«Barrilete Cósmico» é o espaço de entrevista mensal de Rui Miguel Tovar no zerozero. Epíteto de Diego Armando Maradona, o nome do espaço remete para mundos e artistas passados, gente que fez do futebol o mais maravilhoso dos jogos. «Barrilete Cósmico»
Luís Castro. O nosso último contacto é um telefonema intercontinental, de Lisboa até ao Rio de Janeiro. ‘Tenho de ir ao concerto dos Coldplay. Hoje é dia de folga do Botafogo, descansei um pouco e agora vou sair do apartamento. Temos meia-hora para falar.’ E falamos, animadamente.
Um ano depois, mais dia menos dia, encontramo-lo no Algarve, já como treinador do Al-Nassr. O ar descontraído é a sua imagem de marca. Começa pela viagem a pé do lobby para o quarto, a falar da vida. Sentado na sua cadeira (de sonho), durante 98 minutos, Luís Castro movimenta-se uma série de vezes e mete-se de lado com os pés para fora, completamente suspensos. Que se iniciem os jogos olímpicos das palavras.
Parte II: «Fiz-me ao caminho para provar que não era do FC Porto, nem do Benfica, nem do Sporting»
O Luís faz a transição de júnior para sénior no União, em Leiria. Lembra-se desses tempos, dos jogadores?
Assim de repente, Padrão, Jesus, Quaresma, Jorge Gomes.
Treinava com eles?
Ia lá, sim. Ganhámos a Taça da Honra da AF Leiria e joguei a final. Também me lembro bem da minha estreia de avião, com eles. Tinha 19 anos.
Para onde?
Madeira, fomos jogar com o Marítimo, já na parte final da época. Acho que era Fernando Peres, o treinador. Ou então Mourinho Félix. No meu primeiro ano de júnior, o Mourinho Félix tinha um amigo que me dava boleia até à Vieira e, às vezes, o José Mourinho aparecia nos treinos. Tenho uma vaga ideia, só, não consigo ser mais preciso. Lembro-me de ele aparecer por lá.
E o Jorge Jesus?
Sou colega do Jorge em Leiria, durante um ano.
E como é que ele era?
O Estádio Municipal fica no centro da cidade, a 1.5 km. Às vezes, ia de boleia com ele. Tinha um MiraFiori [Fiat] e era muito esquisito, porque não deixava ninguém entrar com os pés sujos no carro.
Essa época do Luís e do Jorge é qual?
[Luís puxa pela cabeça, contas p’rá frente, p’ra atrás e tal] É a de 1979-80. É o Tomé, o treinador. Na época seguinte, já é o Pedro Gomes e discutimos o título de campeão nacional da 2.ª divisão em Vila do Conde, no pelado, que não o dos Arcos. Empatámos e fomos campeões. Saímos escoltados e o autocarro todo partido, vidros e tudo.
Lembrei-me agora, esse União tinha o N'Habola?
N’Habola, bom jogo de cabeça. Bom mesmo. Também joguei com um gajo fantástico, o Mário Ventura. Era incrível, meio-campo, a 8 ou 10: pegava bem na bola, muito criativo, batia penáltis de letra, variava o corredor de letra, sempre com uma facilidade incrível. Daqueles jogadores com qualidade, que jogam pelo prazer e o jogo suporta-os porque eles são realmente bons. Tocaste em nomes que estão aqui guardados na minha cabeça, mas nunca mais os revisitei. Isto já foi há 43 anos.
Nascimento, outro nome.
Ainda agora estive com ele, foi aluno da minha mãe, na Vieira de Leiria. O tio dele é o Nisa, jogador do U. Coimbra e treinou uma equipa ali ao pé da Mealhada, o Pampilhosa. Emigraram para França e, depois, o Nascimento transferiu-se do Sochaux para o Benfica. Eu e ele vivemos na mesma casa, com o Germano, outro da Vieira, que depois jogou no Salgueiros e morreu de cancro aos 30-e-poucos anos, e o Dinis, lateral-direito, internacional nas camadas jovens pelo Sporting. Eu dividia o quarto com o Nascimento.
«O N’Dinga era um Vitinha, um João Neves»
Como é que se dá a transferência para o Vitória?
Há uma liguilha de acesso à 1.ª divisão e sou capitão do Leiria aos 21 anos.
Como assim, capitão?
Nem sei, sabes? O União estava a viver um período de convulsão, mais um, naquele tempo era normal. Estávamos a subir numa liguilha com U. Madeira, Chaves e Rio Ave. Fiz uma boa liguilha e tinha um agente de Leiria chamado Carlos Costa a perguntar-me se queria ir para Guimarães. Na altura, estava a estudar física em Coimbra para não desiludir os meus pais e mais por obrigação. Vi ali um ponto de fuga e uma promoção profissional, do Leiria para Guimarães. E dediquei-me ao futebol. Estou dois anos no Vitória do Pimenta Machado, chego com o António Morais e saio com o Marinho Peres / Paulo Autuori.
Apanha Jesus, o guarda-redes.
A ver se me lembro de cabeça, somos terceiros e vamos às meias-finais da Taça de Portugal e aos quartos-de-final da Taça UEFA: Jesus, Costeado ou Rui Vieira, Nené, Miguel e Heitor; Adão, Nascimento, Carvalho, Ademir Alcântara, Paulinho Cascavel e Roldão.
O Ademir era mesmo bom?
Veio como ala direito. Ainda agora estive com ele no Brasil. Ele é sócio de construção com o Nené e, vê bem as coisas, estão a construir um centro comercial chamado Vitória. E eu a perguntar-lhe ‘foste para o Benfica, porra’. O Ademir não era veloz, mas guardava a bola como ninguém. Tinha uma passada larga, era bom finalizador, qualidade de passe, top de drible.
Bobó?
Iiiiiiiiii. Mamadu Bobó Djaló. Grande atleta, grande profissional, excelente pessoa, excelente colega, um ser humano incrível. Já não me lembrava dele há uns anos, mas é bom recordá-los.
Roldão e Paulinho Cascavel?
Tenho uma história com o Roldão. Há um jogo em que fico a 17.º jogador e ele foi substituído ao intervalo. Estava pior que estragado e quis sair do estádio.
E?
Fomos ver a segunda parte na casa dele, com amendoins e uma cervejinha. Tinha uma velocidade estonteante, fazia valer o seu jogo pela capacidade de finalização, potência de remate, muito dedicado ao trabalho, mas um pouco maluco, esse gajo.
E o Paulinho?
Mais senhor, mais diplomata. Pedia-me sempre para ficar no fim dos treinos, quase todos os dias. Ele treinava a técnica de cabeceamento. Bola aérea na área era o cargo dos trabalhos para os centrais, qualquer um. O Paulinho elevava-se bem, escondia-se bem atrás dos centrais. Não tinha velocidade nem drible, ele tinha era a técnica específica do lugar. Pequenos deslocamentos em diagonal, desmarcações primorosas, ele era muito interessante.
A equipa melhorou do Morais com o Marinho?
O senhor Morais, a gente tratava-o assim, era uma pessoa muito rigorosa, sentia-se muito a organização, o treino era muito organizado. O Marinho era mais aberto, mais ligado, mais de grupos. Dois grandes líderes, com lideranças diferentes. O Marinho era capaz de passar em minha casa, na altura já vivia com o Vítor Pontes, Valério e Paulo Jorge, que veio do Barreirense. ‘Desce, Castro', dizia-me o Marinho. E eu, com 22 anos, descia e ouvia-o a desabafar sobre a vida. Depois, o Marinho gostava de organizar um churrasco todos os meses para toda a equipa.
E o Autuori?
Autuori era novíssimo. Uma pessoa muito competente, com uma boa relação com os jogadores e bons princípios de vida. Como o senhor Pina de Morais, que contava as suas histórias.
E o Marinho não contava histórias do Pelé, do Cruijff?
Do Pelé, do Cruijff, do António, da Zulmira, da Ana, do Jorge. Era um apaixonado pela bola. Se as coisas estivessem calmas, ele arranjava maneira de agitar. Em Groningen, numa eliminatória europeia, estava tudo tranquilo e ele, de repente, começa a dizer que o Peter Houtman o tinha agredido no túnel de acesso aos balneários. Eu vinha atrás dele e não tinha acontecido nada. Nada mesmo. Arranjou uma confusão e motivou-nos para a segunda mão.
E os zairenses?
N’Dinga, Basaúla, depois jogo com ele em Elvas, e o N’Kama. Aparecem com um agente chamado Valter Ferreira. Basaúla, driblador. N’Dinga, um crânio, classe, visão periférica fantástica. Só hoje é que os entendo, só hoje é que os percebo como jogadores. Vivia ao lado deles e não entendia o porquê de eles jogarem, e eu não. Já olho o jogo de outra forma.
E o N’Kama?
Uma potência de remate, fazia hoje um Hulk. O N’Dinga, um Vitinha, João Neves. O Basaúla, um quê? Não consigo comparar, era um jogador muito específico: acelerava e travava com uma facilidade assombrosa, metia para dentro, ia para fora. Dos três, o N’Dinga era o mais constante.
Daí os dez anos em Guimarães.
Estava a dizer isso mesmo aos meus jogadores há dias. Um jogo bom, todos fazem. Dois, também. Três, também. Agora uma época inteira... O N’Dinga fazia.
E o Heitor?
É de uma terra chamada Laranjal Pequeno e agora é prefeito. O Heitor dava-lhe com o peito do pé e a bola fazia uns esses.
E o N’Kama?
Uma vez, com o Sporting, dá-lhe um bilhete. Katzirz na baliza.
Não é Damas?
Katzirz, um grandalhão. [é Damas, na verdade]
E o Luís jogou?
Não jogava, não. Em dois anos, fiz um jogo [dois jogos, vemos no zerozero].
Jajajajajaja.
Dei o meu melhor, paciência.
«Quem te fez essa cicatriz, Mozer? Pois, fui eu»
Como era o Luís como lateral-direito?
Fraco, ahahahah. Às vezes, ia a central, mas não era alto. Era muito agressivo e cruzava bem. A minha relação com a linha final era boa, porque ela não se mexia. É uma ajuda boa a quem não tem muito inteligência de jogo. E eu não a tinha.
Quem eram os laterais-direitos desse Vitória?
Rui Vieira, Heitor, Costeado e eu. Era o pior deles. No final do primeiro ano, pedi para sair. Disseram-me que não, ‘não jogava, mas treinava bem’. Fiquei.
Depois, ao fim da segunda época, saiu para o Elvas.
Pois foi, descemos em sétimo a contar do fim.
É aquele campeonato das 20 equipas.
Umas pessoas que pensavam o futebol com os pés. Nem sei quem foram essas pessoas e não quero atingi-las, mas isso não se faz ao futebol.
E que tal?
Fui expulso na estreia, com o Penafiel. Uns 40 graus. Adoro Elvas. Que experiência. Que experiência enriquecedora. Nunca mais me esquecerei da época seguinte, na 2.ª, com o Mourinho Félix e, depois, o Carlos Cardoso. Há um jogo engraçado no José Alvalade em que somos eliminados da Taça por uns seis a zero. Ao intervalo, já há cinco e digo ao mister Carlos Cardoso que não me estou a sentir bem. A resposta dele ainda hoje me faz rir: ‘Nem pensar, agora vais jogar para completar toda a merda que fizeste na primeira parte’. E lá fui eu.
Ahahahah. E também não foi expulso com o Sporting, nessa primeira época?
Isso mesmo. Quando entrou o Silvinho, ele veio ter comigo e disse-me ‘babaca, vou expulsar você’. E expulsou. Fiz penálti e levei segundo amarelo. Só que o Paulinho Cascavel falhou o penálti e segurámos o 0:0 em Elvas. Mas eu batia muito e, nessa tarde com o Sporting, estava a bater em toda a gente.
Em quem, por exemplo?
No Lima. O gajo metia-me a cabeça em água. Assim como o Forbs, então no Braga.
E não houve também uma confusão qualquer com o Luís num jogo em Elvas com o Benfica?
[Luís ri-se sem parar] Um dia, estou eu a treinar o Botafogo e aparece-me o Mozer para uma visita. Estamos a conversar na boa e pergunto-lhe ‘quem fez essa cicatriz? atravessa-te o braço todo?’. E ele, ‘porra, foi num jogo em Elvas, pisaram-me num pontapé de canto.’ E eu, ‘pois, fui eu’.
Ahahahahah.
O que é que aconteceu ali? Aconteceu o que é normal quando as equipas pequenas recebem os grandes. É a nossa única hipótese de ficarmos visíveis, através dos resumos mais alargados da RTP e da imprensa escrita a escrever páginas inteiras sobre o jogo. A par disso, o Benfica jogava com o Anderlecht para a Taça dos Campeões na quarta-feira seguinte. Ou seja, eles jogaram com travão de mão e nós acelerados. No final, o Diamantino disse ‘o número 2 do Elvas é um assassino.’ Era eu. Ainda hoje me lembro de uma chamada de página d’A Bola: ‘Só faltaram pistolas e facas em Elvas’. Aquilo foi apertado, admito que foi. Andei a 200 à hora. [pausa para refletir e cá vai disto] Como se as motivações das pessoas não dependessem dos contextos? Jogar com um grande é diferente. O contexto gera comportamento. Vestimo-nos de forma diferente para as ocasiões. Ali, nesse jogo com o Benfica, o contexto era a concentração máxima. Tínhamos de aproveitar. estávamos mais motivados e eles mais frouxos pelo compromisso europeu. Se fosse tudo normal, apanhávamos cinco ou seis.
Por falar nisso, o Luís apanha dois Vidigais n’O Elvas.
Apanhei o Luís, no início de carreira. E o Beto, extraordinário: ala, muito bom.
Mais jogadores?
Horácio, meu vizinho na Raposeira, onde havia pessoas a dormir fora de casa, nos bancos de jardim. Dentro de casa, era uma brasa impossível dentro da pessoa. Nem com ventoinhas. E também apanhei o Lupeta: tão boa pessoa, tão boa pessoa, tão boa pessoa. Se não fosse pessoa, era um doce. Um Dom Rodrigo [e desata-se a rir].
Ainda vai ao Fafe, onde se cruza com o Nogueira, futuro internacional.
Alto, magrinho. Às vezes, flipava com esse gajo. Um pouco sobranceiro. Quando não lhe cheirava bem, ficava um pouco altivo. Como vivemos juntos todos os dias, temos de resolver os problemas. Se for um problema na rua, entre desconhecidos, a distância
E depois começa a sua era de sete épocas no Águeda.
Apanho o Amaral e, de novo, o Jorge Gomes, já uma máquina cansada: o jogo aéreo dele era muito bom, potente, porém intermitente. Havia ainda Luís Reina e André Saura.
Porquê tanto tempo em Águeda?
Não sou muito atrevido, tenho a noção das coisas e comecei a achar que estava na hora de ficar e arranjar um trabalho para o futuro, sempre associado ao futebol. A minha esposa era professora e foi colocada ali. A minha filha mais nova cresce ali. O clube desce e eu, como capitão, já falo com pessoas para assumir a direção, dar um rumo e tal.