*Com Miguel Freitas
Além da obra empresarial, o legado do Comendador Rui Nabeiro a nível social tem sido alvo de constantes recordações e homenagens nestes dias após a sua partida. Apaixonado pelas suas origens e gentes próximas, viu no futebol uma oportunidade de colocar a pequena vila de Campo Maior e a região de Alentejo ainda mais no mapa, permitindo à população viver um autêntico conto de fadas durante a década de noventa e transição para o presente século.
Para lá da forte alavancagem a nível financeiro, o contributo e dedicação sentimental da família Nabeiro ao projeto do Campomaiorense foi o principal responsável pelo crescimento exponencial do clube. Os escalões foram galgados, as subidas festejadas e o emblema juntou-se durante alguns anos ao convívio dos grandes do futebol português. O ponto mais alto chegou a 19 de junho de 1999, data em que milhares de alentejanos rumaram ao Jamor para ver o clube discutir a final de uma Taça de Portugal.
O investimento foi reduzido e o futebol profissional acabou por terminar, mas o clã Nabeiro - o filho João Manuel ainda é o presidente - segue ligado ao Campomaiorense, totalmente focado em servir a população local. Para perceber os contornos desta bonita história, o zerozero recolheu testemunhos de quem viveu de perto os tempos áureos do emblema e emoções marcantes, muitas delas passadas no mítico Estádio Capitão César Correia.
«O impacto da família era total. O João Manuel tinha as funções de presidente, enquanto o Comendador Rui Nabeiro (já presidente honorário) tinha também uma presença muito forte. Ia ao balneário antes dos jogos e estava no clube quase todos os dias, fazendo questão de cumprimentar cada jogador e membro do staff de forma individual. Notava que tinham um grande gosto pelo projeto e um carinho por todos os funcionários do clube, um pouco como temos ouvido dos diferentes testemunhos dos últimos dias.»
Mesmo nos anos de natural maior exigência, o último representante alentejano a atuar na I Liga resistiu a endeusamentos e procurou sempre estreitar laços e servir a sua população. Nuno Campos teve a oportunidade de ser titular na final do Jamor, um dia que a família Nabeiro fez por tornar inesquecível aos adeptos que se deslocaram à Capital para a apoiar o clube.
«Nos momentos em que não estavam a decorrer treinos, os adeptos e população podiam fazer alguma fisioterapia e utilizar as instalações do clube. E sei que isto continuou no final do projeto no futebol profissional. Sempre tive grande carinho por eles e sentia a vontade em eles ajudarem os outros. O senhor Rui tinha um coração enorme.»
Zona muitas vezes esquecida pelos mais poderosos, uma mudança de vida até ao distrito de Portalegre não seria o local, em teoria, mais atrativo para um profissional prosseguir carreira. Contudo, o lado humano de Rui, João Manuel e a restante direção conquistavam atletas, que faziam esforços para rumarem ao «espírito familiar» de Campo Maior.
«Estava sempre disponível para ouvir as necessidades de cada atleta. Eles cultivam um espírito muito familiar com o grupo de trabalho. Relações humanas que não se veem neste tipo de cenários. Seja perguntar sobre os filhos, esposas ou resto das nossas famílias, algum adiantamento de salários se fosse necessário. Acabavam por conquistar o carinho de todos. Muitos jogadores preferiam ir ganhar menos para o Campomaiorense do que jogar em clubes de ordenados superiores».
No momento do adeus, a seriedade continuou presente. Após uma época de regresso ao segundo escalão, o Campomaiorense optou em 2002 por encerrar com o futebol profissional. Contudo, os compromissos previamente estabelecidos foram cumpridos à risca. Uma «realidade rara» naqueles tempos.
«Eram pessoas sérias também no aspeto financeiro. Quando o Campomaiorense decidiu terminar com o futebol profissional e a família Nabeiro decidiu não investir mais, alguns atletas tinham contrato assinado com o clube por dois/três anos. Pagaram logo tudo às pessoas e não ficaram a dever um euro a ninguém. Uma realidade tão rara naqueles anos do final da década de 90, marcados por vários casos de incumprimento em muitas equipas no nosso país. O senhor Rui era o expoente máximo deste lado humano e da preocupação com o bem-estar alheio, mas teve também o mérito de incutir estes valores a toda a família.»
Depois de épocas de glória, o emblema de Campo Maior decidiu colocar um ponto final nesse capítulo. Ficam as memórias, as alegrias e, acima de tudo, os momentos de convívio entre os «grandes» do futebol português. Ainda assim, o Campomaiorense não desapareceu e continua ativo, ainda que em outros escalões e desportos, sempre com o patrocínio da família Nabeiro.
«Como o João Manuel Nabeiro costuma dizer, o clube estava virado para o futebol profissonal e, quando acabou essa período, decidiram concentrar as atenções na população de Campo Maior. Atualmente, o foco passa pelas pessoas praticarem desporto: futebol (formação), ginástica ou judo nas instalações do Estádio Capitão César Correia», revelou ao zerozero Jorge Cabeções, que passou vários anos nos galgos.
«O filho era uma fotocópia do pai e da família. Tentou seguir os pergaminhos do pai e teve momentos fantásticos. Ainda que, atualmente, o Campomaiorense não tenha futebol sénior, preocuparam-se com que as crianças de Campo Maior pudessem usufruir das mesmas instalações que os jogadores tinham antigamente», acrescentou.
«A final frente ao Beira-Mar foi o ponto mais alto, sem dúvida. Os jogos contra FC Porto, Benfica e Sporting também eram impactantes, pois o estádio enchia e ficávamos todos em clima de festa.»
Jorge Cabeções continua por Portalegre, uma terra de onde não saiu durante toda a sua longa carreira como jogador, numa primeira instância, e, depois, no banco de suplentes de várias equipas. Num meio com algumas dificuldades para o futebol assumir importância, o nome do Campomaiorense continua (bem) presente nas ruas do Alentejo.
«As pessoas mais velhas têm saudades desses tempos. Os jovens também se recordam, pois, em poucos minutos, conseguem ter acesso a essas memórias, fruto da Internet. Às vezes perguntam como é que foi possível terem estado na primeira divisão e depois acabar com o clube», comentou.
«Faltam apoios, pois as autarquias e empresas não conseguem apoiar os clubes como antigamente. Temos falta de meios humanos e suporte financeiro para termos equipas de futebol. Não é difícil atrair pessoas para cá. Penso é que as pessoas são atraídas a sair da zona. Os miúdos vão para as universidades de Lisboa, Porto ou Coimbra, por exemplo, e deixam de praticar desporto. É a nossa realidade do futebol distrital», disse.
O nome do Campomaiorense, ainda que esteja afastado dos principais holofotes do futebol português, vai ser sempre recordado com carinho, pois foi o último clube alentejano na primeira divisão. A final da Taça de Portugal frente ao Beira-Mar podia ter sido a cereja no topo do bolo, mas a viagem até lá já valeu cada momento da sua história na década de 90. Por mais viagens como estas.