Down memory lane. Mais uma vez. E sempre. A minha mãe sai do país em trabalho e calha-me passar o dia com o meu pai. À noite, a aposta entre os dois é tentadora: se o FC Porto ganhar em Amesterdão, jantamos fora; se o Ajax faz valer o factor casa, jantamos em casa. Aos cinco minutos, Gomes isola Rui Barros e 'toma lá disto ó Menzo'. É melhor vestir o casaco, está frio lá fora.
A história do jogo é arrepiante, o Ajax de Cruijff tem mais de 65 por cento posse de bola e zero remates enquadrados com a baliza de Mlynarczyk, enquanto o FC Porto de Ivic falha quatro lances na cara de Menzo (três por Rui Barros, um por Jaime Magalhães), além do golo anulado a Gomes por fora-de-jogo, e só ganha por 1:0.
Lembro-me tão bem. Porque só tenho dez anos de idade e sair de casa às nove-e-tal para jantar é uma novidade, porque o FC Porto joga o futebol total na cara do dito cujo (e sem Madjer) e porque é uma alegria sentar-me e olhar para o menu do restaurante (ainda hoje é assim).
Pois bem, lanço o isco a Rui Barros só porque sim e pergunto-lhe por uma entrevista. A resposta é imediata: às 12 e 15 na Adega do Lila, em Vila Nova de Gaia. Maravilha.
O restaurante é à beira da estrada, entro, digo as palavras mágicas 'Rui Barros' e subo as escadas para um terraço. Há uma mesa rectangular com espaço para dez pessoas entre uma kitchnettte e a casa de banho. A paisagem é verdejante, o entrevistado chega e distribui jogo com categoria: peixe ou carne? Come sopa? Maduro, branco ou tinto? O início da conversa é a tal supertaça europeia. Óbvio.
Nunca mais revi o jogo, a minha ideia é a de que 1:0 foi curto. Três ou quatro e, aí sim, justiça.
Que noite, essa. A táctica do Ivic era dar a bola ao Ajax. Como eles subiam em bloco, à boa maneira holandesa e do Cruijff, a nossa missão era recuperar a bola e lançar para as costas deles. Para mim, perfeito. Tinha 40 metros à minha frente.
O primeiro golo é cedo.
Talvez tenha sido na nossa primeira jogada de ataque. Depois fizemos mais umas quatro ou cinco.
Com o Rui Barros lá metido, não foi?
Dois ou três lances, sim. Quando chegava à frente do guarda-redes, já estava cansado, ahahaha. E uma coisa engraçada, esse jogo foi no meu dia de anos
Maravilha.
E foi no primeiro ano de FC Porto, depois de dois empréstimos.
Onde?
Covilhã, primeiro, e Varzim, depois. Rodei sempre com o Artur Jorge. Só me impus na equipa com o Ivic.
Havia diferença?
Não tive tempo suficiente com o Artur Jorge, fazia seis, sete dias de pré-época e era emprestado. Com o Ivic, o que posso dizer é que ele olhava para todos de forma igual. Não havia nomes nem consagrados nem vedetas. Jogava quem dava tudo nos treinos.
Ivic era cá um personagem.
Ahahah, era mesmo. Estava sempre a desenhar estratégias.
Na cabeça?
Também, mas agora referia-me ao papel. Ele fazia desenhos e explicava-os. Chegou a meter o Semedo a avançado e a central. Gostava de fazer testes. Há uma história engraçada na véspera dessa supertaça, em Amesterdão.
Então?
Ele chama-me à parte e diz-me que vou marcar o número 10.
Quem seria?
Foi campeão europeu pela Holanda ano seguinte, em 1988. Tinha um bigode. Era craque da cabeça aos pés, já com 33/34 anos.
[entro na ficha de jogo] Wouters, bingo.
Bingo, Jan Wouters.
Marcar o Wouters?
Para o Ivic, se lhe mordesse os calcanhares e roubasse a bola, o Ajax não seria o mesmo.
E que tal?
Era craque mesmo, o Wouters. Ou jogava na antecipação ou então nada feito. Era impossível roubar-lhe a bola.
Mas funcionou?
A grande táctica foi recuar o Fernando [Gomes]. A defesa acompanhava-o e eu subia de repente.
Golo do Sousa, e já sem o Cruijff no banco do Ajax [em Janeiro 1988]. O FC Porto do Ivic ganhou campeonato, Taça de Portugal, Supertaça europeia e Taça Intercontinental. Ainda me lembro de sermos assobiados e levávamos cinco ou seis pontos de avanço. Éramos eficazes, ganhávamos sempre e, mesmo assim, os adeptos não gostavam.
Porquê?
O Ivic era defensivo no sentido em que só ganhávamos por um ou por dois. Ele nunca foi bem-amado pelos adeptos porque a filosofia dele nunca passou por golear. No fundo, só perdemos três jogos nessa época. Um para o campeonato, com o Sporting. E dois para a Taça dos Campeões, ambos com o Real Madrid.
Essa eliminatória, pois é.
Começámos os dois jogos a ganhar e perdemos os dois por 2:1, um em Valencia, campo neutro, e outro na Antas.
Tire-me uma dúvida: há um Moreira que acompanha o Rui Barros dos 12 aos 19 anos. Porquê essa perseguição?
Ahahahah, o Moreira era meu vizinho e fomos sempre grandes amigos. Tinha um belo pé esquerdo, começámos nos iniciados dos Aliados de Lordelo com os bilhetes de identidade de outros rapazes, ahahahah. Na época seguinte, todos os iniciados do Aliados subiram para os juvenis e acabaram com os iniciados. Ficámos sem clube e fomos para o Rebordosa. Depois, Paços de Ferreira. Finalmente, FC Porto. Assinámos por dois anos e, curiosamente, o Moreira até joga mais do que eu. Ele à esquerda, eu a 8. Fomos campeões nacionais com o António Feliciano a treinador.
Eischhh, o Feliciano. Uma das torres de Belém.
Era impressionante, um homem que ia para a frente nos exercícios físicos e exigia o máximo de nós. Se não correspondêssemos, nesses testes ou no treino com bola, ele invadia o campo e fingia que ia dar-nos um pontapé no rabo. Nunca nos dava, mas ficava ali a dica. Ahahah.
Então e o Moreira?
Ele jogava, eu não. Porque era franzino, só pesava 51 quilos, e o Feliciano preferia jogadores mais altos e robustos. Ao longo da época, lá me fui impondo por conta da minha habilidade. Fiquei no FC Porto e o Moreira voltou ao Paços, onde se lesionou. Quando fui emprestado ao Covilhã, ainda o tentei levar comigo, mas ele era filho único, sem pai e muito agarrado à mãe. Resultado, preferiu ficar perto da mãe.
E como é que o Rui chega à Covilhã?
Ahahaha, é comédia.
Estamos cá para isso mesmo.
O Vieira Nunes tinha pedido jogadores ao Artur Jorge para atacar a subida à 1.ª divisão e o Artur escolheu-me a mim. Ao fim de oito dias de pré-época nas Antas, disseram-me que ia ser emprestado e fui para casa. Um dia, o senhor Luís César liga-me para o café e diz-me que há um clube interessado.
Já era o Covilhã?
Exacto, que eles estavam à minha espera e podia ir no autocarro das 5 e 20 da tarde que partia da Batalha.
De autocarro?
Ainda não tinha carro.
Maravilha.
Cheguei às onze e picos à Covilhã, sem ninguém à minha espera. Havia uma praça de táxis perto da estação e perguntei pela sede do Covilhã a um taxista simpático. Era logo ali, numa ruazinha. Fui, bati à porta e apresentei-me.
O diálogo deve ter sido hilariante.
Foi, por acaso foi.
- Quem é você?
- Vim do FC Porto
- Quem te mandou?
- Luís César.
O senhor da entrada entrou numa sala e apareceu outro senhor, que abriu a porta e olhou em frente. Como eu estava atrás de um balcão, ele ficou meio baralhado. Mas não se desfez e indicou-me a residencial onde ia passar a noite mais o horário do treino no dia seguinte.
E?
Fui para a residencial, dormi e, na manhã seguinte, pedi boleia para o estádio a outros jogadores naquela situação, todos eles brasileiros.
![]() | Rui Barros 19 títulos oficiais |
Era isso que ia dizer agora, há outro diálogo na manhã do treino. Porque o Vieira Nunes não me ligou nenhuma, não sabia quem eu era e, quando me cansei de esperar na bancada, fui ter ao balneário. Bati à porta, estava já ele a dar a palestra e todos os jogadores equipados.
Isto promete.
Ele olhou e perguntou-me quem eu era. Disse que era para treinar.
Ahahahah. E ele?
Quem te mandou? Vens de onde? Ah és o Rui, então vai buscar o equipamento e vem treinar.
A partir daí, o Rui vira figura.
Tive sorte, porque joguei sempre e o Covilhã não subia há 34 anos e foi campeão da zona centro. A equipa era boa, havia César Brito, Margaça, Escurinho, Saucedo, Joanito, Toninho. A equipa era boa. Comecei a aparecer nos jornais, lembro-me bem de uma reportagem na Gazeta dos Desportos e até o FC Porto me renovou o contrato por mais um ano.
E depois da subida à 1.ª?
Julgava que ia estrear-me na 1.ª, e o presidente do Covilhã também. Só que o FC Porto preferiu mandar-me para a filial número um, o Varzim.
Adiou-se o sonho da 1.ª?
E voltei a subir, agora via liguilha, com Aves, Águeda e União da Madeira. Acho que marquei o golo da subida [confirma-se, 2:1 vs. União na Póvoa a 22 Junho 1986]. Era uma bela equipa, com Vata, Lufemba, Baltemar Brito, Nelinho, N’Habola, André, o irmão do André do FC Porto. Começámos a época com o Félix Mourinho e, em Janeiro, entrou o Henrique Calisto.
E o José Mourinho ia aos treinos?
Aparecia de vez em quando, sim. Era um menino, ainda. E eu também. Só tinha 21 anos.
E ia estrear-se finalmente na 1.ª divisão?
É verdade, chego ao FC Porto e faço uma primeira época totalmente inesperada. Nunca pensei em jogar tanto. Marquei 18 golos em 47 jogos.
Como era esse FC Porto? A começar pela baliza.
O Zé Beto era o meu colega de quarto.
A sério, quiseram juntar a experiência com a juventude?
Acho que quiseram foi juntar um fumador com um não fumador, ahahah. A sorte é que o Zé fumava na varanda.
Há imensas histórias dele, a de levar o cavalo para a Petúlia é um mimo.
Isso já foi antes do meu tempo, mas o Zé era uma figura. Também havia jogadores com motos, como o Jaime Magalhães. E havia o Rui Barros a ir de carro vermelho para os treinos.
A sério?
Só tirei a carta no tempo do Varzim e comprei um carro no stand do senhor Santos, o presidente do Covilhã. Como não havia outra cor, o meu primeiro carro foi um Opel Corsa vermelho. Tantas vezes entrei envergonhado na Póvoa e nas Antas.
Já agora, como é que ia da Covilhã para o Porto?
Só ia a casa de três em três semanas. Como o jogo era sempre às três, apanhava o comboio para a Guarda, depois às 23 para a Pampilhosa e dormia num compartimento qualquer, que hoje já não se usa, até às sete da manhã no Porto. Ficava segunda-feira em casa e fazia a viagem de volta na terça. Só regressava aos treinos na quarta.
E no Varzim?
Ia de Lordelo para a Trindade de autocarro e, depois, comboio para a Póvoa.
Caramba, que aventuras. Era mais fácil no FC Porto.
Tudo foi mais fácil no FC Porto, embora não o fosse à partida.
Então?
Era uma equipa muito madura, com os finalistas europeus da Taça das Taças 1984 e Taça dos Campeões 1987. Jogavam todos muito, entrar ali era uma oportunidade de ouro. O Ivic acreditou e apostou. Deu certo.
Como é que era a frente de ataque?
Madjer, Gomes e eu. Ou então o Jaime Magalhães no lugar do Gomes.
E o ambiente de balneário?
Uma pérola. O Lima Pereira, por exemplo, era muito engraçado: atirava-me ao ar, metia-me às cavalitas. O João Pinto era outro, só fazia asneiras: colava os sapatos ao chão, entornava água em cima da cabeça.
E o Mlynarczyk, por exemplo?
Era mais sério e recatado. Nós passávamos o estágio a jogar às cartas e ele só queria fumar o seu cigarro e tomar o seu chá.
E falava bem português?
Sabia tudo. Tal como o Mielcarski, outro polaco que apanhei mais à frente no FC Porto.
Uma época e, de repente, vai para a Juventus. Como assim?
Nunca pensei em sair, nem julgava possível. Só queria jogar no FC Porto e a transferência foi de um dia para o outro. Acho que foi a 20 Julho. Treinei-me com normalidade e fui para casa. À noite, liga-me o tal Luís César para o café de sempre, o café do Carvalho, a dizer que tinha de ir para o Hotel Sheraton às dez da noite. Cheguei antes da hora e estavam lá o Luís César, o Teles Roxo e o Luciano D’Onofrio. Só faltava o presidente.
E agora?
O Luciano fala-me de um clube interessado e informa-me que o presidente só chega às 11. Fiquei ansioso e o Luciano aconselhou-me a dar uma volta.
E foi?
Fui ter com o Jaime Pacheco [outra figura de Lordelo] para desabafar. É que estava mesmo ansioso e nem sabia de nada, de qual era o clube.
E o Jaime?
Só me disse isto: ‘vai, não olhes para trás’.
De regresso ao Sheraton?
O presidente pergunta-me ‘tu queres ir?’. Ele perguntava sempre isso aos jogadores com propostas. Disse-lhe que sim, era um salto grande. E ele disse ‘então está feito, vamos reunir-nos’.
Ali no hotel?
Foi, o presidente reuniu-se com a Juventus e o negócio fez-se em meia-hora. E informaram-me que ia para Turim na manhã seguinte.
Logo assim?
Fui para casa, acordei os meus pais e ainda me lembro da minha mãe a dizer ‘vais para tão longe’. Ahahahah.
Dormiu alguma coisa?
Nada, só queria acordar no dia seguinte para viver a nova realidade.
E que tal?
Acordei em casa dos meus pais, bebi a minha meia de leite e fui buscar as chuteiras às Antas. Deviam ser umas oito da manhã e já estavam os do costume: Sousa, Gomes, Lima Pereira, João Pinto. Todos a perguntarem-me o que estava ali a fazer.
E o Rui?
Disse-lhes a verdade da Juventus.
E eles?
Oh, ninguém acreditou. Saí das Antas e fui apanhar um jacto privado para Turim. Lá dentro ia o presidente da Juventus, um senhor do futebol chamado [Giampiero] Boniperti.
E o Agnelli?
A família Agnelli era a dona da Juventus, o presidente era nomeado por ela.
Fomos para a sede do clube, tudo muito em segredo. Falámos dos pormenores, vais ganhar isto e aquilo e és apresentado à imprensa daqui a uma hora. Como tinha o cabelo encaracolado, já um bocado grande, o Boniperti disse-me que não era o esse o estilo da Juventus e chamou o seu chofer para me levar a um parrucchiere [cabeleireiro] da sua confiança.
G’anda pinta.
Cheguei a tempo da apresentação, claro, e estavam lá uns 40/50 jornalistas. No dia seguinte, segui para o estágio na Suíça e, aí sim, foi um mar de gente. Estavam lá umas cinco mil pessoas.
Para ver o Rui?
Os três estrangeiros, eu, Michael Laudrup e Zavarov. Só podiam jogar dois, a concorrência era feroz. O Laudrup foi-se embora e a Juventus contratou o Aleinikov.
Outro da URSS?
Exacto. Agora é bielorrusso e vive em Itália, perto de Lecce.
E o Zavarov?
Vivia em Kiev, na última vez que falei com ele.
Só craques.
Havia mais, muitos mais. Apanhei o Schillaci, ainda longe de saber que ia ser o melhor marcador do Mundial-90. O Toto é engraçado, ainda hoje: siciliano de Palermo, está sempre a dizer-me que vem cá um dia.
E?
Nunca veio, ahahahah.
Ver um jogo, é isso?
Ver o filho que estuda medicina dentária no Porto. Ahahahah. Era lixado, o baixinho, dentro de campo. Fiz dupla com ele no primeiro ano. No segundo, já foi o Casiraghi.
E o Altobelli?
Que figuraça, adoro-o. Já tinha 34/35 anos e vivi na casa dele nos primeiros tempos de Juventus. Quero dizer, entre o hotel e a minha casa, o Altobelli deu-me casa por uns 15 dias. Espectacular. Aliás, sempre me senti sortudo por ter ido para Itália.
Porquê?
Os italianos são top, eram muito profissionais e, ao mesmo tempo, descontraídos. A seguir aos jogos, almoçávamos ou jantávamos juntos. Ainda hoje, estamos juntos.
Ao vivo e a cores?
Temos um grupo no whatsapp. As tecnologias assustam-me um pouco, mas há coisas que valem a pena. Como este grupo. Estamos lá todos e interagimos para as coisas boas e más.
Tais como?
A morte do Boniperti. Ou a do Bonini, um jogador de São Marino que jogava connosco. O AVC do Tacconi.
O Tacconi, pois é.
Estava sempre a gozar comigo pela final da Taça das Taças 1984 com o FC Porto.
E o Laudrup, que tal?
Era reservado. E, como dizíamos na gíria, 'uma vadiolas'. Com a bola nos pés, artista. Craque. Às vezes, ficava deliciado a vê-lo a meio de um treino.
E porquê a saída abrupta da Juventus?
A Juventus sempre foi assim, de remodelações. Um dia, o Boniperti chama-me, informa-me da remodelação e da saída do Zoff.
A Juventus tinha ganhado Taça de Itália e Taça UEFA, certo?
Certíssimo. O Boniperti disse-me que havia propostas de Itália, França, Inglaterra e Escócia. Escolhi a italiana, porque sabia que o Zoff ia para a Lazio e queria levar-me. Quando a Juventus soube, a conversa mudou e aí já não podia ir para outro clube italiano, tinha obrigatoriamente de sair do país.
E?
Fui para o Monaco. Se bem que o Eriksson ligou-me.
De onde?
Benfica.
Ah?
Ligou-me directamente a manifestar o interesse.
E o Rui?
Disse-lhe a verdade, queria ficar mais anos no estrangeiro e agradeci.
E quais eram os clubes internacionais?
Celtic, West Ham e Everton.
Porquê o Monaco?
Mais perto de casa.
E a equipa?
Lá à frente, Weah, Ramón Díaz e Djorkaeff.
Almoçava com o Ramón Díaz, já era um trintão. O Weah era reservado e foi dos avançados que mais gostei de ver, craque da finalização, número 9 à séria. Quando ele saiu do Monaco, para o PSG, acho, entrou o Klinsmann. Bem, que seriedade a trabalhar. E que capacidade atlética. Tecnicamente, não era extraordinário, não era um Weah ou um Van Basten, mas a finalização e o poder de antecipação eram top top top. E é engraçado, o Klinsmann.
Então?
Foi ele quem me arranjou os bilhetes para a final do Euro-2004 entre Portugal e Grécia. Trabalhava numa empresa qualquer e fui ter com ele a Lisboa. Ainda bebemos um copo.
Grande espectáculo. Esse Monaco ainda tinha algumas jovens pérolas.
Sim sim, Petit e Thuram. Ainda hoje falo muito com o Petit, vive em Paris. É um artista e não ligava naaaaada ao futebol. Naaaaada é mesmo naaaaaada. Se lhe perguntasse com quem íamos jogar no sábado, ele não sabia. Nem queria saber. Era o Petit e o Barthez. Os dois eram completamente despassarados.
E, já agora, o treinador era o Wenger.
A história é engraçada, porque o tal Bonini levou-me ao Monaco, directamente para o centro de estágio. Não passei pelo presidente nem por nenhum dirigente, fui directo ao Wenger. Entrei numa sala cheia de cassetes. Estamos no início dos anos 90, está bem?
Claro.
Uma sala cheia de cassetes e ele sabia tudo sobre mim. Tudo. À nossa frente, um quadro a imitar um campo de futebol com dez peças. E ele tinha uma peça na mão, de uma cor diferente.
Uauuuu.
Ele diz-me ‘preciso de um jogador para este lugar, quero saber se és capaz e se estás interessado?’
Qual era a posição?
Descaído para a direita, tipo 7, 8. Ah, e pormenor, o Wenger falava italiano. Entendemo-nos às mil maravilhas. Disse-lhe que sim e fomos ao estádio para assinar contrato. O Wenger foi o meu primeiro treinador com táctica nos treinos.
Então?
Fazia treinos de seis contra quatro. Ou então fazia treinos com balizas pequenas. Gostei muito dele, ganhámos uma Taça de França e fomos à final da Taça das Taças.
Werder Bremen, na Luz.
Joguei lesionado, depois fui operado a um tendão. Quase não treinava, era à base de infiltrações. Mesmo assim, marquei de cabeça à Roma na meia-final. Os italianos ficaram loucos, ahahahah.
Bem visto. De volta a Itália. A Juventus era o patinho feio, não?
Havia grandes grandes grandes equipas. O Inter dos três alemães, o Milan dos três holandeses, a Sampdoria do Boskov, o Nápoles do Maradona. Com o Milan, lembro-me perfeitamente dos problemas que era para passar o meio-campo. O Sacchi era um perfeccionista e um visionário. E o jogador mais difícil de passar em toda a minha carreira foi o Maldini. Que bicho, foge. E eu era rápido, mas ele sabia tudo do jogo: posicionamento, força, timing.
A pressão era muita?
Acabávamos o treino na Juventus e tínhamos sempre 20 jornalistas à perna. Todos os dias. O Zavarov queimou-se à conta disso. Para já, não falava italiano e estava sempre acompanhado por um intérprete. Depois, raramente queria falar. Claro, os jornalistas fizeram-lhe a folha. No Monaco, o mundo totalmente ao contrário. Os jornalistas apareciam lá de 15 em 15 dias, só quando era um jogo grande com Marselha, PSG ou então Liga dos Campeões.
Por falar em Marselha, que tal o Olympique?
Essa equipa era de tipo mundial. Barthez, Di Meco, Boli, Casoni, Deschamps, Desailly, Völler, Stojkovic, Boksic. O Stojkovic era impressionante com a bola no pé.
Apanhou Klinsmann no Monaco e Völler no Marselha, curioso.
O Klinsmann mais expressivo, o Völler mais reservado. Há tempos, por ocasião do FC Porto-Bayer Leverkusen, apanhei-o na bancada e ainda falámos um pouco.
Apanhou o Futre no Marselha. Ou vice-versa.
Ahahahahah, O Futre, só aventuras. Estivemos juntos uns três meses. Se não me engano, naquele tempo, o mercado de transferências era em Agosto, Outubro, Janeiro e Março. Havia quatro janelas e o Futre chegou em Agosto ao Marselha e foi em Outubro para a Reggiana, emprestado pelo Milan.
E o Rui?
Assinei por três anos mais um de opção com o Monaco. Fiz os três e eles queriam que eu ficasse. De repente, estou de férias e liga-me o Sousa Cintra. ‘Vens para o Sporting, já comprámos o teu passe ao Monaco.’
Grande barraca, e o Rui?
‘Ó presidente, não quero ir, quero ficar em França.’ Lá tivemos uma reunião em Belém, numa vivenda dele. Ele sempre a insistir e eu sempre a dizer que não. Liguei então para o Luciano D’Onofrio e ele aconselhou-me a não assinar nada. No último dia do mercado, já tínhamos tudo feito com o Tapie e, à última hora, entrou o contrato com o Marselha. A ideia era jogar esse ano no Marselha e voltar ao FC Porto a custo zero.
E foi assim?
No dia 22 Abril, nunca mais me esqueço porque é o dia de aniversário da minha mulher, encontrei-me com o presidente em Genebra e assinámos um contrato com o FC Porto.
Falou há pouco do Tapie.
Conheci o Tapie em Paris, onde morava. Ele nunca ia aos treinos e ia sempre aos jogos. Por norma, chegava à hora do almoço e gostava de ouvir a palestra do treinador às cinco da tarde, umas três horas antes do jogo.
E intervinha?
No início, não. Depois, fazia uso da palavra para falar do clube Marselha, da cidade Marselha. Mais tarde, já completamente à vontade, subia ao palco e dizia o que os jogadores deviam fazer ou não. Com o treinador ali ao lado, ahahah. E; atenção, quando ele chegava mais tarde do que o previsto, tínhamos de estar na sala à sua espera.
Beeem.
Gostava muito de dar palpites. Por isso é que o Beckenbauer só treinou o Marselha um mês ou dois. Fartou-se das intromissões. Isso era uma história muitas vezes contada.
E o Rui vivia onde, em Marselha?
Curiosa a pergunta. Primeiro num apartamento, depois vivenda.
E é curioso?
Porque tive de mudar a meio da época. Os meus filhos eram muito novos e faziam barulho com as bolas de futebol à noite. Então os vizinhos falavam comigo e eu optei por uma vivenda em Cassis, um paraíso em Marselha. Estive lá há um ano de visita, que maravilha.
E o Futre, insisto.
Ahahahah. O treino era às 10, já com todos equipados. E o Futre aparecia às dez menos um minuto por se equipar. E pedia-me para acordá-lo, queria que fosse o seu despertador, ahahahah.
O regresso ao FC Porto é tranquilo?
Muito, com Robson. Ele promovia concurso de remates no final do treino e ficava deslumbrado com a nossa pontaria. Quando acertávamos, claro.
Depois é o António Oliveira.
Não fui chamado por ele para o Euro-96 e foi uma grande mágoa. Nesse Verão, ele é anunciado sucessor do Robson. Ahahahah. Joguei sempre com ele no FC Porto, a vida dá voltas. Gostava de mim, veja lá.
O Rui falha o Euro-96, mas faz apuramento para o Mundial-98.
Verdade, com o Artur Jorge. Aquele jogo na Alemanha, que pena.
E a qualificação para o Mundial-94?
Aqueles dois golos à Escócia na Luz, ganhámos 5:0 e foi uma noite de glória. Mais uma vez, foi pena. Apuravam-se dois e a Suíça lembrou-se de ganhar à Itália.
O Rui é penta?
Sim senhor. Há uns quantos. Folha. Paulinho. Aloísio?
Um dos rostos mais visíveis do penta sem ter sido penta é o Jardel.
Nunca vi ninguém com o dom dele na área. Os adversários só olhavam para ele, nem sequer queriam saber da bola. E ele marcava, mesmo assim. A gente enervava-se com ele.
A gente, quem?
Nós, no treino.
Então?
Se o defesa passasse por ele, desinteressava-se do lance, não ia atrás, não lutava pela bola. E ele é que tinha razão, ahahahah. A verdade é que metia todas. A outra verdade é que era um homem com cabeça de menino. Muito ingénuo.
E vocês faziam as vossas tropelias, imagino.
As tropelias eram aos outros.
Ai era?
Havia uma regra: almoço com todos os jogadores às sextas-feiras. Claro, nem sempre iam todos, mas fazíamos por ir. E o Oliveira obrigou-nos a treinar à tarde.
Beeeem.
Isso mesmo. Beeeem. Foram só dois treinos.
Porquê?
A gente chegava lá e nada.
E o Oliveira?
Mudou a rotina para banhos e massagens.
Melhor ou…?
Pior, muito pior. A malta chegava lá e fazia asneiras atrás de asneiras. Os pobres do Rodolfo Moura e do José Luís nem sabiam o que fazer. Depois queixavam-se a quem de direito.
O que vocês faziam?
Metíamos água e sabão em cima das macas, atirávamos às macas ao chão. Enfim, havia muita imaginação
E o resultado?
O Oliveira abandonou os banhos e as massagens.
Lógico.
Havia compromisso e união. Fomos penta.