Imparcialmente 09-06-2023, 03:25
Um, dois, três, seis, 12, 24, 48, 96, 97, 98, 99, 100, 101. É a quantidade aldrabada de passos do Estádio Manuel Marques, em Torres Vedras, até ao restaurante Confidencial.
Um, dois, três, seis, 12, 24, 48, 96, 97, 98, 99, 100, 101. É a quantidade exacta de golos de João Tomás, o último português a ultrapassar a barreira dos cem na 1.ª divisão.
Pela primeira vez ao vivo e a cores, divido mesa com João Tomás e, senhoras e senhores, palmas. Porque a genuinidade é um dom raro e João Tomás é a soma de todas chamadas telefónicas, sms e whatsapps trocadas nos últimos dez anos. Descontraído por natureza, responde a tudo com graça. Seja em forma de caretas, seja no registo pensativo para encontrar a palavra certa aqui e ali.
Por tudo isto, a conversa começa em Sevilha. Já nem sei porquê. Só sei que, abracadabra, eis o director desportivo do Torreense.
No meu primeiro ano em Sevilha, fui o melhor marcador do Betis.
Ya, sete golos, uns quatro garantem a vitória [na verdade, são só três: 1-0 vs. Alavés, 1-0 vs. Maiorca e bis no 2-1 vs. Real Sociedad].
A meio da época, parto o pé num treino e passo uns três meses sem jogar. Foi azar.
Como é que foi a lesão?
Num treino, sozinho, a escapar ao guarda-redes. Tinha acabado de marcar ao Espanyol, lá em Barcelona, no Montjuic, ainda joguei no Montjuic, hein?!, e íamos jogar nesse fim-de-semana com o Real Madrid.
Esse Betis chegou a estar em primeiro lugar e até foi à Taça UEFA, certo?
E só não fomos à Liga dos Campeões porque a festa da qualificação para a Taça UEFA foi tanta que os últimos jogos já foram mais de festa. Acho, não me lembro bem.
Achas?
A minha memória tem flashes, ahahah. Lembro-me mais de coisas extra do que jogo propriamente dito. Sou assim, olha.
Sem problema.
Olha, tenho uma boa, um jogo curioso. Com o Tenerife, em Sevilha, atiro três bolas ao poste em 25 minutos e o Juande Ramos substitui-me aos 28’.
Ahahahah.
Verdade.
E o Juande, que tal?
Tinha os seus dias. Todos nós somos assim, certo? Agora há quem tenha mais dias bons que dias maus. E vice-versa, ahahahah.
E o estádio do Bétis é lindo, sentia-se isso a jogar?
E agora, então, está mais bonito. O projecto é muito bom e eles [dirigentes] também têm aquela visão do espectáculo. O futebol é um espectáculo, é uma indústria de entrenetimento. Na américa é que é. Somos quase da mesma idade, não é? Lembras-te da NBA? Michael Jordan, Larry Bird, Magic Johnson, Scottie Pippen. Estamos a falar de há 35 anos e aquilo já era um espectáculo, a gente via pela televisão e ficava vidrado. Só agora é que o futebol está a fazer esse caminho. O Betis, digo-te, tem essa visão. O estádio tem mais uma bancada fechada e aquilo está impecável. Fui lá ver agora o Manchester United, já tinha ido ver a Roma.
Quero ir ver o Cadiz no domingo de Páscoa, vamos lá ver. Começa às 1515, é a melhor hora para ver bola.
Ahahahah, boa boa.
Vi a tua carreira só por treinadores. É uma lista muito boa.
Até apanhei o Henri Michel no Qatar. Era um treinador superfamoso [campeão europeu pela França em 1984]. Gostei muito da experiência no Qatar, até porque levei a família e ficou mais fácil. Nunca mais voltei lá e gostava de o fazer um dia.
No teu tempo, quantas pessoas no estádio?
Umas 500 pessoas. E com sorte. Mas, atenção, tanto no Al-Arabi como no Al-Rayyan já havia condições para treinar muito melhores que aqui em Portugal. E estávamos em 2006, okay? O futebol, de facto, mudou muito. Vês imagens de noventas-e-alto e vai lá ver o estado dos relvados? Em Inglaterra, há jogos, imensos jogos, só lama, alguns buracos, estádios com condições complicadas. Como é possível? Isto mudou muito, porque eles perceberam que a imagem conta. Depois as academias vieram trazer mais qualidade, depois o treino etc e tal. Tudo mudou depressa, e bem.
E o que tinha o Betis quando foste para lá?
Cheguei ao Betis em cima do fecho do marcado do Verão 2001 [vale 700 milhões de pesetas para o Benfica], com o comboio em andamento, e já havia dois campos para treinar, ao lado do estádio. Ainda hoje é assim. Em 2001, quem tinha uma academia em Portugal? Só o Vitória, em Guimarães. O Benfica tinha o campo número 3, o FC Porto tinha um campo onde joguei pelos juniores.
Por quem?
Oliveira do Bairro.
Alguém do FC Porto conhecido?
Não me lembro. Lembro-me bem é do Boavista com Nuno Gomes e Bambo. Não me perguntes porquê, lembro-me dessa dupla.
Voltaste a apanhar o Nuno Gomes num Anadia 2:8 Boavista para a Taça de Portugal?
Eheheh, marquei aos 30 segundos e perdemos 8:2.
A bola saiu vossa?
Não sei, não me lembro. Só sei que foi na baliza à direita, a dos balneários.
Havia 2:2 ao intervalo.
A sério? Só sei que esse Boavista tinha Nuno Gomes, Sanchez, Timofte, Artur.
Na Académica, por exemplo, há uma edição da Taça em que marcas quatro ou cinco golos.
A sério, qual época? [puxa pela cabeça] Deve ser a primeira, com o Vítor Oliveira. Ainda estávamos na 2.ª divisão. Vou ver aqui [e entra no zerozero]
Só sei que a Académica é eliminada pelo Sporting nos oitavos-de-final.
Deixa ver, deixa ver. Olha, primeira eliminatória é com a Ovarense. Aqui lembro-me, entrei e marquei dois golos. [o site abre e abracadabra]. Depois, Beja. Pois fooooi, agora é que me está a bater, lembro-me perfeitamente de ir a Beja. Não me lembro nada do jogo.
Nem se foi num pelado?
Nem isso, só me lembro de ir a Beja para jogar. [abre o site] E marquei outro golo, boa boa.
Quem é o próximo?
Belenenses. Olha, ganhámos 1:0. Será que o golo foi meu?
Vi isso no autocarro, foi teu.
Foi meu, e saído do banco. Não me lembro nada disto.
Qual é o ano?
1996 [João Tomás continua com os olhos colados no monitor]. Bem, há aquilo colegas que não vejo há anos.
Que tal o Vítor Oliveira?
Epá, já foi há muito tempo. Coisas que me lembro dele: rigoroso, treino conjunto todas as 5.ª feiras e treino no pelado quando a relva estava em mau estado. Gostava de me lembrar de mais coisas.
A tua memória prega-te partidas?
No outro dia, perguntaram-me sobre o primeiro golo na 1.ª divisão. Não me lembrava. Passa a ser tão normal a tua rotina, que vais encaixando tudo no teu dia a dia. Claro, lembro-me da estreia na Luz, no José Alvalade, nas Antas. Mas o resto está em parte incerta, o meu disco não serve para tudo.
Ahahaha.
Tenho memórias, sim, mas de outros aspectos. Lembro-me de determinados momentos de ansiedade, porque a competição é assim mesmo, provoca-te arrepios e enche-te de dúvidas existenciais. Olha isto aqui: lembrei-me agora de um jogo com o Real Madrid.
Com quem?
Betis vs. Real Madrid em Alicante, na terra dos torrões. Estávamos a fazer a pré-época em Jérez de la Frontera e fomos a Alicante para um jogo-treino com o Real Madrid. Nos jogos a sério, estamos demasiado envolvidos com tudo o que nos rodeia e escapa-nos quase tudo. Ali, num contexto de jogo-treino, mais tranquilo, ali percebias o que eles valiam: Raúl, Guti, Figo, Beckham, Zidane, Roberto Carlos. Epá, estamos a brincar? Tinha mais prazer em estar de fora para apreciar a qualidade de jogo individual e colectiva do que em estar lá dentro. Até porque lá dentro só pensava: ‘estes gajos jogam muito’. Quando queria pressionar e não ia no tempo certo, esquece. Quando lá chegava, já a bola estava três jogadas à frente. Esse tipo de memórias tenho, percebes?
Claro. Ias muito à bola em criança?
Tenho uma vaga ideia de ir com o avô ao campo do Oliveira do Bairro para ver o meu pai.
O teu pai?
Ele é que era craque. Mas não tenho ideia nenhuma de o ver ao vivo. Por acaso, tenho vídeos dele a jogar nos anos 60-e-tal. brutal. Como é possível, um vídeo dos anos 60? Tenho aqui no telemóvel, já te mostro. É brutal.
Quando vais para o Benfica, quem é o teu treinador na Académica?
Carlos Garcia.
De Carlos Garcia para Jupp Heynckes, uauuuu. O Heynckes falava o quê?
Espanhol.
Era simples, o Heynckes?
Dependia das circunstâncias. Quando o apanhavas fora do contexto, impecável e cheguei a conversar muitas vezes com ele. Aliás, há uma história gira: quando cheguei ao Benfica, vesti o 28 porque era o que havia. Na pré.época seguinte, na Áustria, naquela guerra normal dos números, ele é que me disse ‘vais ficar com o 11’. Perguntei-lhe o porquê e ele ‘foi o meu número’. Estás a ver, ele por natureza era um homem distante do plantel mas, depois, tinha estas coisas. Lembro-me de outros episódios.
Por exemplo?
Não gostava nada de ambientes eufóricos, diversão antes do jogo.
Diversão, como?
Agora é normal a malta meter a música e jogar futevólei em espaços curtos. Ele não gostava nada. No seu entender, desde a entrada no autocarro até ao estádio, é um momento de concentração, reflexão. Vai daí, proibiu os telemóveis. Mais a música e o futevólei no balneário, claro.
Quem é que te recebeu no teu primeiro dia na Luz?
O capitão João Vieira Pinto. Um senhor. [João Tomás tem um flash e faz um esgar de alegria] Bem, na verdade, quem me recebeu foi o José Torres. Que curioso, nunca mais me tinha lembrado disso. Sem nada combinado, cheguei ao estádio, entrei por aquelas portas grandes de vidro por debaixo da águia e dou de caras com o José Torres. Beeeem, grande coincidência. Entre o hall e as escadas, aparece-me o José Torres, estás a ver?
Nem imagino.
Foi mesmo um prazer cumprimentá-lo. Só me encontro com o João Pinto na sala do pequeno-almoço e sempre nos demos bem, ainda hoje falamos muito. Ainda ontem dizia isto a alguém, é-me difícil imaginar chegar tão longe. Porque, daí a um tempo, já estava na selecção com Conceição, Rui Costa, Figo, Pauleta, Nuno Gomes, Baía, Couto, Jorge costa, só estrelas, super estrelas e eu ali no meio.
Quem foi o primeiro seleccionador a chamar-te?
António Oliveira para o Portugal vs. Israel em Braga. Sou chamado no lugar do Sá Pinto, lesionado. Começo no banco e entro para o lugar do Pauleta. Quando o Oliveira me liga a convocar, estou a entrar na autoestrada Aveiro-Lisboa. Ao meu lado, a minha mulher. Eram uma dez e tal, liga um número desconhecido. Era o Oliveira: ‘Olha, o Sá lesionou-se e vais substitui-lo.’ Ééééééé, muito giro. Não havia alta voz nos carros, não havia nada. Só me lembro de dizer à minha esposa ‘era o seleccionador a convocar-me’.
E depois?
No dia seguinte, o Benfica já tinha recebido o faxe e eu fui à Luz para buscar as minhas coisas. E, vê bem, lembro-me da emoção, da alegria do Angel Vilda, adjunto de Heynckes que ficou na equipa técnica do Mourinho, a dar-me os parabéns. Nunca mais me esqueço nem me esquecerei. Dizia-me ele ‘fiquei tão contente tão contente com a tua chamada’. Atenção, nunca tinha ido à selecção – nem camadas jovens. E jogava na 2.ª liga há meio ano. Estás a ver, guardo mais esses momentos fora do jogo do que o golo aqui ou ali.
Como foi a despedida do Heynckes?
Lá está, não me lembro. Só sei que a malta gostava do Heynckes. Apesar de ser uma pessoa que promovia distanciamento, era simpático e gostava de se rir quando o apanhávamos em momentos de low profile. Quando chegou o mourinho, não me lembro bem da apresentação. Lembro-me melhor do primeiro treino. Estávamos a caminho do treino, já equipados, e vimos todos os exercícios de campo lá no relvado, com cones e sinalizações. Foi uma novidade para mim, estava tudo preparado antes do treino. O Mourinho era rigoroso, sobretudo com o controlo do tempo. Nas paragens para beber água, um minuto era um minuto, dois minutos eram dois minutos.
Marcas muitos golos com Mourinho, tenho essa ideia. Há aqueles dois ao Sporting.
Esse dérbi foi giro. Marquei três em Guimarães, duas semanas antes. Ganhámos 4:1 ao Vitória. Depois lesiono-me num treino e, lá está, lembro-me bem desse momento. Chovia muito e, na parte final, o Mourinho perguntou se queríamos fazer peladinha. Isto porque o campo estava enlameado e encharcado. A malta acusou o toque e, claro, fomos todos a jogo. Ora então, magoei-me nessa peladinha e falhei o jogo da Taça, em Campo Maior.
O do golo do Sabry?
Exaaaaaactamente. Passo a semana sem treinar, vou ao banco e faço dois golos ao Sporting. E depois a notícia da saída do Mourinho nessa mesma noite do jogo ou no dia seguinte, já não te sei dizer.
Despediu-se de vocês?
Mourinho é um treinador de emoções. Dá para ver, não dá? Foi difícil para todos, digo-te. Mourinho promoveu outras dinâmicas, diferentes daquelas a que estávamos habituados.
Depois é o Toni?
Sim, foi ele quem pegou no Benfica até ao fim e acabámos em sexto, não foi? Pior época de sempre.
E tu e o Van Hooijdonk só a facturar.
Foi incrível. Nós os dois uns 40 golos [41, na verdade] e acabámos em sexto lugar. E tínhamos Sabry, Roger, Dani. Havia talento.
Saíste para o Betis e, depois, Guimarães.
Por empréstimo.
Então?
Não queria ficar com o Víctor Fernández. Não havia empatia nem confiança. Quando assim é, mais vale ir para outro lado. Havia propostas de outras equipas espanholas da 2.ª liga, mas preferi o regresso a casa e fui para o Vitória.
Inácio e Jesus.
Foi um ano difícil, o Vitória vinha de um terceiro lugar e, na época seguinte, só se salvou da descida para a 2.ª porque o Alverca perdeu em Moreira de Cónegos, enquanto nós perdíamos em casa com o Sporting.
E depois?
Braga.
Do Vitória para o Braga? Isso é que é uma aposta de risco.
É tramado, rivais e tal. Mas tudo bem e ainda hoje moro em Braga, é a minha segunda família.
Voltas a apanhar o João Vieira Pinto e o Barroso, com quem te cruzas na Académica.
Verdadeeeeee. O João, sim. E o Barroso, também.
O Barroso, que tal os pontapés?
Era cada pancada. Felizmente já havia os homens de plástico para fazer a barreira em Braga. Anos antes, em Coimbra, ainda não havia isso e a malta pirava-se quando era a hora da bola parada. Ele era muito forte, também nos exercícios de finalização. Aí percebíamos bem a pancada dele, nos remates na passada. Coitado dos guarda-redes.
Por falar neles, quais os melhores da tua carreira?
Paulo Santos, Enke, Prats, o grande Pedro Roma. Tudo grandes guarda-redes e todos grandes pessoas.
Dizem que os guarda-redes são os mais excêntricos, com mais pancada?
Nãããã, não é bem assim. Ou melhor é, num caso ou outro. Olha o Enke, por exemplo.
Que tem?
Era tranquilo. Até demais. Muito soft, sempre no lugar dele. Cruzámo-nos na Liga espanhola, num Barcelona vs. Betis. Troquei de camisola com ele e, há uns dois anos, entreguei a camisola ao Museu Cosme Damião. A camisola é minha, mas pertence ao museu, faz parte da história.
Sem dúvida. E do Real Madrid, tens camisolas de quem?
Figo e Guti.
E do Barcelona?
A tal do Enke e ainda a do Christanval.
Nããããããão.
Quando joguei lá, era a época dos holandeses: Overmars, Kluivert, irmãos de bóer, Zenden. E ainda xavi, muito novo, Guardiola, Rivaldo. O defesa-direito era o ferrer, o guarda-redes era o… não era o Valdés… era o turco, Rüstü. Nessa época, a gente mandava as camisolas para lá e eles mandavam para nós, calhou-me o francês Christanval.
E jogaste Betis-Sevilha?
Epá, joguei um Sevilha-Betis, 0:0 no Sánchez Pizjuán. Que loucura.
Então?
Já não se falava de outra coisa a um mês do jogo. Imagina agora na semana e, mais aceso ainda, no próprio dia. Lembro-me perfeitamente do momento em que saímos do hotel e chegámos ao estádio.
Em que registo?
Porreiro. Helicópteros pelo ar, escoltados por polícia a cavalo, estradas fechadas.
Lembrei-me agora, do nada: outro que trocou o Vitória pelo Braga ao mesmo tempo que tu foi o Abel.
Eiscchhh, pois foi, o Abel.
O que era o Abel nesse tempo e o que é o Abel agora?
Semelhante na forma de estar, ele não se esconde atrás do escudo do treinador. A imagem que passa é a dele, ponto. Até se pode expor demasiado, mas é genuíno e não se transforma naquilo que não é. Conheço-o bem, fomos colegas de quarto em Braga.
E quem era o teu colega no Benfica?
Bossio.
E no Betis?
O José Calado.
Apanhas Oblak e Ederson na mesma época no Rio Ave. Como é possível?
Já viste? Era difícil fazer golos numa baliza e noutra.
Eram miúdos e tu já um veterano.
Tinha 36/36, eles 19/20. Dois monstros. Chegaram no mesmo verão e o Oblak era o titular. No ano seguinte, o Oblak sai para o Benfica e o Ederson pega de estaca. Uma vez dei uma entrevista. [começa a rir-se] Esta nunca mais me esqueço, estava em Angola, fim de época no Libolo, dezembro 2013. Estava no aeroporto para ir de férias e liga-me uma rádio portuguesa a perguntar sobre o Oblak no Benfica porque o Artur se tinha lesionado. Disse-lhes que o Oblak nunca mais ia sair do onze. E assim foi. Depois foi vendido ao Atlético Madrid e continua sem sair do onze. E agora já tem uns 30 anos, que guarda-redes. Era incrível, no Rio Ave.
Também apanhaste o Atsu no Rio Ave?
O Christian, que tristeza a notícia da sua morte na Turquia. Sem palavras. Ainda me lembro bem dos tempos em que era ele, eu e o Kelvin no ataque.
Marcaste dois golos ao Sporting, 2:2 em Vila do Conde.
Desse jogo lembro-me bem. Aleluia, ò Rui.
Ahahahah.
Paulo Bento tinha saído, Leonel Pontes foi o substituto imediato e o Sporting está a ganhar 2:0 ao intervalo, ainda por cima a jogar com menos um, expulsão do Carriço, acho. Estava altamente frustrado a perder contra 10. Disse umas coisas no balneário ao intervalo e, depois, marquei os dois golos. Resultou, hein?! E só não virámos para 3:2 porque, naquela altura, a malta contentava-se com 2:2 com um grande.
E aquele bis pelo Braga no Dragão?
Sabes quem era o treinador do FC Porto?
Víctor Fernández?
Já viste como a vida dá voltas.
O FC Porto tinha sido campeão do mundo?
Já, porque ele foi despedido nessa noite.
Como foi esse jogo?
Lembro-me muito bem do 3:1, um golo caricato. O Vítor sai da área, chuta contra mim, a bola embate no meu corpo, ainda hoje não sei onde, e entra na baliza. Há dias, o meu sogro encontrou nos arquivos dele a manchete d’O Jogo e enviou-me. Tive de reenviar para o Vítor, claro. Ainda nos rimos. Olha aqui, eu, Vítor e Pepe.
És convocado para Portugal por Oliveira e mais quem?
Scolari. Tive pena de não ir ao Mundial-2006, fiz 35 golos em duas épocas pelo Braga. Merecia ter ido.
Então és convocado quando?
Logo a seguir, em 2007. Liga-me o scolari, estou a jogar no Qatar.
Estavas no carro?
Ahahahah. Não, no aeroporto.
Sempre a viajar.
Íamos jogar a liga asiática, nos EAU.
E, desta vez, sabias quem te ligava?
O Carlos Godinho [master da federação] ligou-me a avisar da chamada do Scolari e eu ‘para quê?’. Nada me disse e fiquei à espera. A verdade é que o Scolari não me ligou enquanto estava em Doha, no Qatar. Fomos jogar a abu Dhabi e é aí que ele me liga. Só que naquele tempo não havia cá iphones nem smartphones. Se havia, eu não tinha. O meu cartão era de carregamentos. Quando viajávamos para outro país, o plafond ia ao ar num instante. Foi isso que me aconteceu. O Scolari liga-me, estou no hotel e tinha pouco saldo. Ele mal consegue falar. Tive de sacar o cartão, colocar outro, raspar o código, introduzir e voltar à vida. Como o Scolari tinha estado naquela zona há pouco tempo, já sabia: ‘ficaste sem crédito, não foi?’. Recebo a notícia e foi uma notícia impressionante para os árabes. O director do clube todo louco e entusiasmado a falar-me da convocatória, como se fosse o Angel Vilda ao Benfica em 2000.
E que tal?
Jogámos na Bélgica, ganhámos 2:1 com golos de Nani e Postiga. Fiquei no banco. Depois fomos ao Kuwait, empatámos 1:1.
Entraste ou…?
Cruzamento do Quaresma e marquei de cabeça. Ainda sou convocado outra vez, em Agosto, e jogámos na Arménia. Fim da história na selecção.
Na 1.ª divisão é que continuas a facturar.
Faço um hat-trick em Setúbal, 5:3 para o Rio Ave. O Zezé [Meyong] faz três, eu faço outros três e ainda dou um ao Dell Valle. Chego aos 101 golos, fico imensamente feliz. Agora vais desgravar isto?
Ya, é uma seca.
Nem me digas nada. Fiz uma série de entrevistas para o meu mestrado e demoro um tempão a desgravar.
Demoro o triplo do tempo. Se isto foi uma hora e 29, imagina.
É como eu. Ouço um bocado, páro a gravação, escrevo, ouço mais um pouco, páro e assim sucessivamente. Temos de encontrar alguém que nos ajude a desgravar e assim até falamos mais, ahhhh. Grande abraço, tudo de bom.
João Tomás, o dos 101 golos exactos na 1.ª divisão, volta a dar 101 passos aldrabados até ao Estádio Manuel Marques.