«Barrilete Cósmico» é o espaço de entrevista mensal de Rui Miguel Tovar no zerozero. Epíteto de Diego Armando Maradona, o nome do espaço remete para mundos e artistas passados, gente que fez do futebol o mais maravilhoso dos jogos. «Barrilete Cósmico»
Incrível, e verídico: eis a entrevista ao único campeão do mundo sem receber a medalha nem tocar na taça no dia da consagração
Buenos Aires, 25 Junho 1978. Argentina e Holanda jogam a final do Mundial e a incerteza do resultado provoca prolongamento. Aí, senhoras e senhores, a Argentina é mais forte com um golo de Kempes e outro de Bertoni (3:1). Segue-se todo o ritual da praxe para os campeões: entrega da medalha, levantamento da taça e volta olímpica. Pois bem, Daniel Valencia é um dos 22 de Menotti e é o único ausente desse hat-trick glorioso. Como assim? O homem está à nossa frente e explica tudo, tintim por tintim, com ritmo pausado e voz suave.
Para quem não conhece (e eu era um deles), Dani é conhecido como 'Rana' e ainda hoje é considerado um dos dez melhores '10' da história do futebol argentino, juntamente com Bochini e Maradona, outros dois génios da bola, seus contemporâneos da seleção. Cabelo grisalho, casaco de inverno e olhar de avô, Dani é convidado a ir à concentração do Talleres, equipa de toda a sua vida, na véspera do jogo mais importante da história do clube, vs. Velez Sarsfield, para os ¼ final da Libertadores. Tropeço nele, cortesia de Pedro Caixinha. ‘O Rui tem de o conhecer, é uma figura.’ E é mesmo.
Ouçamo-lo, sentado à mesa da equipa técnica do Talleres, toda ela a falar do terceiro golo de Enzo Fernández em três jogos pelo Benfica.
Rui Miguel Tovar - Buenos dias, que tal?
Dani Valencia - Bien, bien, y tu?
RMT - Bem, obrigado.
DV - Vieste de Portugal?
RMT - Nem mais.
DV - E és jornalista?
DV - Vieste cobrir o Talleres do Pedro?
RMT - Comecei a aventura em Buenos Aires, vs. Velez. No fim-de-semana, vi o 2:0 vs. Argentinos Juniores. E agora só falta a segunda mão vs. Velez.
DV - Estou animado, vamos ver o que acontece. Nasceste quando?
RMT - Um ano antes do seu título mundial.
DV - Jajajajajaja.
RMT - E o Dani, nasceu quando para o futebol?
DV - No dia 3 Outubro 1955.
RMT - É do mesmo dia da minha filha Ema, parabéns.
DV - Jajajajajaja.
RMT - E porquê esse dia?
DV - Nasci mesmo nesse dia, e nasci dentro de um estádio. Soy hijo de canchero.
RMT - Hã?
DV - Canchero = cancha.
RMT - Ahhhhh. Lindo.
DV - É, não é? Eso es, hijo de canchero, hijo de canchero [e olha para mim com alegria] O meu pai dormia lá, dentro do estádio, e eu também.
RMT - Onde?
DV - Jujuy, Gimnasia Jujuy.
RMT - Isso é épico.
DV - Para nada [como quem diz, ora essa, nada demais]. Épico é fazer o primeiro jogo de sempre aos 15 anos.
RMT - Só aos 15?
DV - Jogava todos os dias no estádio, mas não estava inscrito no futebol. O meu pai só acreditava nos estudos e, de certa forma, afastou-me do futebol por uns anos. De repente, o meu pai morreu e a porta do futebol abriu-se. O Gimnasia viu-me e assinou contrato comigo.
RMT - Aos 15 anos, isso não é ilegal?
DV - Claro, hacían trampa. Y ahora también.
RMT - Schiiiiiii.
DV - Deram-me um carro. Nunca mais me esqueço, um Ford Falcon.
RMT - E já sabias conduzir?
DV - Já, sim, não tinha era el carnet.
RMT - Pois, imagino.DV - Deram-me o Ford mais dinheiro. Cheguei a casa do meu irmão mais velho e dei-lhe a notícia todo feliz.
RMT - E ele?
DV - Deu-me uma bronca daquelas. ‘Que te vas de acá, papa no quería eso.’ Expulsou-me mesmo de casa e fui dormir à casa do vizinho, a um quarteirão de distância.
RMT - E depois?
DV - A minha mãe foi buscar-me.
RMT - E o futebol?
DV - Assinei, está assinado. O meu primeiro jogo oficial foi aos 15 anos, num torneio de Verão. Também estavam Independente e Huracán, treinado por César Luis Menotti.
RMT - E que tal?
DV - Nós jogámos de maravilha.
RMT - Quem, o Gimnasia?
DV - Também, mas referia-me mais ao trio da frente, os números 9, 10 e 11. Éramos conhecidos como os payasos.
RMT - E?
DV - O Menotti pediu os três, só que o Gimnasia não foi na conversa. O 9 foi para o Boca, o 10 e o 11 para o Talleres.
RMT - Começa aí o amor infinito pelo Talleres?
DV - Sim, sim, que aventura apaixonante. Fomos a uma final metropolitana [1977]. Imagina só, um clube de província numa final nacional. Como éramos tão bons naquela época, e chegámos até a bater um recorde de invencibilidade na Argentina, havia uma equipa para os torneios da Argentina e outra para as digressões.
RMT - Não me digas.
DV - En serio, havia mesmo. Lembro-me bem de um torneio em Málaga, com Huracán, Athletic, Talleres e, claro, Málaga. Fui eleito o melhor do torneio e o jogo com o Athletic nem acabou. Substituíram-me a cinco minutos do fim e todos os adeptos aplaudiram-me tanto tanto tanto que finito.
RMT - Uauuuu.
DV - Éramos uma equipa especial, não havia rivais. Fomos à Grécia e ganhámos vs. Panathinaikos, vs. Olympiacos. E a jogar bem, a dar espectáculo.
RMT - ...
DV - Houve uma outra digressão em que o presidente do Real Madrid quis contratar-me.
RMT - Qual presidente?
DV - O presidente.
RMT - Santiago Bernabéu, nooooo.
DV - Santiago Bernabéu, esse mesmo. Foi ao hotel e reuniu-se com o presidente do Talleres. Ofereceu um milhão de dólares ao Talleres e três mil dólares por ano para mim. O problema é que isso não era nada de especial para mim, já ganhava três mil dólares por ano no Talleres. A única vantagem era que o contrato durava três anos e, depois, o passe ficava comigo. Mas nunca quis sair daqui. E nunca me arrependi. Más que un equipo, Talleres era una família.
RMT - Jajajaja, maravilha.
DV - O ficar aqui também me abriu as portas da seleção. E tudo começou com o Torneio de Toulon 1975. Fui chamado por ‘El Flaco’ Menotti, juntamente com Tarantini, Passarella, Gallego, Trobbiani, Valdano e, aí sim, empezó todo.
RMT - Ganharam o torneio?
DV - Siiiiiiii. Eliminámos a Hungria nos ¼, o México na ½ e a França na final, golo de Valdano. Foi toda uma sensação, porque a Argentina nunca ganhara nada fora do seu país.
RMT - E depois foi o Mundial?
DV - Antes ainda fomos ao Pan-americano desse ano de 1975, no México. Ficámos em terceiro lugar, Brasil e México dividiram o ouro porque houve uma falha de luz durante o prolongamento. E depois, sim, Mundial na Argentina.
RMT - Quantos dias de estágio?
DV - Dias? Jajajajaja. Meses, cinco meses.
RMT - Seguidos?
DV - Cinco meses dentro da cabeça do Menotti, jajajajaja. Éramos mais que os 22 da FIFA. Às tantas, Menotti teve de cortar.
RMT - E um dos cortes foi Maradona?
DV - Eso es.
RMT - Duro?
DV - Muito, porque Diego era meu amigo. Muito meu amigo. Diego é padrinho de uma das minhas filhas. Sempre nos demos bem, e cantávamos juntos no quarto, no autocarro, até nos treinos. Ele tinha 16, eu já tinha 21. Nunca lhe disse na cara, porque ele era muito orgulhoso.
RMT - Dizer o quê?
DV - ‘Não foste por minha causa.’
RMT - E foi assim?
DV - Si, claro.
RMT - Estas de broma?
DV - Para nada. Ou era eu, ou era Diego. Eu tinha mais experiência e estava a jogar bem.
RMT - Uauuuuu. Tu foste e Maradona não. Deves ter sido genial.
DV - Jajajajajajajajaja. Jajajajajajajaja. Há dias, ‘El Flaco’ enviou uma mensagem que me deixou de patas arribas.
RMT - Então?
DV - Espera um momento, vou telefonar ao meu filho.
[Dani agarra no telefone, liga ao filho e pede-lhe para enviar um áudio de há sete meses]
[o filho nem demora um minuto e o áudio já lá mora no whatsapp de Dani]
DV - Ouve isto. [e carrega no play] ‘Te voy a comentar algo, Dani: conoci Cruijff, Maradona, Pelé, Messi, pero al dia de hoy no sé se tu es zurdo o derecho’.
RMT - Uauuuuuuu. Uauuuuuuu. Em dose infinita.
DV - Sou direito, sabes?
RMT - Não sabia.
DV - A verdade é que dava bem com os dois pés. Por isso é que marcava os cantos da seleção, fosse da esquerda ou da direita. E a malta gostava, sobretudo Passarella. Ele fazia-me o sinal lá na grande área e eu mudava de posição, consoante a ideia do capitão.
RMT - És amigo dele?
DV - Sim, de todos. De Passarella, de Valdano, de Bochini, de Tarantini, de Menotti, de Diego. Diego era incrível, mas levou uma vida impossível de se viver. A última vez que o vi foi de partir o coração. Fui ter com ele e levei os meus filhos. Quando cheguei ao hotel, vi-o a sair do elevador e parecia outra pessoa, que não o Diego. Estava caído, desanimado. Quando me viu, deu-me um abraço apertado. De amigo, sabes? Com amor, carinho, ternura. Ele agarrou-se a mim como se estivesse sozinho no mundo.
RMT - E que tal o Mundial-78?
DV - Bueno, comecei a titular. Contra vontade de muito boa gente.
RMT - Porquê?
DV - A imprensa questionava o meu lugar no onze, porque a imprensa só fala da capital.
RMT - Como?
DV - Só fala dos clubes da capital. Na altura, era o Bochini do Independiente, o Alonso do River Plate e por aí fora. O Dani do Talleres não entrava na cabeça dos jornalistas, porque é de Córdoba e Córdoba, já disse, é uma província. Como Jujuy. Sabes o que dizia Menotti a esses jornalistas?
RMT - Nem ideia.
DV - Se Dani jugase acá, vosotros nem piavam.
RMT - Pois, estou a ver a lógica.
DV - Joguei de início e, na segunda fase, saí do onze.
RMT - Porquê?
DV - Había que estar 100 por 100 y tenía un problema en el tobillo. Saí e pronto, nada de mais. Vi do banco.
RMT - Até à final?
DV - Sim, a final com a Holanda.
RMT - E aquela bola ao poste do Rensenbrink no último suspiro?
DV - Nem me fales. O mundo parou.
RMT - E depois do prolongamento?
DV - Pedi a um responsável para sair do estádio o mais rápido possível. Ele aceitou e saí do estádio com um quilombo de patroleros [guarda policial]. Só queria ver a minha mãe, já estava com a seleção há cinco meses. Fui a Córdoba para trocar de carro e, depois, arranquei para Jujuy.
RMT - Quanto tempo?
DV - Uns dois, três dias.
RMT - Hein?
DV - Pois é, dois ou três dias. Quando cheguei a Jujuy, havia duas vias: para a direita, era para o centro; para a esquerda, a casa de minha mãe. Fui para a esquerda.
RMT - Óbvio.
DV - Quando cheguei a casa, só lá estava a senhora que tomava conta da minha mãe.
RMT - E a mãe?
DV - Estava no centro, juntamente com toda a cidade, para receber o menino campeão mundial.
RMT - O Dani?
DV - Eu, sim. Jajajajajajaja.
RMT - Saiu do estádio sem nada.
DV - Nada, nem recebi a medalha nem vi a taça. Só a vi depois, quando passou por lá, em Jujuy.
RMT - Jajajajajajaja.
DV - Quando recebi a medalha de campeão, também recebi o presente do governo argentino pela conquista do título.
RMT - Que era o quê?
DV - Um Fiat 133.
RMT - Precioso. Imagino agora se a Argentina for campeã.
DV - Jajajajajaja. Na verdade, estamos bem. Messi parece-me mais tranquilo e o entorno também é-lhe favorável. A conquista da Copa América no Brasil acalmou a ansiedade e o 3:0 à Itália deu confiança. E vocês, em Portugal? Gosto muito de um jogador vosso, Bruno Fernandes. Vejo-o no Manchester United e me encanta.
RMT - No teu tempo de jogador, qual foi o teu jogador estrangeiro preferido?
DV - Cruijff. Joguei uma vez com ele, em Camp Nou. Pedi-lhe a camisola e tudo. Ainda hoje não sei onde anda. Devo tê-la dado, o meu filho me putea por esse assunto, porque nunca fui de guardar as minhas camisolas nem a do Cruijff. Um dia, esta história é engraçada.
RMT - Conte.
DV - Um dia, jogámos os veteranos da Argentina com os miúdos da seleção. O Cambiasso estava espantado com o meu toque de bola e pediu-me a minha camisola. Eu, já avisado pelo meu filho, que estava lá a ver o jogo, pedi a dele. Quando cheguei à porta do estádio, já tinha dado a camisola do Cambiasso a algum miúdo. Jajajajajaja.
RMT - Jajajajajajaja.