As imagens são icónicas. Resistem à inclemência do tempo, à ditadura do esquecimento. A bola sai do pé do guarda-redes Mlynarczyck para o defesa Celso. Atento, o central repara no regresso de Rabah Madjer ao relvado – teve de ser assistido após o calcanhar de Alá – e faz um passe longo para a esquerda. O resto é poesia em movimento.
Madjer recebe, vai para cima de Winklhofer. Faz que vai pela direita, mas é a esquerda que ele quer. Depois, em esforço, o cruzamento de pé esquerdo. Ao segundo poste, mais rápido do que a própria sombra, Juary.
Juary 5 títulos oficiais |
A propósito da ascensão de Evanilson e da iminente ultrapassagem a Juary na lista de melhores goleadores brasileiros do FC Porto, o zerozero entrevista o eterno número 13 das Antas.
zerozero – Cruzamento de Madjer, golo de Juary. Quantas vezes viu essas imagens?
Juary – Todos os dias (risos). Se não é no vídeo, é na minha cabeça. Eu apareci como um furacão e marquei o golo com a parte de dentro do pé. Só podia ter sido assim, de cabeça não dava. A inteligência e habilidade do Madjer eram únicas, mas tudo começou com o Rodolfo Moura [fisioterapeuta], que estava fora do relvado a dar-lhe assistência. A bola entrou no Celso, o Rodolfo mandou o Madjer para dentro e depois foi aquela coisa linda.
zz – Ainda por cima, dois minutos depois do golo de calcanhar.
J – E nesse golo o passe foi meu, depois trocámos (risos). A minha intenção era só colocar a bola na área, porque o Artur Jorge tinha-me dito que o Madjer e o Futre iam estar sempre lá. Mas nunca imaginei que o diabo do Madjer fizesse o golo daquela maneira.
zz – Mantém contacto com o Paulo Futre e o Rabah Madjer?
J – Estivemos juntos num programa do Porto Canal, através de vídeo. Foi maravilhoso. Mas não tenho o contacto direto deles, é uma pena. Do FC Porto falo só com o Fernando [Gomes], aliás às vezes passo-lhe informações sobre meninos que estão a aparecer com qualidade no Brasil. Há coisas que marcam as nossas vidas. A cidade do Porto e o clube Futebol Clube do Porto estarão para sempre em mim. Levarei comigo para o túmulo, num cofrinho, várias coisas e o FC Porto é uma delas.
zz – O Juary continua a trabalhar no Santos?
J – Saí no ano passado. Tenho a minha escolinha de futebol e também um projeto de futebol de formação em Presidente Prudente, no interior de São Paulo. Infelizmente, não tive a oportunidade de voltar a trabalhar no FC Porto. Não sei o dia de amanhã, ainda tenho a esperança de antes de descer à sepultura viver um ou dois anos no Porto, para matar as saudades. Quero muito isso.
zz – Falamos sempre do golo de Viena, mas qual foi o golo mais bonito do Juary no FC Porto?
J - O meu golo favorito foi marcado ao Vitória de Guimarães [31 de agosto de 1986]. O mais bonito, digamos assim. Pode não ter sido tão importante, mas foi o que eu mais gostei, foi o mais bonito que marquei. Eu até costumo dizer ao Casagrande que ele falhou a cabeçada e eu aproveitei para fazer o meu golinho.
zz – Também aí o Juary saiu do banco e marcou. Gostava mais de começar os jogos de fora do que de ser titular?
J – Não, não (risos). Eu queria jogar sempre, mas a partir de dada altura começaram a chamar-me ‘arma secreta’ e eu ganhei gosto por isso. O mais importante é que toda a malta queria ajudar e eu sentia-me rodeado por amigos. Também foi a sair do banco que fiz três golos ao Barcelona.
zz – Fale-nos dessa noite. Não é habitual marcar três golos ao Barcelona e acabar eliminado.
J – Perdemos por 2-0 na primeira-mão e fomos muito prejudicados pela arbitragem. Ficou um penálti por marcar sobre mim e anularam-me um golo. Na segunda-mão estava 0-0 e o Artur [Jorge] meteu-me na última meia-hora. Fiz três golos. Ele só me pediu para levar velocidade ao jogo. Eu levei velocidade e uns golinhos. Infelizmente, o Archibald marcou para eles e foi suficiente. No dia seguinte o Artur Jorge chamou-me à salinha dele. Naquela voz grossa dele disse-me: ‘se soubesse tinha-te metido de início’. Eu fiquei sem saber o que dizer, mas respondi-lhe que ele tinha sido justo.
zz – Também marcou um golo a um senhor chamado Schmeichel.
J – Esse jogo foi duríssimo para nós. Eu estava no banco (claro) e o Casagrande partiu a perna aos 20 minutos. Foi uma preocupação. Não conseguimos evitar as lágrimas. Eu entrei e fiz um golo ao Peter Schmeichel que, convenhamos, não era um menino qualquer na baliza deles. Eu já nem tinha ângulo de remate, mas a bola saiu forte e lá entrou.
zz – Não se pode dizer que tenha começado mal. Na estreia marcou logo ao Benfica.
J – E foi logo no começo [quatro minutos]. Digo sempre que me apresentei aos adeptos do Porto com a minha melhor fatiota. Primeiro remate, primeiro golo. E o ambiente nesses jogos era impressionante.
zz – Falta falar da tarde em que marcou quatro golos.
J - Bem, nessa tarde nós ainda estávamos com a adrenalina toda de Viena. E eu estava com uma vontade gigante de festejar com o nosso povo. Cada remate, cada golo. Foi ao O elvas [31 de maio de 1987]. Mostrámos a Taça dos Campeões Europeus ao nosso povo, que tarde tão linda. E depois eu estava na melhor forma de sempre.
zz – Depois tudo mudou. O senhor Ivic foi contratado e o Juary deixou de contar. O treinador não gostava de si?
J - Eu tive um problema com o Ivic logo no primeiro dia. Foi um problema de afinidade. O meu compadre tinha um restaurante, o senhor Ivic foi lá jantar e meu compadre brincou com ele. Falou no Juary e que o Juary não gostava de treinar. O senhor Ivic passou a olhar para mim com esse pensamento e não me deu hipóteses. Mas eu também errei. Nós tivemos um dos melhores treinadores da Europa, o Artur Jorge, e recebemos outro dos melhores. Mas eu não entendi isso na altura. O Ivic já fazia coisas que fazemos ainda hoje e eu agora sou treinador. Eu não estava preparado para entender aquilo. Também errei, não tive a humildade de aceitar o que o Ivic estava a fazer. Ele teve a sua culpa, eu tive a minha, mas foi dos maiores treinadores que conheci.
zz – Acabou por ser emprestado ao Boavista, mas só fez dois jogos no clube.
J - O treinador Pepe cohecia-me e pediu a minha contratação. O major Valentim veio falar comigo e o Pinto da Costa disse-me que eu só ia para o Boavista se quisesse. Fui experimentar, aceitei. O problema é que eu estava com uma lesão muscular, parei muito tempo e quando voltei estava muito atrás dos outros. Não fiz pré-época e aquilo prejudicou-me. Quando vi que não conseguia render o que rendia, preferi voltar ao Brasil. Não queria estar no banco e a receber o dinheiro do Boavista.