A época 2020/2021 foi uma montanha-russa para Vasco Seabra. O Boavista foi um desafio imenso, mas acabou cedo. Seguiu-se o Moreirense e o registo foi assinalável, mas o ciclo em Moreira de Cónegos fechou-se com o fim da temporada.
Na terceira parte desta entrevista ao atual treinador do Marítimo, Vasco Seabra confidenciou como foi trabalhar nas panteras, num momento de tanta turbulência. Respondeu, também, à pergunta mais feita no final da última temporada. Qual a justificação para não continuar no Moreirense?
Uma grande entrevista realizada a Vasco Seabra nos estúdios do zerozero.
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VS - O Boavista teve contornos extraordinários para mim, enquanto treinador, porque fez-me perguntar várias coisas sobre mim mesmo, enquanto treinador, enquanto ser humano, enquanto líder. Esse foi desafio extraordinário e ainda bem que aconteceu. O Boavista é um clube muito grande, tivemos a infelicidade de não ter adeptos, porque o Boavista vive muito da dimensão adeptos, de ter um público altamente apaixonado e pela exigência que transmitem por essa paixão.
zz - E estamos a falar de um plantel praticamente novo que não conhecia a identidade do clube.
VS - Sim. Nunca falei disto. No Boavista tínhamos uma data para iniciar a preparação da época, adiámos por causa de termos casos de Covid em jogadores que estavam a chegar e porque tínhamos poucos jogadores. Adiando uma semana e juntando o facto de termos de treinar em Guimarães, a uma distância de 45 minutos de autocarro, pois os relvados anexos ao estádio estavam a ser remodelados. O dia-a-dia era: chegar ao estádio, tomar o pequeno-almoço e ir para Guimarães, para podermos treinar. Treinámos essa semana inteira com jogadores de Sub-23. Ou seja, era uma equipa nova que não tinha os jogadores que iam ficar na equipa principal. Eu só tenho que agradecer aos jogadores de Sub-23 que vieram. Olho como orgulho para jogadores como o Malheiro, o Luís Santos, o Tiago Morais, o Fran. Ajudaram-nos imenso nessa fase e eu acho que os ajudamos, pois conseguimos treiná-los para uma competição profissional. Olho com o orgulho de os ver a assumirem-se na 1ª Liga e isso aconteceu na semana a seguir. Fomos para estágio, com o objetivo de passar o processo e voltámos a ter muitos jogadores com covid, com o plantel incompleto. Tínhamos um jogo-treino marcado para uma quarta-feira e tivemos de o cancelar, pois não tínhamos jogadores para competir. No sábado a mesma coisa. Acabámos por fazer, apenas, treinos entre nós e a preparação foi atrasando. Acabámos por ter jogadores, como o Dulanto, que pensávamos que íamos ter para a primeira jornada e que depois não pudemos ter. Tudo nos dificultou a estabilidade e a tranquilidade da equipa. Ainda assim, eu acho que produzimos coisas fantásticas. Fizemos um jogo na Madeira fantástico, empatámos 3-3, tivemos alguns erros individuais fruto da imaturidade de alguns jogadores que tiveram de jogar nesse momento. Depois, a seguir, tivemos um golpe duro com o Porto em casa. Perdemos 0-5, mas não me esqueço que ao intervalo estávamos a empatar 0-0. A imaturidade competitiva que a equipa trazia não permitiu que a gente tivesse essa estabilidade. Juntando a isto tudo, a expectativa criada, uma expectativa que não era razoável.
zz - Por muito que no plantel existissem jogadores como Javi Garcia, Rami, Elis, Angel Gomes. Mas nomes individuais não fazem equipas.
VS - O Bruno Lage usa uma frase muito engraçada que é 'quando tocam à minha porta eu não pergunto quem foi, eu pergunto quem é.' As pessoas confundem aquilo que foi, aquilo que é, aquilo que devia ser, aquilo que queríamos ser.
zz - Muitas vezes usamos como ponto comparativo, os galáticos do Real Madrid.
VS - Sim, é verdade. O Elis, por exemplo, que acabou por fazer uma grande época, o Elis chegou a três dias do jogo com o FC Porto, que foi na 2ª jornada. Isso foi o reflexo de todas as coisas que foram acontecendo. O Elis veio como extremo e nós adaptamo-lo a ponta de lança. Essa opção até fez criar um frisson com a administração e o Elis está a fazer uma excelente carreira a ponta de lança. Se calhar o treinador não era o gajo que via tudo ao contrário. O Angel Gomes quando foi apresentado a expectativa, se calhar, não era tão alta como aquela que ele provocou. O jogo era muito associativo e, se calhar, o melhor momento da época dele foi no primeiro terço. Ele nesse período fez golos e assistências como não fez depois. Era um jogo audaz, mas associativo. Saímos com oito ou nove pontos, mas estamos a dois ou três pontos do oitavo ou nono lugar, estava toda a gente junta. As pessoas podem dizer que o ambiente não era bom, mas o ambiente é sempre aquele que queremos fazer dele. Se tivermos medo de enfrentar dificuldades e adversidades não podemos ser treinadores. Eu acho que estávamos a fazer as coisas com a melhor dedicação que tínhamos. Tivemos erros, no Moreirense também tivemos erros e fizemos muitas coisas positivas, tal como no Marítimo e acredito que para o ano vamos fazer coisas melhores.
zz - Do Boavista passa para o Moreirense, pouco tempo depois, e há uma resposta desse grupo à ideia de jogo que a sua equipa técnica levou.
zz - Há os três empates com os grandes.
VS - Nenhum passou em nossa casa, também garantirmos a manutenção muito cedo e acabámos por garantir o oitavo lugar, em igualdade pontual com sétimo, com 43 pontos e fizemos em 22 jogos, 30.
zz - Chegou a perceber porque não continuou?
VS - Cheguei.
zz - Essa é a grande pergunta da época passada?
VS - Nós não batíamos no mesmo rumo e quando não há objetivos comuns, de liderança do treinador e de liderança do clube, o clube vai estar sempre à frente do treinador. A partir do momento em que o clube quis mudar de direção da ideia do treinador, aquilo que é a forma de ser e de estar, obviamente, não ia ser possível continuar a ligação. A verdade é que o Moreirense tem condições de trabalho extraordinárias, tem um excelente plantel e eu naturalmente preferia que o Moreirense tivesse tido uma época mais estável, pois é um clube que faz falta na 1ª Liga, por todas essas condições, por ser um clube sério na forma como cumpre com as suas obrigações, mas parece-me que as pessoas têm de ter direções, têm de ter caminhos. Eu como treinador tenho a minha liderança, tenho a minha forma de estar e quero andar sempre de cabeça erguida com a forma como defendo os meus valores e quando não batem com o do clube não faz sentido continuarmos nesse registo.
zz - Duas perguntas para terminar. Já falamos um pouco da componente tática. Qual é o sistema que mais o agrada?
VS - É aquele que consegue produzir as melhorias nos jogadores e trazer dele o melhor possível, diminuindo as fragilidades que eles têm e que a equipa seja capaz de dominar tendo mais oportunidades de golo e concedendo menos.
zz - E tudo isso pode ser feito numa semana de uma forma e noutra semana de outra. É que vimos o seu Marítimo a ver diferentes formas de jogar.
VS - Quando comecei eu pensava o jogo de forma mais isolada, mais por sistema ou valorizar este momento do jogo. Neste momento há uma coisa que para mim é fundamental, os nossos jogadores têm de compreender todos os momentos do jogo. Têm de saber jogá-lo. Eu paro muitas vezes o treinar para questioná-los. Para questionar as ações, porque os jogadores têm de compreender. Os jogadores são inteligentes, são capazes, não há ninguém que compreenda melhor o jogo que os jogadores. Eles vivem-nos e decidem-no em frações de segundo e por isso temos de os ajudar e eles têm de nos ajudar a nós. Para os ajudarmos tem de haver um padrão. Quem viu o Marítimo, tenho a certeza, que conseguia sentir um padrão, sabia que íamos querer jogar, que tínhamos construção de uma determinada forma, que tínhamos variabilidade em diversos momentos e essa forma para ajudar os nossos jogadores. Isso, naturalmente, implica que os jogadores conheçam, que saibam que se nos estão a pressionar alto é porque há espaço nas costas, se não espaço nas costas e estão a pressionar alto, é porque há espaço entre linhas, se a equipa deles está sempre a ser profundo e sempre a querer jogar para as costas, então se calhar não faz sentido nós estarmos sempre a pressionar tão alto, porque aquilo que eles vão querer fazer é aproveitar as nossas costas e então vamos recuar um bocadinho e dar aquilo que eles querem menos, para depois pressionar nos sítios certos, para sair por onde queremos. Não acredito em mudanças semanais, acredito sim em nuances. Acredito que há nuances, pois os nossos adversários têm padrões e nós podemos dar nuances para as coisas diferentes que podemos fazer em cada jogo, mas sempre com um objetivo claro: que os nossos jogadores se valorizem e a gente possa vencer o jogo.
zz - O que o apaixona ainda mais no futebol?
VS - A mim são os jogadores e o que conseguimos promover através do jogo para deixarmos os adeptos alegres. Os jogadores são o melhor do futebol, porque sem eles não há jogo, mas jogar para ninguém também não tem piada nenhuma. Podem criticar os adeptos e dizerem o que quiserem, mas o jogo é para eles. Quando a gente consegue que a nossa equipa se apaixone pela nossa ideia de jogo e que essas façam vencer e isso traga ligação com os adeptos, é um desafio altamente estimulante. Essa paixão é que depois faz com que a gente tenha esta energia de querer liderar, passar por dificuldades, querer sofrer e levantar, acordar cheio de motivação para dar essa motivação aos nossos atletas.