ikercasillasbestgk 25-04-2024, 00:12
Não é Fígaro, o famoso Barbeiro de Sevilha criado por Rossini no início do século XIX, mas no mundo do futebol não há quem não o conheça.
Eric Freire Gomes, o eterno Gaúcho, é um dos nomes grandes da liga portuguesa dos anos 90, um resistente ao virar do século, armado apenas de golos. Por oposição a Fígaro, aliás, Gaúcho é discreto e evita a arte de espalhar boatos. Os 50 anos dão-lhe a maturidade que a vida nova lhe exige.
O zerozero submete-se à cadeira de Gaúcho. Vai ao corte do cabelo e à conversa apalavrada de véspera, a propósito dos decisivos Estrela da Amadora-Marítimo que aí vêm.
Não há interlocutor mais apropriado. Gaúcho é o melhor marcador da história do Estrela, 55 golos entre 1996 e 2001 – Ricky, o segundo melhor, ostenta 31 -, e o quinto mais acertado de sempre com a camisola do Marítimo: 39 golos, de 2001 a 2004.
«Eu não corto cabelos», adverte Gaúcho, já com Leo de máquina em punho, ao lado da cadeira das confissões. «Esse menino aí joga nos juniores do Fiães e o Andrade, que foi meu atleta no Brasil, está no Arrifanense.»
Andrade, de tesoura e pente, atende o cliente ao lado. O espaço respira futebol. À frente da mesa de snooker, de pano vermelho, o mostruário tem joias antigas encaixilhadas e nomes mais do que familiares ao visitante. «Essa é do Pepe, que foi meu colega no Marítimo, e ao lado está a do Alan no SC Braga, outro amigo.»
Mais à direita, o azul e branco é do Deportivo galego, da Corunha. Culpa de Jorge Andrade, «um irmão para a vida». «O Jorginho é de Lisboa, mas a esposa nasceu em Ovar e ele passa aqui a vida. Mal entra, já sabemos, é só rir. Um palhacinho bom.»
Dos golos ao negócio dos cabelos. Gaúcho explica a transformação, qual Kafka, e lembra «o difícil final de carreira», com um regresso sem sucesso ao Brasil, até 2016.
«Os meus filhos estavam a crescer e sentimos que a segurança de Portugal seria o local ideal para eles viverem. A minha esposa é natural da Feira e cá estamos.»
Estrela da Amadora-Marítimo, o playoff contado a partir da barbearia de Gaúcho.
zerozero – A barbearia está espetacular. Como é que surgiu este negócio na vida do Gaúcho?
Gaúcho – A minha esposa tinha o sonho de abrir um salão de cabeleireiro e avançou com isso ainda no Brasil. Quando voltámos a Portugal, ela trouxe dois dos funcionários connosco, mas o clima aqui no inverno é duro e eles tiveram dificuldades. Foi nessa altura que decidimos mudar o negócio de cabeleireiro para barbearia. Assumi a gestão do local.
zz – Mas não corta cabelos.
G – Isso não (risos). O Leo vai tratar bem de você, não se preocupe. Eu recebo os clientes, 90 por cento são meus amigos e isto é um espaço para falar de futebol também. É muito mais do que uma simples barbearia. O Jorge Andrade é uma das visitas obrigatórias, é como se fosse um irmão mais novo. Conheço-o desde os 17 anos, lembro-me dele nos batizados dos meus filhos. Vi-o a começar a jogar e percebi que era um menino diferente. É muito fácil gostar dele.
[Leo, o barbeiro, entra em ação e pergunta ao freguês como vai ser o corte]
[o freguês pede o pente quatro em cima e o três dos lados e atrás – Leo avança]
zz – Por falar no Jorge, o Estrela da Amadora tem dois jogos decisivos contra o Marítimo para o playoff de manutenção.
G – Tenho quase 100 golos, entre os dois clubes [94], e pergunto muitas vezes à minha mulher: ‘Como é que eu nunca joguei num dos três grandes de Portugal?’.
zz – Tem resposta para essa pergunta?
G - Se calhar não merecia, não sei. Mas não me arrependo de nada, fiz tudo o que sabia. No zerozero vocês podem confirmar esta informação: eu sou um dos futebolistas que mais golos marcou a FC Porto, Benfica e Sporting. Mais do que o Liedson, do que o Jardel, fiz 15 ou 16 golos aos três grandes [sete ao Benfica + seis ao FC Porto + três ao Sporting = 16]. Eu era muito bom a finalizar, precisava de poucas oportunidades para marcar, esse era o meu forte. Consegui esses números com clubes que não lutavam pelo título.
G – Do ‘meu’ Estrela… isso é muito bonito. Fui muito bem recebido em 1996 pelo Rebelo, um grande capitão. O Fonseca, o Renato, o Rui Neves, o Leal, o Pedro Simões, o Chainho, o Jordão, continuamos a ser uma grande família e temos um grupo de whatsapp só nosso. Estamos a combinar um jantar agora na Amadora para recordar esses dias. Foram cinco anos maravilhosos, com dois treinadores marcantes: o Fernando Santos e o Jorge Jesus.
zz – Como era esse Fernando Santos de 1996?
G – Um homem fechado, hoje é mais flexível. Passava a mensagem com objetividade e todos percebíamos o que ele queria. Ajudou-me muito e o Jorge Jesus deu continuidade a essa evolução.
zz – Um homem completamente diferente.
G – Nada a ver (risos). Taticamente, o Jorge estava mesmo muito à frente do seu tempo.
zz – Foi no ciclo do Jesus que saiu por empréstimo para o Ourense, em Espanha. Decisão do Gaúcho ou do treinador?
G – O Ourense estava em grandes dificuldades e abordou o presidente José Maria Salvado, figura histórica do Estrela. Pediram o meu empréstimo e financeiramente foi uma excelente solução para mim. Mas fui, acima de tudo, para ajudar com golos durante seis meses. E voltei ao Estrela no final da época.
zz – Voltou e fez a melhor época da sua carreira, com 21 golos.
G – Voltei cheio de fome (risos). A equipa era boa, espetacular, vai ficar para sempre marcada no meu coração. O Jesus era um chato positivo, fazia aquela pressãozinha constante, mas eu reagia bem a isso.
zz – Terá muitas histórias com ele, de certeza.
G – Claro, é uma figuraça. Na manhã do dia dos jogos, por exemplo, fazíamos sempre um treininho de 20/30 minutos sem bola. Só com movimentações. Quando o jogo começava, toda a gente sabia para onde ir, ao centímetro. Era um técnico espetacular.
zz – O Fernando Santos foi para o FC Porto e levou o Chainho, o Rodolfo e o Paulo Ferreira. É verdade que o Gaúcho também esteve para se mudar para as Antas?
G – É verdade. 25 anos depois, posso confirmar que essas notícias eram verdadeiras.
G – A situação foi muito triste. Eu pensava que estava tudo feito, mas não estava. Lembro-me até de um jogo nas Antas, em 2000 ou 2001. O Jorge Andrade veio falar comigo e disse-me assim: ‘Se nos marcares um golo, não festejes. O Pinto da Costa já me veio perguntar sobre ti, o teu nome anda a ser falado.’ E não é que num dos primeiros lances do jogo eu marquei logo? [2-1 para o FC Porto, janeiro de 2001] O Jorge Costa até veio ter comigo durante o jogo, grande Bicho. ‘Gaúcho, para de correr, pá. Já sabemos que assinaste pelo FC Porto, chega’. E eu, muito correto. ‘Jorge, não assinei, não é verdade’. E foi isso. Portanto, na minha carreira só não festejei golos ao FC Porto (risos).
zz – Mas percebeu o que se passou para não ter assinado pelo FC Porto?
G – Não, não sei se o presidente do Estrela pediu demasiado dinheiro, se o Fernando Santos resolveu não me contratar, até hoje tenho dúvidas. Sei que falámos muitas vezes, em diferentes épocas, e acabei por nunca assinar pelo FC Porto. Numa das ocasiões, o FC Porto acabou a anunciar o Pizzi, que jogava no Barcelona. Fez quatro golos.
[as patilhas ficam ou saem? Dúvida existencial desfeita pela máquina de Leo. Adeus, patilhas]
zz – Em 2000, foi o terceiro melhor marcador do campeonato.
G – Atrás do Super Mário [Jardel] e do Acosta. E em 2002 marquei 15 e estava na frente da lista, quando me lesionei. Foi quando o Fary acabou com 18 e foi o Bota de Prata.
zz – Como era a atmosfera na Reboleira?
G – Fanatismo familiar. Eu explico (risos). A malta vivia toda na zona da Amadora, próxima do estádio, e a Reboleira era um ponto de encontro. Havia uma grande proximidade entre o plantel e os adeptos, o Estrela tinha grandes equipas e andava muitas vezes a 'cheirar' a Europa.
zz – O Gaúcho é, a larga distância, o melhor marcador da história do Estrela. Os dirigentes atuais procuram-no, tentam saber como está, convidam-no para os jogos?
G – [pausa] Olhe, adorava responder de forma diferente, mas não. Nada. Falo com o Jorge Andrade sobre isso. Não há ninguém do nosso tempo envolvido na estrutura do clube, mas desejo as maiores felicidades a essa grande instituição. Ainda ontem adormeci a ver fotografias desse tempo, no balneário e em jogos.
zz – Qual foi o melhor golo marcado com a camisola tricolor?
G – Foram muitos, não é fácil (risos). São tantos… há aquele contra o FC Porto, de penálti, mesmo no fim [2-2, 28 de fevereiro de 1997]. No final foi uma confusão, com polícia lá pelo meio. Rapaz, um caos. Há um 3-0 ao Benfica [27 de fevereiro de 2000] e eu marquei dois bons golos e também um 2-2 em Alvalade. Nesse jogo estava o de Wilde na baliza do Sporting [22 de novembro de 1997]. Fiz golos a muitas feras: PreudHomme, Vítor Baía, De Wilde…
zz – O Gaúcho era um avançado elegante. Parecia não jogar em esforço.
G – Nós tínhamos um roupeiro no Estrela, o sr. Miguel, que dizia assim: ‘Lavo todos os equipamentos, menos o do Gaúcho. Esse gajo nunca suja a roupa’. Os analistas diziam que eu era um avançado completo. Nunca jogava do lado da bola, posicionava-me sempre do lado oposto. Rematava bem de pé direito e de pé esquerdo, e fiz muitos golos de cabeça, sem ser um gigante. Meço 1,81 metros, mas colocava-me bem e tinha boa impulsão. Jogava bem de costas também.
zz – Em 2001 mudou-se da Amadora para o Marítimo. O que o atraiu no clube e no Funchal?
G – É engraçado, porque nessa altura muitos jogadores recusavam jogar na Madeira, por culpa das viagens de avião e do tamanho da pista do aeroporto, que era muito curta. Havia gente com pânico de ir ao Funchal. Alguns até inventavam lesões para não terem de ir lá (risos). O convite surgiu através do professor Nelo Vingada, que era meu admirador e tinha, anteriormente, tentado levar-me para o Benfica.
zz – Ele foi adjunto do Graeme Souness na Luz.G – Exatamente, mas o Souness saiu no fim da época e o Nelo também saiu. Não se esqueceu de mim. Três anos depois, fui trabalhar com ele no Marítimo. A reunião foi feita no Casino do Estoril, foi lá que assinei o meu contrato. O Nelo Vingada deixou-me muitas saudades, é um senhor, não ouvimos um palavrão da boca dele. É um amigo para sempre.
zz – O Marítimo era um clube ambicioso, jogava quase sempre nas provas da UEFA.
G – Eu cheguei lá e disse no aeroporto que ia fazer 15 golos no campeonato.
zz – Conseguiu?
G – Cheguei à última jornada e tinha 13. Último jogo: Marítimo-Benfica. Ganhámos 3-2 e eu marquei dois golos (risos). Cumpri o prometido. E repeti a promessa para o ano seguinte. Um mês antes de acabar o campeonato, já tinha 15.
[corte completo, carecada perfeita e o Leo lá diz que também tem ficha no zerozero. Verdade, verdadinha, é só ver AQUI]
zz – O Marítimo era um clube muito diferente do Estrela?
G – Pela ambição, sim. Ou seja, no Marítimo o objetivo assumido era a qualificação europeia. Era diferente nesse sentido. O Estrela lutava para não descer e depois tentava chegar lá acima. Gostei de viver na ilha, a minha esposa até gostaria de lá voltar. O clima é espetacular.
zz – Estrela-Marítimo neste playoff decisivo. Por onde pende o coração?
G – Vi logo que alguém ia querer falar comigo (risos). É 50 para cada lado. Pensei que o Estrela ia subir de divisão e nunca pensei ver o Marítimo nesta situação. A equipa até tem um futebol bonito, mas sem 'matador' não há hipóteses. Falta uma referência na área, o futebol é isso, é golo. Vão ser jogos durinhos, sem dúvida. A Reboleira e os Barreiros são campos míticos. O Marítimo joga primeiro na Amadora e pode decidir em casa. Terá essa vantagem.
zz – Vai estar presente em algum dos jogos?
G – Vou estar nos dois (risos). Ninguém me convidou, mas quero ver ao vivo porque são os meus dois clubes de Portugal.
zz – O Gaúcho está afastado do futebol. Gostaria de voltar?
G – Gostaria, tenho esse objetivo. Não como treinador principal, mas integrado numa equipa técnica. Tenho os meus cursos, tenho conhecimento e teria enorme prazer em encaixar num staff. Quem quiser falar com o Gaúcho, é só visitar aqui A barbearia. Porque isto não é só uma barbearia, é também um templo do futebol.
2-1 | ||
Regis Ndo 3' Jean Felipe 80' | Cláudio Winck 87' |