'O meu pé esquerdo'. Ricardo Mangas trata-o por tu, ferramenta diária, delicada peça de trabalho. É de xadrez ao peito que o algarvio, nascido em Olhão, o exibe jogo após jogo. Um talento raro, polido pela maturidade que os os 25 anos lhe confere, muitos golos e exibições de altíssimo nível. Uma das grandes figuras portuguesas na Liga Bwin.
A porta do elevador abre-se e o olhar descontraído de Mangas diz ao que vem. A conversa é feita de sorrisos, a postura é relaxada, o mesmo à-vontade demonstrado no relvado. Ricardo divide os dias entre os campos do Bessa e o ginásio, um trabalhador «incansável», que não abdica da sua «ética profissional». Para lá dos portões pretos e brancos há outra vida e outras paixões, a moda e a fotografia, confessa ao zerozero.
«Aqui a exigência é diferente», desabafa, ainda antes da primeira pergunta, já habituado a lidar com a paixão dos adeptos portuenses. Depois da experiência na Ligue 1, com a camisola do Bordéus, Mangas está determinado em colocar o Boavista na parte de cima da classificação. «Este 12º lugar atual sabe a pouco.»
A PARTE I da entrevista incide no ano do Boavista, com um olhar para o lado pessoal e para a amizade forte com João Félix, antigo companheiro na formação do Benfica.
. PARTE II: «A primeira memória do Benfica é ter oito pessoas num quarto»
Ricardo Mangas: Diria que já fiz coisas boas antes, mas está a ser definitivamente uma boa época para mim, tanto a nível individual como coletivo.
zz: É um jogador diferente daquele que conhecemos há algumas épocas. Jogava em posições mais recuadas.
RM: Sou o mesmo jogador, mas estou a jogar um bocadinho mais à frente, com outra liberdade. Quando era lateral, estas já eram as zonas que já gostava de pisar. Depois, claro, os golos, as assistências, as eleições para homem do jogo, tudo isso faz com que a confiança possa crescer. Torno-me um bocadinho melhor a cada dia que passa.
zz: O Petit já o conhece desde os tempos do Tondela, quando o Ricardo era júnior. É importante haver esse grau de confiança que se estende há tantos anos?
RM: Eu fui emprestado pelo Benfica ao Tondela, na altura era lateral e acabei por ser adaptado a extremo já lá em Tondela. Estive pouco tempo com o Petit, de vez em quando ia treinar com o plantel principal e foi aí que o conheci. Eu era júnior de primeiro ano.
zz: É o mesmo Petit ou está muito diferente enquanto treinador?
RM: Não me lembro muito bem dele nessa fase, honestamente. Mas parece-me ser a mesma pessoa e o mesmo treinador.
RM: Os bons resultados e a facilidade com que atingimos os 30 pontos mostram que sim. E a liga portuguesa é muito competitiva.
zz: Que leitura faz sobre o 12º lugar atual? Sabe a pouco ao plantel?
RM: Sabe a pouco porque podíamos ter mais pontos e estar numa posição acima. Fomos melhores do que o adversário em vários dos jogos que não ganhámos. Estamos a criar uma base sustentável para fazer com que o Boavista seja o que foi antigamente.
zz: Quem vive no Porto, particularmente na zona da Boavista, sabe o que é o Boavistão. Os jogadores já conseguem sentir um pulsar diferente, de crescimento?
RM: A exigência neste clube é diferente. As pessoas são apaixonadas e isso torna o Boavista ainda mais especial. Temos de entender o que era o Boavista antigo para reerguê-lo. Essa paixão aumenta a exigência e obriga-nos a crescer. Jogar no Bessa é uma pressão diferente, mas até nem nos podemos queixar da falta de apoio nos jogos fora de casa. Isso é outra prova da grandeza do Boavista.
zz: Em Paços de Ferreira, por exemplo, a bancada visitante estava cheia.
RM: Estava cheia, sim. Isso obriga-nos a dar um bocadinho mais. Temos de passar aos mais novos, aos que chegam, qual é a dimensão e a história do Boavista. É normal que quem vem de fora não a conheça. Acredito que esses valores estão a ser bem passados.
zz: Este 3x4x3 tantas vezes escolhido pelo Petit é benéfico às suas características?
RM: Estou completamente confortável. À direita, à esquerda, não é nenhum problema. Esta época já joguei na direita algumas vezes.
RM: Sou um jogador rápido, não sou pezudo (risos). Considero-me um futebolista inteligente. Julgo que aproveito bem as virtudes do meu jogo.
zz: Os registos dizem que é um dos futebolistas mais rápidos do mundo. Sabia disso? [Ricardo Mangas atingiu uma velocidade de 37,92 km/h no Vitória-Boavista – o recorde mundial pertence a Sven Botman, central do Newcaste (39,21 km/h)]
RM: Sabia disso (risos). Fiquei surpreendido, honestamente, mas trabalho muito para ter esses dados estatísticos. Mesmo fora dos treinos normais da equipa. Sou muito trabalhador, tenho uma ética vingada e agradeço a todos os que me permitem chegar a esse nível.
zz: Que tipo de trabalho faz fora do trabalho do plantel?
RM: Faço uma compensação antes e depois dos treinos, no ginásio. Vivo 24 horas para o futebol, cuido de mim, vivo para isto. O trabalho no ginásio, a alimentação, o deitar cedo e acordar cedo são fundamentais. O meu corpo é a minha ferramenta de trabalho e se cuidarmos bem dele teremos uma longevidade maior no futebol.
zz: O que é absolutamente proibido na alimentação do Ricardo?
RM: Fritos e álcool. Na minha dieta não entram mesmo.
zz: A exceção é um copo de champanhe num aniversário?
RM: Se me convidar para o seu aniversário e eu não comer uma fatia de bolo e beber um bocadinho de champanhe, eu acho que vai ficar chateado comigo (risos).
zz: Há alguma exibição desta época que tenha sido perfeita? Aquela que faz com que o Ricardo diga ‘é isto que quero ser’.
RM: Há, há sim. A minha exibição contra o Portimonense, em casa. Acho que foi completa. Marquei um golo, aquele é o Ricardo Mangas. É aquilo que eu quero ser enquanto futebolista.
zz: Consegue chegar a casa e desligar do Boavista ou fica a remoer nas coisas?RM: Tenho uma pessoa que me consegue meter um sorriso na cara todos os dias, felizmente. No pior dia sei que vou chegar a casa e ficar bem, por culpa da minha companheira, a Carly Santos.
zz: Esse equilíbrio é importante. O trabalho não é tudo, também para quem é futebolista profissional.
RM: Temos a nossa vida pessoal e isso custa a entender a algumas pessoas. Há o Ricardo ser humano, que existe fora do futebol. Aceito a exigência, porque estamos num patamar alto, mas é complicado receber algumas mensagens. Estamos frustrados por algum motivo e ainda carregam mais. Se não tivermos força mental para dar a volta, perdemos muita confiança.
zz: Nestes seis anos de profissionalismo, viveu alguma situação realmente incómoda? Algo que o levou a dizer «é muito difícil gerir tudo isto»?
RM: Já tive fases dessas, sim.
zz: Esteve no pior momento do Desportivo das Aves.
RM: É verdade, e faço uma pergunta aos que nos criticavam: se estivessem no nosso lugar, conseguiriam lidar com a situação? Atenção, a época não foi horrível e nada tenho a apontar às pessoas do clube. São pessoas espetaculares e o clube merecia mais, mas houve situações… difíceis.
zz: Por haver tanta coisa fora do futebol, o que se imaginaria a fazer se não fosse futebolista?
RM: Não sei se posso dizer (risos).
RM: Gosto muito de tirar fotografias. Adoro ginásio, gosto de ir ao cinema. Essas duas horas no escuro trazem-me paz. Gosto bastante do mundo da moda. É o meu lado fora do futebol, a moda. Adoro.
zz: Voltando ao Boavista. A nove jornadas do fim da Liga, a equipa está muito perto dos lugares de cima e segura no que é a manutenção. Qual é a tentação para o que resta jogar?
RM: A tentação é pensar jogo a jogo e deixar uma base sustentável para os próximos anos. Sentir que o clube está a dar passos em frente.
zz: No dia da sua estreia na I Liga [7 de dezembro de 2019, Aves-SC Braga], sabe quem escreveu a seguinte frase? «Para estreia na I Liga não está mau.»
RM: … [João] Félix? (risos) Lembrei-me, lembrei-me. É um grande amigo, tenho muito carinho por ele e espero levá-lo para toda a vida.
zz: Conheceram-se no Benfica?
RM: Certo. Vivemos na academia [Seixal] juntos, mas eu sou mais velho um ano e mudei-me, mais tarde, para uma casa. O João continuou, mas passava mais tempo em minha casa do que na academia (risos). Foi nesses momentos que criámos esta grande ligação.
zz: O João é o geniozinho que vimos no Benfica? O geniozinho que procura replicar no Chelsea e na Seleção Nacional?
RM: Até digo mais, o João tem nível de Bola de Ouro. É diferenciado, acho que é a palavra que melhor o define.
zz: Ele segue o Boavista, interessa-se pelo Ricardo?
RM: Sei que ele se interessa pelo campeonato português e tem um carinho especial pelo Benfica.
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