Nasceu em Barcelona, mas foi em Londres, onde chegou com apenas 16 anos para jogar no Arsenal, que se mostrou ao mundo. Héctor Bellerín, agora jogador do Sporting, vai para lá da própria profissão.
Vegan, ativista ambiental, apaixonado pelas artes e defensor do aumento de impostos para os futebolistas, o novo leão tem um perfil que vale a pena conhecer, nem que seja por sair do protótipo do que tem sido o comum jogador de futebol.
Aos 27 anos, Bellerín é tudo menos um jogador comum.
O sotaque cockney (dos habitantes de Londres), como é óbvio, não esteve sempre com Bellerín. Nascido na Catalunha, filho de pais espanhóis, começou cedo a jogar no Barcelona, primeiro como extremo e depois como lateral.
«Sempre fui um extremo, mas no Barcelona não tínhamos lateral direito e disseram-me "Hector, vais jogar ali." Por acaso, esse foi o jogo que o olheiro do Arsenal viu. Joguei muito bem e acabei por ir para lá», contou, numa entrevista ao FourFourTwo.
Se para muitos jovens a adaptação à mudança para outro clube e outro país, longe da família e dos amigos de infância, pode ser difícil, Bellerín não demorou a adotar o estilo britânico, onde incluia o famoso fish and chips, que atualmente não faz parte da sua alimentação.
«Tive uma família de acolhimento que me ajudou muito. Só por falar com eles todos os dias, acabei com este sotaque cockney», explicou, na mesma entrevista.
Em 2011, Bellerín era ainda um jovem incerto sobre o futuro no mundo do futebol, mas o tempo acabou por confirmar aquilo que os Gunners esperavam quando o viram em La Masia. Ali estava o melhor lateral do mundo em potência.
Antes de ganhar definitivamente o lugar no plantel principal, o espanhol já se destacava pela velocidade, tendo mesmo batido o recorde de 40 metros sprint do clube, que pertencia a Theo Walcott. A afirmação foi quase tão rápida como o próprio Bellerín.
Sob o comando de Wenger, Bellerín cedo se tornou uma referência na posição e um dos principais alvos de mercado de alguns dos principais clubes europeus. Em 2016, entrou na equipa do ano da Premier League e foi aí que teve a grande oportunidade da carreira.
Meses depois de fazer a estreia pela seleção, Bellerín foi um dos primeiros alvos de Pep Guardiola para reforçar a lateral direita do Manchester City. Com o Arsenal a atravessar um período de instabilidade, os Cityzens eram já uma equipa apetecível, especialmente a partir do momento em que Guardiola, um catalão como Bellerín, chegou ao Ettihad. Só que o defesa não aceitou a oferta.
Segundo o The Guardian, a proposta do Manchester City, além de satisfazer o Arsenal, era ainda mais satisfatória para o jogador, que recentemente tinha assinado um contrato de 115 mil libras por semana com os Gunners, mas iria receber bem mais em Manchester. Rejeitou depois de ver os exemplos de colegas que tinham deixado o Arsenal - Nasri ou Fàbregas -, mas também por um sentimento de lealdade com o clube e com Arsène Wenger, que tinha apostado nele quando ainda era apenas um projeto de jogador.
Assim, Bellerín continuou no Arsenal e assistiu à saída de Wenger de perto. O defesa, que nas temporadas que antecederam a saída do treinador francês não atingiu o mesmo nível das anteriores, passou por um mau bocado, mas o pior momento da carreira aconteceu em 2018/19.
A 19 de janeiro de 2019, o Arsenal recebeu e venceu o Chelsea, por 2-0. Bellerín, que tem no cruzamento um dos seus pontos fortes, assistiu para o primeiro golo, mas foi substituído aos 72 minutos, com suspeitas de uma lesão grave. O pior cenário veio a confirmar-se quando os exames médicos diagnosticaram uma rotura dos ligamentos cruzados do joelho.
Aos 24 anos, o defesa ainda não tinha passado por nenhuma lesão que o obrigasse a parar mais de um mês. O processo de recuperação, além de demorado (voltou aos relvados quase nove meses depois), foi duro e pode ser visto no documentário no canal de Youtube do jogador, chamado Unseen Journey. Vale a pena.
Se o trajeto de Bellerín é mais ou menos conhecido por grande parte dos nossos leitores, a versão extra futebolista do espanhol pode passar mais ao lado.
«A primeira coisa que fiz quando cheguei a profissional foi comprar um nécessaire da Gucci, como os meus colegas tinham», lembra o novo reforço do Sporting, em entrevista ao diário Ara.
Agora, o próprio admite ser um homem diferente. Distante dos luxos e da ostentação, que atribui ao mundo capitalista «que te obriga a comprar cada vez mais coisas», Bellerín aproveitou a pandemia para descobrir novas paixões, como a fotografia, que o fazem ver o mundo de outra forma.
«Hoje em dia temos câmaras nos nossos telemóveis, mas eu estou a tentar viver a vida de uma forma mais lenta e por isso uso máquinas de películas, que me dão uma sensação de lentidão. Se eu quero uma fotografia, alguém tem de a desenvolver manualmente até ficar uma fotografia. Gosto muito da lentidão do processo, quase como se fosse feito à mão», relatou, ao The Guardian.
Filho de uma família de classe média e fã de comédia britânica, estilo Ricky Gervais, Bellerín gostava que mais jogadores tivessem iniciativa para se expressarem por assuntos além do futebol, embora o mesmo reconheça e respeite os motivos de quem não o faz.
«Muitos dos jogadores vêm de famílias humildes, que não tinham nada. Nós, jogadores de futebol, estamos desumanizados, vivemos numa bolha», referiu, na entrevista ao Ada.
Também por isso, Bellerín teve sempre uma voz crítica de vários assuntos políticos e sociais. Assumidamente de esquerda, embora sem partido por não encontrar nenhum com o qual se identifique por completo, foi voz crítica de Boris Johnson, com um célebre «F*** Boris» nas redes sociais, e do próprio Mundial no Catar.
«Faltam mensagens, mas percebo que cada vez têm menos utilidade. Eu critiquei o Mundial, mas no fim ele acabou e muita gente assistiu. As palavras são inúteis se não houver ação. Somos trabalhadores e queremos jogar ao mais alto nível, temos de seguir algumas regras. Gostaria de ver um pouco mais de ativismo por parte dos jogadores, mas percebo que seja difícil.»
Bellerín considera o futebol um mundo machista e cada vez menos acessível a todos, mas também tem voz ativa sobre outros assuntos, como a Guerra. Apoiante há largos anos da luta palestina, o espanhol criticou publicamente a diferente atenção dada à Guerra na Ucrânia.
«É difícil ver que damos mais interesse a esta Guerra do que a outras. Não sei se é por serem mais parecidos connosco ou porque o confito pode afetar-nos mais diretamente, em termos económicos e de refugiados», disse, em entrevista à La Media Inglesa. «A Guerra na Palestina foi completamente silenciada, ninguém fala nela.»
Em 2016, depois de ver um documentário na Netflix, decidiu experimentar uma dieta vegana, que mantém até agora, e a partir daí mudou também a forma como vê o mundo, não só na alimentação, mas naquilo que veste.
Apesar de ser uma espécie de ícone da moda entre os futebolistas (recentemente foi capa da GQ), o espanhol adotou um estilo de vida sustentável.
«Deu-me um clique quando mudei para uma dieta vegana. Depois tomei consciência de como mudei e mudei também o meu estilo de vida.»
«Passei a usar um carro elétrico e reduzi os plásticos. O mais difícil foram as roupas, que eu adoro, para mim está ligado à arte e à minha identidade, mas percebi que tinha de ser consistente, não podia fechar os olhos. Chegou um ponto em que construir a minha identidade atráves da roupa nem era saudável, então relaxei. Vendi parte e dei muita coisa. Hoje valorizo mais o que tenho.»
No entanto, há em Bellerín uma consciência de privilégio, não só pela profissão, mas também pelo salário, embora também esse tenha sido um assunto relevante nos últimos tempos.
«Não sou perfeito. Ninguém é, nem precisa de ser. O importante é tentar fazer as coisas da melhor forma e respeitar os próprios valores. Se eu um dia precisar de alugar um carro a gasolina faço-o por não ter escolha. Com um elétrico, com 400 km de autonomia, ficava preso se fosse aos Pirinéus.»
«É caro comprar um bife vegetal no supermercado porque poucas pessoas o querem. Quanto mais pessoas comprarem, mais acessíveis eles serão».
O defesa é um dos maiores acionistas do Forest Green Rovers, o clube mais verde do Mundo, sobre o qual escrevemos neste artigo, depois de adquirir dois por cento das ações por 250 mil libras. Uma decisão tomada depois de ter angariado fundos para a plantação de 60 mil árvores na Amazónia.
Para Bellerín, tal como a roupa (não compra roupa há dois anos), também o dinheiro deixou de ter tanta importância. É por isso que defendeu publicamente o aumento de impostos para futebolistas com salários avultados.
«Os jogadores de futebol são as pessoas que deveriam pagar mais impostos. Venho de uma família em que tivemos de arregaçar as mangas para comer. Toda a gente quer ganhar mais dinheiro para ter mais conforto, mas com o que eu ganho acho que é preciso olhar, não só à nossa volta, mas para a sociedade, onde há situações muito precárias.»
Bellerin no Sporting:
➡4 vezes internacional 🇪🇸
➡183 jogos na Premier League, todos pelo Arsenal
➡Conquistou 7 títulos
➡Venceu Copa del Rey na época passada, pelo Bétis (fez um total de 31 jogos)
➡Esta época: 7 jogos pelo Barcelona pic.twitter.com/4UrkmsuWtx
— Playmaker (@playmaker_PT) January 31, 2023
«Os jogadores de futebol estão numa posição muito privilegiada. Temos trabalhado muito e feito muitos sacrifícios, mas devemos estar conscientes do que temos, de onde viemos e ser os primeiros a ajudar a dar estabilidade à nossa sociedade», explicou.
Também por isso, aceitou baixar o salário para reforçar o Barcelona no passado verão, apesar de ter recebido duas propostas mais vantajosas de outros clubes. Depois de ter cumprido o sonho do pai, adepto do Betis, na época passada, cumpriu o seu próprio sonho ao jogar na equipa principal do Barcelona, o clube onde foi formado. Para isso, baixou o salário para 500 mil euros por ano.
«Hoje o que me preocupa é jogar futebol ao mais alto nível. Tenho a sorte de fazer isso há muitos anos e estou numa situação financeira confortável que me permite aproveitar o que quero. As minhas prioridades não são baseadas em questões económicas», justificou.
À data em que escrevemos este artigo, não sabemos o salário de Héctor Bellerín, apaixonado por paella e que um dia gostaria de conhecer Barack Obama, mas confirmamos que o Sporting contratou um jogador especial, pelo menos fora do relvado.
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