que está, neste momento, na seleção é que, quando estiverem nesses estágios, aproveitem, mesmo. Eu lembro-me que, quando comecei a ir, tirava fotografias às camisolas, quando ia buscar o nosso saco do equipamento de treino. 

      zz: Tu tens uma camisola de Vilarreal, mas, no nosso registo no zerozero, tu nunca jogaste na Vilarreal. Nem temos essa equipa no teu lote de equipas.

      NC: Estão corretos, porque eu, na verdade, nunca joguei lá. [risos] A história do Vilarreal é engraçada porque acontece, exatamente, ao fim daqueles três anos de Portimão. Aí, eu bati mesmo o pé e disse: «Já chega, vamos dar um novo passo.» É na altura em que eu troco novamente de empresário, que foi o meu o último empresário, e nós tomamos ali uma decisão. Estive dois anos na Segunda Liga, o mercado da Primeira [Liga] acaba por se me fechar um pouco, porque são aquelas tais escolhas que nós estávamos a falar. Eu fico dois anos em Portimão, em que jogo 60 jogos, mas depois parece que já se fica com aquelas dúvidas de ser jogador de Segunda Liga. Então, nós tomámos a decisão: o Vilarreal, a equipa B, tinha subido à Segunda Liga de Espanha. Eu vou para o Vilarreal B, emprestado pelo FC Porto - porque eu ainda tinha contrato com o FC Porto - e fiquei lá, penso eu, dois meses. Eu sentia mesmo que não ia jogar. Falava disso com o meu empresário. Entretanto, na Académica, o Bruno Amaro tem uma lesão muito grave no joelho e ele liga-me a dizer: «Olha, há oportunidade de vires aqui para a Académica, na Primeira Liga! Vens, assinas por dois anos.» Eu nem pensei duas vezes e vim para Coimbra. Estar perto de casa e Primeira Liga, que era o meu desejo. Financeiramente, era muito parecido ao que eu tinha em Espanha. Cheguei a uma quarta-feira e no fim-de-semana estava a jogar a titular. 

      zz: Como é que era o André Villas-Boas?

      NC: André Villas-Boas, para mim, foi o melhor treinador que eu tive na minha carreira. Já sentíamos que havia algo de diferente nele. Eu adorei jogar na Académica. Não posso dizer que foi o clube onde fui mais feliz, mas foi o clube que senti mais. O André era um treinador de grupo. Fazia muitos jantares de equipa. Nós tínhamos muitos portugueses. Estávamos sempre juntos, ou nas casas uns dos outros ou a jantar fora nos restaurantes. Não vivi a noite de Coimbra, porque isso não podíamos fazer [risos], mas tive aquele espírito quase académico e foi um ano fantástico para nós, porque em termos de clube, e com a entrada do André, melhorámos muito e jogámos muito bem. Tínhamos prazer a jogar à bola. O André foi o melhor treinador que eu tive na minha carreira.

      zz: E nunca te quis levar para o FC Porto?

      NC: Nunca me quis levar para o FC Porto. [risos] Nessa época levou o Emídio Rafael.

      zz: Devia ter-te resgatado. 

      NC: Podia, mas não surgiu. Eu só tinha um ano de contrato e é aí que até acabo por ir para o Benfica. 

      Nuno Coelho em ação na Académica @Arquivo Pessoal Nuno Coelho

      zz: Como é que surge essa mudança para o Benfica? Tu és contratado pelo Benfica, mas também nunca jogas lá. 

      NC: A mudança para o Benfica acaba por surgir uns meses antes de acabar a época. Eu já tinha tudo acordado com eles, tanto que passei mal naqueles últimos meses em Coimbra, porque fui muito pressionado para renovar. O meu contrato acabava, eu era um jogador jovem e o clube queria fazer dinheiro comigo. Entretanto, já estava comprometido com o Benfica e passei mal com o José Eduardo Simões, porque estava a meter a muita pressão em renovar.

      zz: Mas tu nunca disseste que já tinhas acordo com outro clube?

      NC: Não. Só a partir de janeiro é que se podia falar. Só a partir daí é que nós dissemos que as coisas estavam mais ou menos fechadas com o Benfica. 

      zz: Vais para o Benfica e achavas que podias ter a tua oportunidade?

      NC: Aí, achava. Eu tinha 21 ou 22 anos e estava numa fase da minha carreira em que, apesar de ser muito novo, já vinha a jogar na Primeira Liga. Já tinha muitos anos de futebol sénior. Eu notei mais essa diferença na minha maturidade quando fui para o FC Porto. Tinha muitos miúdos dos juniores que jogavam e eu, aí, notei muito essa diferença. Quando ia à seleção sub-18 e aos sub-19, o andamento que eu tinha de treinos e de jogos era muito diferente do deles. Eu notei muito. No Benfica, eu senti que podia ter a minha oportunidade. 

      zz: O teu grande adversário do meio-campo era o Enzo Pérez.

      NC: Não. Os meus adversários do meio-campo eram Javi Garcia, Matic e Witsel. O Enzo, no meu ano, ainda não estava. E no ano em que ele estava, era extremo-direito e não meio-campo. Ou seja, Witsel, Javi Garcia. O Matic ainda estava muito na sombra do Javi, que só sai no ano a seguir ou praticamente nesse ano até quase nem joga, Carlos Martins. Já para nem falar dos outros meninos da frente: Aimar, Saviola, Cardozo, Gaitán. Era um plantel com muita qualidade e aquele Benfica do Jorge Jesus ainda não apostava nas camadas jovens.

      zz: Era «preciso nascer dez vezes».

      NC: Ou vinte, neste caso. Acabo por fazer a pré-época, faço o estágio na Suíça e os torneios da Eusébio Cup e do Algarve. Jogo cinco ou seis vezes nesses amigáveis e depois chegámos ao fim de agosto, no fim do mercado. Era suposto eu ficar no plantel porque havia uma obrigatoriedade de se ter um determinado número de portugueses. Acabo por não ficar, porque o Carlos Martins fica e eu vou embora. É aqui que aparece o Beira-Mar, que tinha um investidor, e eu vou para lá.

      zz: E como é que foi essa época?

      NC: Foi uma época boa, mas um pouco atípica. Na altura, as pessoas em Coimbra ficaram um pouco chateadas comigo, por causa disso, mas eu não tive muita culpa disso. O Beira-Mar dispôs-se a pagar o meu salário, porque o Benfica queria que eu arranjasse um clube que me pagasse a totalidade do salário. Entretanto, eu tinha melhorado as minhas condições financeiras, porque tinha ido para o Benfica. Foi preciso encontrar uma série de conjugações para tudo bater certo. Mas foi uma época tranquila. Um clube cumpridor.

      Nuno Coelho, na pré-época, de águia ao peito @Arquivo Pessoal Nuno Coelho

      zz: Já não tinhas o mesmo ambiente que tinhas em Coimbra? 

      NC: Não, era completamente diferente. 

      zz: Nesse período, sentes que «se calhar, não devia ter saído de Coimbra»?

      NC: Eu nunca senti isso, porque tive um determinado momento em Coimbra em que eles chegaram até a propor um contrato de cinco anos. Estive quase para aceitar, porque o presidente na altura queria que eu fosse quase o símbolo da Académica e que ficasse muitos anos. Eu não me arrependo, porque vou com a legitimidade de ter alguma oportunidade. Assinei cinco anos no Benfica com aquelas condições de estar seguro. Depois pode até não dar certo e tenho de ser emprestado, mas, no mínimo, já vou garantir estabilidade. Há a possibilidade de às vezes, de seres inserido num possível negócio de um jogador em que estejam interessados, mas acabei por nunca me arrepender. Fiquei triste, porque eu sei que em Coimbra algumas pessoas ficaram chateadas comigo. Eu era muito bem visto. As pessoas gostavam muito de mim e eu, quase sem ter culpa, acabo por ser apanhado no meio daquilo. Eu sei que o presidente sofreu um pouco com as pressões dos sócios. Nunca me arrependi.

      zz: Tu, depois, vais para a Grécia. Falaste com o Vieirinha? 

      NC: Eu acho que, na altura, ele estava no Wolfsburg. 

      zz: A experiência em Salónica é bem diferente de Atenas. Tu também deves ter notado isso. 

      NC: O Aris de Salónica foi, talvez, a minha experiência mais enriquecedora em vários aspetos. Praticamente, vivi tudo. Fui para lá num contexto muito difícil enquanto clube. Em termos pessoais, fui sozinho, porque a minha mulher já estava grávida da minha filha, estava com sete meses de gravidez e, então, eu decidi ir sozinho. A minha filha estava prevista nascer em novembro e, depois, no fim do ano, elas já iam comigo. O Aris é um dos maiores clubes da Grécia, com uma massa adepta incrível. Tinha graves problemas financeiros. Eu não queria ir porque o Manuel Machado, o treinador, que tinha estado lá no ano anterior, disse ao meu empresário que tinha estado lá seis meses e não tinha recebido um euro. Tinha contrato com o Benfica, tinha estado esse ano no Beira-Mar, e o Rui Costa pressionou-me para eu ir e acabei por ir na tal pressão do Benfica. Foi um ano muito complicado. Tive cinco treinadores, três presidentes. Foi o ano onde eu tenho mais histórias para contar. Quando as pessoas acham estranho o presidente do PAOK entrar com uma arma no relvado, sinceramente, a mim não me choca, porque nós tínhamos o nosso roupeiro, todos os dias, com uma arma e com uma faca. O senhor tinha graves problemas de droga e álcool. Fazia parte da claque e era nosso roupeiro. Por mais do que uma vez, ele chegou a encostar a faca à barriga de colegas meus. Houve vezes em que nós rejeitamos treinar até ele ir embora.

      zz: Ele fazia isso por causa do jogo? 

      NC: Não. As pessoas não têm noção do fanatismo que os adeptos têm. As pessoas, aqui, falam do Benfica e do FC Porto, mas, lá, é um fanatismo completamente diferente. As claques são mesmo aqueles ultras de cara tapada. No meu segundo jogo, fomos jogar ao PAOK. Os adeptos do Aris não podem ir ao Estádio do PAOK e os adeptos do PAOK não podem ir ao Estádio do Aris, porque houve mortes em vários anos. Tivemos de ir para o jogo com três horas de antecedência.

      zz: Porquê?

      NC: Porque eles têm de fechar as ruas todas do estádio do PAOK até ao Aris. É, mais ou menos, como entre Alvalade e Estádio da Luz. Tem de se fechar as ruas para o nosso autocarro poder chegar ao estádio. Acaba o jogo, perdemos 4-1 e eu, quando chego ao balneário, tenho os meus colegas todos a chorar. Eu perguntei o que se passava e eles só me diziam «estamos lixados. Quando chegarmos ao hotel, vamos levar porrada dos adeptos.» Normalmente, quando isto acontece, temos de sair todos nas carrinhas da polícia. Eu só pensava no que é que me fui meter. O Aris, nesse ano, tinha muitas limitações financeiras por problemas com a FIFA. Só podíamos ter três estrangeiros - eu e dois espanhóis – e cinco gregos acima de 23 anos. Tudo o resto, tinha de ser abaixo. O nosso plantel era muito limitado. A claque, nesse dia, depois do jogo do PAOK, não nos bateu, mas tivemos de ficar a olhar para baixo para não olharmos na cara deles, apesar de eles estarem com máscaras. Eles disseram «Não estamos aqui para vos bater, mas, por favor, honrem o símbolo que têm ao peito. Sabemos que vai ser uma época muito difícil. Queremos que saibam que contam connosco.» Estivemos para aí meia hora a ouvi-los e, felizmente, não aconteceu nada nesse dia.

      Nuno Coelho a festejar com a camisola do Aris de Salónica @Arquivo Pessoal Nuno Coelho

      zz: Mas, depois, chegou a acontecer algo contigo?

      NC: Não porque eu e os dois espanhóis éramos sempre dos melhores da equipa. Eles sabiam que, se viessem para cima de nós, era complicado. Em termos financeiros, eu só recebi o meu dinheiro porque, quando vim ver a minha filha nascer, tive uma reunião com o presidente, porque ainda não tinham pago um euro. Disse-lhe que ou me pagavam o que me deviam ou ia a Portugal e eu não voltava mais. Todo o dinheiro que caía nas contas do Aris ficava automaticamente bloqueado. Como é que eu recebi o dinheiro? Eu fiz um contrato direto com a televisão de lá e era a própria televisão que me pagava. A maneira de eu receber o meu dinheiro foi assim e só fizeram isso porque ameacei que não voltava mais. Tinhas lá jogadores gregos, os mais experientes, que tinham doze meses de salários em atraso. Ali, na cidade, toda a gente conhece o clube. O Aris tem três jornais diários dedicados ao clube, ao futebol e às modalidades. Manuel Machado disse-me que era uma cidade espetacular, um clube brutal, mas não pagam. Eu vivenciei isso tudo. Quando estava dentro do campo, senti-me jogador como não me senti em mais nenhuma equipa, porque jogava sempre para 30 mil adeptos em casa. Ias na rua e toda a gente te conhecia. Eu fiz um golo muito importante, contra o Panathinaikos, aos 90 minutos num jogo em que ganhámos 1-0 e, no dia a seguir, onde quer que eu fosse não pagava nada: nos restaurantes e nos cafés. Tens o lado bom, mas também o mau, pois era muita pressão, mesmo. 

      zz: Foi nessa altura em que nasceu a tua filha que decidiste que não ficarias em Salónica?

      NC: Aquilo era todas as semanas era história. Houve alturas em que liguei ao empresário a pedir para me marcar um voo, para eu ir embora. Uma vez, fomos jogar um jogo a uma segunda-feira à noite e foram seis mil adeptos do Aris ver um jogo fora, a quatro horas de distância. Era um jogo muito importante. Nós tínhamos mesmo de ganhar esse jogo e estávamos a ganhar 1-0 até os 60 e, depois, perdemos. Aos 90 sofremos o 2-1 e eles, os seis mil, entraram no campo para nos rebentar todos. Nós só tivemos tempo de fugir para os balneários e, entretanto, esvaziaram o campo. Já tínhamos tomado banho, já estávamos com o fato de treino para ir embora. Estava tudo vazio. Demoraram duas horas a fazer isso. Entretanto, tivemos de vestir novamente os equipamentos para acabar esse jogo porque se não fossemos, para além de perdermos o jogo, ainda nos descontavam três pontos. No fim desse jogo, eu disse ao meu empresário que não aguentava mais e para marcar um voo que eu queria ir embora. A minha mulher nunca foi ao estádio porque era super perigoso.  Os «gajos» das claques iam aos camarotes. Os três presidentes foram demitidos pelos chefes da claque. Por incrível que pareça, no fim do ano, depois de garantirmos a manutenção, eu quis continuar lá, só que as coisas não se proporcionaram. É aí que, depois, surge o Arouca e a quase obrigatoriedade do Benfica me mandar para Arouca.

      zz:  Por um lado, ainda bem. Não seria bom para a tua sanidade aquele ambiente.

      NC: Sim. É o que eu estou a dizer. No fim do ano, nós não descemos divisão e eu dizia isso ao meu empresário que queria ficar. No fim do ano, tudo o que passei de mau acabou por compensar. Depois, quando já estás aqui, já é mais fácil dizer que foi uma experiência top, mas quando estás lá é complicado. É a roleta russa. Nunca sabes quando é que está a bala do outro lado.

      zz: Custou-te ir para Arouca, ao início?

      NC: Muito. Muito. Custou-me muito, porque tinha a expectativa e o desejo da minha família era, nessa fase, continuarmos mais sete ou oito anos fora. Era esse o nosso desejo. Também, estabilizarmos financeiramente, porque, como é óbvio, os valores que se praticam lá fora são diferentes dos que se praticam em Portugal. Eu passei quase do oito para o 80. Eu passei de um clube com 30 mil adeptos, com uma pressão incrível, para o Arouca que, na altura, via os jogos na televisão e nem bancada tinha. Aquilo fazia-me um pouco de confusão e, quando surge o convite do Arouca, eu não queria ir. Na altura, o [Luís Filipe] Vieira chama-me a Lisboa e faz-me quase uma chantagem. Eles chamam-me a uma quarta-feira e disse-me «Tens até sexta-feira para decidir.» E deu-me três opções de escolha: ou rescindia o contrato com o Benfica e ia à minha vida - eu disse que não porque ainda tinha três anos - ou ia para o Arouca, ou, então, ia ficar três anos a treinar na equipa B. Ele disse mesmo «Acredita que eu faço isso, Nuno. Eu gosto muito de ti, mas…». Esse foi o ano em que o Benfica tinha perdido tudo. Tinha perdido a Taça, a Liga Europa. Nessas férias, saíram muitas notícias que o Benfica tinha 80 e tal jogadores emprestados. Enquanto presidente, começou a chamar os emprestados todos e nós ficámos um pouco pressionados. Tínhamos de decidir e eu acabei por ir para o Arouca. Passo o meu contrato do Benfica para lá e começo a minha aventura em Arouca. 

      Foi em Arouca que Nuno Coelho jogou mais tempo @Catarina Morais

      zz: E é o clube que tu jogas mais tempo.

      NC: É o clube que eu jogo mais tempo, por incrível que pareça. E só não joguei mais porque acabámos por descer de divisão, porque eu tinha mais três anos de contrato. Muito provavelmente, iria fazer oito anos lá.

      zz: Não querias ir para Arouca, não querias ir para Salónica. Terminaste a época em Salónica e querias continuar.

      NC: Eu sempre fui muito mais pela estabilidade do que pelo risco. Ao longo da minha carreira, eu assinei sempre contratos muito longos. Quando fui para o FC Porto assinei cinco anos e depois andei emprestado. Quando fui para o Benfica, assinei cinco anos e andei emprestado. Quando vou para o Arouca, assino três e, quando estou a chegar ao fim do terceiro, assino cinco. Na minha carreira, ao todo, assinei três vezes
      três contratos de cinco anos. Em alguns momentos, sei que me prejudiquei, num ou outro poderei ter saído beneficiado por esses tais contratos longos. 

      zz: Depois, quando sais do Arouca, vais para o B SAD, que ainda menos adeptos tinha.

      NC: Na altura, ainda fui para o Belenenses. Ainda joguei com o equipamento com a cruz de Cristo, mas já no Jamor. O primeiro ano em que estou lá é o ano daquelas confusões todas e que, agora, já não se fala tanto. Com a tal separação, a meio da época mais ou menos, com a alteração do símbolo, deixámos de jogar com a Cruz de Cristo e passamos a jogar com a denominação.

      zz: Vocês sentiam muito esses problemas? 

      NC: Para ser muito sincero, eu não senti, porque quando cheguei, a minha casa era o Jamor. Alguns jogadores que já estavam do ano anterior e algum corpo da administração e do staff, esses sim, notavam um bocado. Nós fazíamos a nossa vida toda no Jamor. O nosso centro de treinos era no Jamor, treinávamos nos campos debaixo do Jamor. Fazíamos a nossa vida toda ali. Sinceramente, a única coisa que se ia ouvindo, às vezes, era uma outra boca das pessoas. «Vocês não são o Belenenses». Isso não era um problema nosso e a verdade é que havia, às vezes, uma falsa ideia de que nós temos assim tão poucos adeptos. A verdade é que nós, às vezes, tínhamos dois mil ou dois mil e quinhentos adeptos, mas num estádio de 30 ou 35 mil, uma bancada vazia faz diferença. Estávamos sempre a jogar e parecia que não tinha ninguém porque no Restelo - e eles fizeram esse levantamento das últimas épocas do Belenenses na Primeira Liga do Belenenses -, tirando com os grandes, a média de assistências era
      era mais ou menos igual. 

      zz: Do lado do Belenenses ficou aquele pessoal mais antigo?

      NC: Sim. Sinceramente, não foi bom nem para um, nem para outro. É a minha opinião. Quem é que tem razão, eu não sei. Nunca consegui perceber ao longo de dois anos quem é que tinha razão. Acho que não foi bom para cada um à sua maneira. Acho que não foi bom para nenhum, mesmo no contexto desportivo que acaba por ser um emblema grande.

      zz: Terminas no Chaves. Como é que vais lá parar?

      NC: Vou parar a Chaves, mais uma vez, por causa da questão familiar. Quando vou para Belém, eu assino três anos. Neste momento, eu já tinha casado, já tinha uma menina e tinha acabado de nascer o meu segundo filho. Quando vou para Belém, para não estar a trocar a família toda novamente para Lisboa, porque a minha filha, nesse ano, ia entrar na escola primário, decido ir sozinho. Vou o primeiro ano e faço-o com o Silas: fazemos uma grande época e o meu objetivo era, no fim da primeira época, conseguir vir logo embora para uma equipa do Norte. Mas, na altura, o Silas não me deixou, porque ele começou essa segunda época (depois acabou por ir logo embora ao início) e eu acabo por fazer essa segunda época e terminar com a época da pandemia. Entretanto, surge uma proposta do Paços de Ferreira para voltar para o Norte, que acaba por não se oficializar, e também surge o Chaves. Escolhi o Chaves porque pude vir para mais perto de casa, para poder estar cada vez mais perto da minha família, e poder vir algumas vezes, a meio da semana a casa. Aí surge novamente a tal estabilidade do contrato. O Chaves deu-me um contrato mais longo do que o que eu tinha em Belém e é por essa razão que eu que eu venho para Chaves. 

      qVou ter de homenagear os meus pais, por tudo o que foram para mim enquanto modelos de pais. São pais separados. Separaram-se quando eu tinha 12 ou 13 anos, mas continuamos a ter uma relação muito boa e são, para mim, exemplos da educação
      Nuno Coelho, ex-futebolista

      zz: Fizeste tudo o que tu querias no futebol?

      NC: Posso dizer que não.  Posso dizer que a única amargura que eu tenho foi de não ter tido mais tempo no estrangeiro, apesar dos anos em Arouca e a ida à Liga Europa… Essas situações todas fantásticas. A outra é foi de não me terem dado a oportunidade jogar ou no Benfica ou no FC Porto. 

      zz: Uma pessoa que tu queiras aqui homenagear neste espaço. 

      NC: Eu vou ter de dizer os meus pais, por tudo o que foram para mim enquanto modelos de pais. São pais separados. Separaram-se quando eu tinha 12 ou 13 anos, mas continuamos a ter uma relação muito boa e são, para mim, exemplos da educação e que eu tento passar para os meus filhos. O meu pai teve uma importância bastante grande no meu início de carreira e a minha mãe também, por toda a ajuda que também me
      deu. Quando eu estava no FC Porto, foram sempre pessoas muito presentes, apesar da minha ausência. Depois, como é óbvio, tenho de dizer a minha esposa, porque conhecia-a quando eu estava na Académica e, ao fim de namorarmos um mês, começámos a viver juntos. Foi ela que me acompanhou ao longo desta caminhada toda. É mãe dos meus filhos. Sacrificou-se em muitas coisas para me poder acompanhar, sacrificou uma carreira para me poder acompanhar e, se não fosse essa disponibilidade dela, as coisas seriam certamente mais difíceis.

      zz: Dá-nos o onze da tua vida que tu queiras mostrar. 

      NC: Vou fazer uma mistura de jogadores que jogaram comigo e uns amigos. O guarda-redes Ricardo [Nunes], o meu guarda-redes na Académica e um dos meus grandes amigos. Somos sócios. Passámos sempre férias juntos. Vou escolher três centrais. Luís Rocha, que foi o meu companheiro de viagens ao longo destes últimos dois anos em Chaves. Era um dos dois capitães de equipa e conseguimos, com muito esforço, colocar o Chaves, novamente, na Primeira Liga. Depois, na esquerda, a maior parte das pessoas não se vai recordar, mas chama-se Rui Morais. Um jogador que esteve nos meus primeiros anos de Sporting da Covilhã e era um dos capitães de equipa. Foi um jogador que, quando eu saí de lá, sempre foi acompanhando o meu percurso. Central da direita, Hugo Basto. Joguei com ele no Arouca e tivemos aquela época fantástica da Liga Europa em que ele foi um dos melhores jogadores desse onze. É um dos meus amigos fora do futebol. Teve agora uma lesão grave que eu espero que ele recupere rapidamente. Na posição «seis», André Santos, meu colega em Arouca. Jogámos juntos no Belenenses e, talvez, um dos jogadores com quem hoje em dia tenho mais relação fora do fora do campo. Para interior esquerdo, vou colocar o Tarantini que é uma referência para mim no que é ser um jogador profissional, no que é ser um jogador para preparar o futuro. Jogámos juntos no Sporting da Covilhã, jogámos juntos no Portimonense, mas, acima de tudo, fica sempre uma relação de amizade. Sempre que tenho de tomar uma decisão mais séria, ligo ao Tarantini. Acho que deve ser uma referência para todos os jovens por aquilo que ele é. A interior direito, outro jogador que jogou comigo em Arouca, Nuno Valente. É um jogador que, na minha opinião, pela qualidade que apresentou no ano que jogou comigo na Liga Europa, deveria ter atingido outros patamares. Na posição «dez», este não posso dizer que é meu amigo, mas vou considerar como jogador com quem eu joguei, apesar de ter sido pouco tempo, com mais qualidade. Pablo [Aimar] foi o jogador com quem eu treinei, porque não posso dizer que que joguei, com mais qualidade. Uma qualidade fora de série. Ele e o Saviola quando começavam a tabelar era algo que que dava prazer de ver. Foi o jogador com quem eu tive o prazer de treinar e que dava vontade de não treinar e ficar só mesmo a olhar. Depois, como extremo direito, coloquei o Artur. É o jogador com quem eu fiz mais jogos na minha carreira. Tivemos muita relação nesses principalmente nesses três anos em Arouca. A ponta de lança, coloquei o Silvestre Varela, que foi outro companheiro meu de viagens ao longo de um ano na BSAD e que, por essas situações acabamos por criar ligação. Essencialmente, o que admiro no Silvestre, que eu já conhecia há algum tempo, é a humildade dele. Ele quando chegou à BSAD e, apesar de ter passado por onde já tinha passado e ter ganho o que ganhou, integrou-se como um jogador exatamente igual a qualquer outro e gostei muito. Já o admirava e admirei-o ainda mais. Por último, aqui na ala esquerda, eu coloquei o David Simão. Outro jogador que fez parte de três anos comigo em Arouca. Fomos os primeiros a assinar com o Arouca e eu lembro-me perfeitamente que, na altura, ele me ligou a dizer «olha, eu já assinei. Anda para aqui.» Posso dizer que é um jogador com qualidade incrível que, muitas das vezes, foi incompreendida ao longo da carreira. Ele tem uma personalidade muito forte, mas é um jogador com uma qualidade incrível e com um coração muito grande e de quem eu gosto muito também.

      Portugal
      Nuno Coelho
      NomeNuno Miguel Prata Coelho
      Nascimento/Idade1987-11-23(36 anos)
      Nacionalidade
      Portugal
      Portugal
      PosiçãoMédio (Médio Defensivo) / Defesa (Defesa Central)

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      Comentários (1)
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      motivo:
      Zerozero
      2023-05-31 12h09m por Gadocke
      Não vamos ter versão podcast para o Spotify e tal? Para alguém como eu é única maneira prática de conseguir ouvir enquanto trabalho, tarefas etc obrigado e continuação do excelente trabalho, vocês são o melhor que há em Portugal
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