Rui Miguel Tovar entrevista Artur Santos

    «O Otto era uma jóia de pessoa, o Guttmann pôs-me os patins»

    Publicado em: 2024/05/24 12:30
    Atualizado em: 2024/06/28 12:54
    E1
    «O Otto era uma jóia de pessoa, o Guttmann pôs-me os patins»

    «Barrilete Cósmico» é o espaço de entrevista mensal de Rui Miguel Tovar no zerozero. Epíteto de Diego Armando Maradona, o nome do espaço remete para mundos e artistas passados, gente que fez do futebol o mais maravilhoso dos jogos. «Barrilete Cósmico»

    Artur Santos, 93 anos de idade.

    Insistimos, noventa e três. O senhor é de 1931. É obra. Só falhou o Mundial-1930, por exemplo. Nunca perdeu um campeonato português, outro exemplo. Nem uma final da Taça de Portugal. Gente assim é outra loiça.

    A propósito da final da Taça de Portugal, o nosso Artur Santos levanta o caneco em 1959. É o capitão mais velho ainda vivo a fazê-lo. E o senhor recebe-nos em casa, no coração de Paço de Arcos, junto à linha de comboio. Quem me apanha na estação é o seu filho Luís, acompanhado pelo neto Tiago.

    O caminho a pé até casa é um instante. Lá dentro, respira-se harmonia. O casal é afetuoso, a sessão fotográfica no final da entrevista evidencia esse amor com o toque de mãos. Artur está vestido com o fato de treino do Benfica, a sua mulher equipa-se com um vestido de verão. Ele senta-se à mesa, comigo à frente, ela senta-se no sofá, ligeiramente atrás. Os dois, repito-me, em harmonia. Ou não – afinal de contas, é um casal. E é divertidíssimo ouvi-los a namorar.

    Nasci aqui, sabe?

    Sei, pois. Não sei quase nada sobre si, mas isso já sei.

    qO Ângelo quis muito a bola de um apanha-bolas chamado Libório, que tinha sido jogador do Sporting. Como o Libório estava a demorar, o Ângelo agrediu-o. Gerou-se uma confusão muito grande com os adeptos e eu quis sanar o conflito. Qual quê, levei com um cassetete da polícia e fiquei estendido
    Artur Santos
    (e sabe de onde é que sou?)

    (a mulher de Artur Santos entra na conversa, daí os parêntesis)

    Já não chego a essa bola.

    (Sou alentejana, do Cercal.)

    Não me diga.

    (Sou, sim.)

    Pois, acredito. O não me diga foi de espanto pela coincidência. Olhe, ainda há dias enviaram-me uma fotografia atrás da baliza do campo de futebol do Cercal.

    (Que engraçado. Também está enrolado com o Alentejo?)

    Sorrio.

    (já vi que sim, faz bem, muito bem, é gente boa de certeza)

    Solto uma gargalhada, é impossível resistir.

    agora fica-te por aí que a entrevista é para mim – Artur Santos reage ao tiki-taka fora de mão.

    Sim senhor, vamos lá. Como é que entrou no Benfica?

    Entrei nos juniores.

    (aos 18 anos, diz a mulher)

    E como é que ia daqui para Lisboa?

    Apanhava o comboio aí em baixo, saía no Cais do Sodré, ia a butes até ao Terreiro do Paço para apanhar o elétrico até ao Campo Grande.

    (mas não ias sozinho...)

    Então, quem o acompanhava?

    Um amigo meu daqui chamado Fernando Natividade. Ainda chegou a jogar no Benfica.

    Quem era o treinador?

    O argentino Valdivieso.

    E que tal?

    Bom homem, exigente. Fui lá ao Campo Grande para fazer o teste e agradei, ele gostou das minhas capacidades.

    Quais eram?

    Dominava bem a bola de primeira e colocava-a também bem, também de primeira.

    E isso era inato?

    Treinei muito aqui em Paço de Arcos. O meu pai tinha uma quinta, paredes meias com o campo do Paço de Arcos. Sempre que a bola ultrapassava o muro, estava lá eu a recebê-la e a devolvê-la. Começou assim, olhe.

    E jogava em que posição?

    Onde joguei melhor foi a defesa-central, mas também fui back direito e back esquerdo.

    @Rui Miguel Tovar
    Quantos anos nos juniores?

    Um, só. Depois passei para os seniores, lançado pelo Ted Smith.

    Que tal?

    Era engraçado, porque já arranhava o português e nós, jogadores, íamos ao encontro das suas palavras.

    Não é ele quem ganha a Taça Latina em 1950?

    Isso mesmo.

    E o Artur?

    Ainda era júnior, mas fui ao Jamor.

    Ver essa final entre Benfica e Bordéus?

    Sim senhor, foi uma beleza ao mais alto nível. Daí a três meses, estava no meio daqueles craques todos: Corona, Rosário, Júlio, Félix, Rogério.

    O Rogério Pipi, conheci-o bem ali no Vavá.

    Ai sim? Tinha muita piada, o Rogério. Foi uma pena quando ele saiu para o Chelas, porque trabalhava num stand da Ford e não quis abraçar o profissionalismo.

    Ah pois foi. Otto Glória, não é?

    O Otto chegou e mudou a estrutura toda do Benfica. E também a de Portugal. O Otto Glória era uma jóia de pessoa.

    (o Otto chegou em 1954, nós casámos um ano depois; não foi o Otto que te meteu a central?)

    Verdade, foi ele. Antes, era back direito. Fui para central e saiu o Félix Antunes.

    (e depois saíste porque entrou o Germano; o Germano foi contratado ao Atlético por 600 contos e era médio, só que tinha um problema pulmonar, razão pela qual esteve até uns meses internado nas termas do Caramulo, e já não tinha vida para médio; o Guttmann, então, passou-o para central e desviou o Artur para a direita, no lugar do Jacinto Marques; como não quis ir para a direita, deixou o futebol de forma abrupta, ele é muito senhor do seu nariz)

    – deixa-me falar, filha – mais um arrufo apaixonado do casal

    O Artur ainda faz parte da primeira equipa vencedora da Taça dos Campeões?

    Sim, fiz o primeiro jogo, com os húngaros, e a capitão. Depois, nunca mais joguei. O Béla Guttmann começou a pôr-me os patins e, agora, vou bater numa tecla: quando aparecem Costa Pereira, Naldo, Pegado e Águas, ele afasta a, b e c para a entrada desses jogadores. Mas, pronto, tudo bem.

    Foi a Berna ver a final?

    Fui, pois. O Coluna marcou um golo sensacional. Ele chegou no mesmo Verão do Otto Glória. Quando lhe dava bem com o pé direito, está bem está.

    Como era ser jogador do Benfica nos anos 50/60?

    Havia coisas impraticáveis para os tempos atuais.

    Como por exemplo?

    Sabíamos da convocatória para o jogo de domingo no treino de conjunto, à quinta-feira, e entrávamos logo em estágio para o Lar do Jogador. De onde só saíamos à segunda-feira. Isto no tempo do Guttmann, atenção.

    Caramba, é muito estágio.

    Cheguei a treinar no campo das Amoreiras, entretanto demolido para o Liceu Francês. E aquilo não era um campo em condições. Era traiçoeiro, maltratado. Nem lá tomávamos banho, íamos para o Campo Grande.

    A pé?

    Sim.

    Suados?

    Sim.

    (isso não é nada, pergunte-lhe pelas cassetetadas)

    E as cassetetadas?

    Ahhhhhh, isso foi num Sporting-Benfica. O Ângelo quis muito a bola de um apanha-bolas chamado Libório, que tinha sido jogador do Sporting. Como o Libório estava a demorar, o Ângelo agrediu-o. Gerou-se uma confusão muito grande com os adeptos e eu quis sanar o conflito. Qual quê, levei com um cassetete da polícia e fiquei estendido.

    (há fotografias e tudo; nesse dia, nem lhe digo a quantidade de pessoas a ligarem-me para casa a dizer que ele tinha morrido)

    Bolas, foi assim tão grave?

    Apanhei algumas vezes da polícia, sim. No meio da confusão, era assim a vida. O Ângelo foi suspenso por um ano, se não me engano.

    E o Artur ficou quanto tempo de fora?

    Foi mais o choque, joguei no domingo seguinte.

    (conta-lhe daquela vez no comboio)

    Então, no comboio?

    Quis sair à pressa do comboio para apanhar o autocarro 50 até à Luz e bati com o dedo grande do pé na plataforma. Andei com o pé engessado e falhei uns dois ou três jogos.

    (tens aí a lista dos teus jogos)

    Onde está essa lista?

    Aqui está.

    Que maravilha, 372 jogos pelo Benfica: 230 a defesa central, 125 a lateral direito, 15 a lateral esquerdo e 32 a médio.

    Eheheh, bons números.

    (conta-lhe da vez que estiveste para ficar no Brasil)

    Brasil, o Artur esteve para assinar por um clube brasileiro?

    Eu e o Águas, pelo Flamengo. Mas o Otto Glória meteu-se na conversa e o Flamengo recuou na hora. São boas memórias, sempre.

    Que tal o Águas?

    Fantástico a cabecear e a rematar com os dois pés. Goleador de corpo e alma.

    Foi ele quem levantou as duas Taças dos Campeões.

    Pois foi.

    Podia ter sido o Artur?

    ...

    (gostava de ser visto, mas não gostava de se mostrar)

    @Rui Miguel Tovar
    Mas levantou a Taça de Portugal. E é disso que viemos hoje falar.

    Foi uma final fácil, resolvemos com um golo antes do primeiro minuto.

    A sério?

    A bola saiu, o Cavém atirou, golo e acabou 1-0. [contra o FC Porto]

    Que tal a sensação de levantar a taça na tribuna?

    Maravilhosa, nunca pensei.

    Quem era o treinador?

    Valdivieso. Já viu as voltas? O do FC Porto era o Guttmann. Já viu?

    (não te esqueças de dizer que o Otto é que te meteu a treinador do Benfica)

    A sério, o Artur treinou o Benfica?

    Juniores e juvenis, sim senhor.

    Tão bom. E apanhou quem?

    João Alves, por exemplo.

    (depois do Benfica, foste para o Atlético e subiste logo)

    À 1.ª divisão?

    Fiz umas coisinhas, fiz umas coisinhas.

    (conta-lhe do Pedras)

    Então, o Pedras?

    Queria jogar de óculos escuros. Manias.

    (também subiste pelo Olhanense)

    Olhanense?

    Subi. E fui campeão da 2.ª divisão pelo União de Tomar. Ganhámos a final ao Espinho por 1-0. Depois, na 1.ª, apanhámos 5 do FC Porto em casa, mas travámos Benfica (0-0) e Sporting (0-0 na taça) em Tomar. Foi bonito, sim.

    Segue-se a tal sessão de fotografia, com o neto Tiago a dar indicações preciosas de landscape e portrait. Artur Santos sente-se cómodo, a mulher idem idem, o filho aspas aspas. A família está unida e jamais será vencida.

    @Rui Miguel Tovar



    Artur Santos
    Nascimento1931-03-27
    PosiçãoDefesa (Defesa Direito) / Defesa (Defesa Central)

    Fotografias(5)

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    motivo:
    Muito bom
    2024-05-24 21h47m por NuAroundHere
    Este é para mim o melhor tipo de conteúdo. ouvir(ler) o relato destas velhas glórias é excelente, para além de que se dá visibilidade a velhos heróis esquecidos pela memória colectiva.

    Parabéns
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