Treinou Neemias na formação e garante: «Ele vai ser dos melhores da NBA. Ele é especial. Espero conseguir vê-lo campeão»

Neemias Queta é cada vez mais um nome incontornável no panorama do desporto nacional e internacional e agora pode estar a apenas alguns dias de fazer história, ao tornar-se o primeiro português na história a jogar na NBA, a principal liga de basquetebol norte-americana.

Nos últimos três anos, o internacional jovem luso representou os Utah State Aggies, da Conferência Mountain West, da NCAA (National Collegiate Athletic Association), mas antes de rumar aos EUA o poste natural dos Barreiros, filho de pais guineenses, fez quase toda a sua formação ao serviço do histórico Barreirense.

Por isso mesmo e por forma a conhecer-mos melhor a pessoa por trás do nome que está prestes a fazer história e aquilo que é o seu passado, o zerozero descobriu e esteve à conversa com José Francisco Fernandes antigo treinador nas camadas jovens do Barreirense, que criou uma forte relação emocional com Neemias.

Com 55 anos de vida, José Francisco Fernandes é um "filho da casa" do Barreirense e desde os 16 anos que está diretamente ligado às equipas técnicas das várias categorias da formação do Barreiro. Aos 16 anos já treinava o mini basket do clube (dos sub-12 para baixo), cargo que ocupou durante alguns anos e desde aí fez de tudo um pouco no Barreirense. Treinou os sub-14, sub-16, sub-18, foi treinador adjunto da equipa principal durante 12 anos, coordenador alguns anos e acabou por voltar para a formação, onde está desde então. Em 2020/21 cumpriu a sua 39ª temporada no Barreirense, com treinador da equipa sub-16.

O jovem Neemias

Os caminhos de José e de Neemias cruzaram-se pela primeira vez quando o jogador português estava ainda nos seus primeiros anos no Barreirense, quando era sub-14, e mais tarde novamente quando subiu aos sub-16. Ao zerozero, José Francisco afirma que teve «o gosto e o prazer de ser um dos seus treinadores nesses escalões.»

«O Neemias era uma criança espetacular. Os olhos do Neemias brilhavam quando entrava para treinar. Nunca o vi propriamente chateado com uma bola nas mãos e ao pé dos seus colegas de equipa. O Neemias era uma criança muito satisfeita», descreve-nos José Francisco Fernandes, relembrando o não tão pequeno Neemias adolescente.

«O Neemias era uma criança introvertida, não era fácil chegarmos a ele em termos de perguntar como estava a sua vida pessoal. Não era fácil saber da sua vivência pessoal através dele. Com o passar dos anos, com o conhecimento e com a vivência foi mais fácil. Quando era treinador dele cheguei a ir buscá-lo e levá-lo várias vezes a casa dos e para os treinos e isso criou aqui uma confiança, uma grande amizade e um grande respeito pelo ser Neemias, porque merece tudo. Tudo o que ele conseguir, merece», acrescenta.

Atualmente, Neemias Queta conta com uma estampa física invejável - destacou-se no Draft Combine desde logo ao nível das medições - e tem 2,13 metros. É o jogador com maior envergadura entre os candidatos ao Draft deste ano. José Francisco conta-nos que essa é uma realidade à qual o jovem internacional luso está habituado, uma vez que «fisicamente ele sempre foi diferente dos restantes devido à sua estatura, era sempre o mais alto da equipa». Contudo, desde muito novo que essa sua estatura trouxe alguns problemas físicos a Neemias, que o obrigaram a trabalhar muito ao longo dos anos por forma a evoluir e não sofrer ao nível de lesões. José descreve-nos essa fase.

Neemias com José e a sua família ©Arquivo pessoal

É por isso que José considera que o seu antigo pupilo «fez das suas dificuldades as suas forças» e chegou a uma altura em «que ele próprio começou a pensar que podia ser profissional», fosse «ao nível da NBA, ou não». «Nós, porque não fui o único treinador dele, que tivemos o privilégio de trabalhar com ele, fomos exigentes e quando vimos um jovem com as qualidades do Neemias tentámos transmitir-lhe uma exigência necessária para estar sempre a melhorar», esclarece.

«Nunca o vi com má cara no treino, estar a queixar-se ou fingir lesões para não treinar. Gostava claramente de ali estar e dava tudo o que podia para estar no ginásio do Barreirense, a qualquer hora. Havia dias em que ele podia treinar às 22h e às 18h, 19h já lá estava com a equipa mais jovem para brincar com os miúdos todos. Se morasse ali ao lado ainda passava mais tempo lá», conta José, com um tom carinhoso sempre que fala do antigo jogador do Barreirense.

Basquetebol acima das dificuldades

O que muitos podem não saber é que por detrás desse sorriso que o acompanhava sempre que estava no ginásio do Barreirense ou com uma bola de basquetebol nas mãos, é que Neemias passou por algumas dificuldades durante a sua juventude. Fontes próximas do português contam que este teve que ir várias vezes a pé de sua casa para o pavilhão e do pavilhão para sua casa, um caminho que demorava cerca de uma hora a percorrer sob essas condições. José confirma ao zerozero que viu essa realidade, que nunca impediu Neemias de ir aos treinos e jogos, em primeira mão.

«Pela confiança que fui mantendo com ele tinha conhecimento das dificuldades pela qual ele passava. Não era fácil para uma criança assumir essa situação. Antes de o Neemias ser meu atleta, cheguei a vê-lo a passar a pé aqui à minha janela para ir para o treino e estamos a falar aqui de cerca de uma hora de distância. Nunca o vi a arranjar uma desculpa para não estar presente.»

Neemias nos primeiros anos no Barreirense ©Instagram Neemias Queta

José expressa uma «grande admiração» pela mãe de Neemias, uma vez que, apesar das dificuldades, «nunca faltou a nada à família». Conta ainda que o Neemias chegou algumas vezes atrasado aos treinos «por ter que ficar a tomar conta da irmã, porque a mãe estava a trabalhar», mas que sempre foi «sério e honesto» em relação à sua situação. «O Neemias é especial no sentido em que nunca o vi chateado ou triste por ter essas dificuldades e nunca fez delas um travão para os treinos, jogos e relação com os outros. Transformava-se assim que entrava em campo», concluiu sobre o assunto.

Fazer o que nunca ninguém fez e tantos tentaram

Com tantos anos de experiência na sua bagagem, José Francisco Fernandes já lhe viu passar milhares de jogadores pelas mãos, entre os quais algumas das maiores referências da modalidade a nível nacional, como «Beto [Betinho] - jogador da década da Liga -, um trabalhador nato, o Diogo Carreira, o Pedro Pinto, o [Miguel] Queiroz ou o João Guerreiro.»

«Neemias tem uma coisa a seu favor que é a estatura. Tem uma grande diferença para os anteriores. Enquanto os outros tinham uma técnica mais apurada e um lançamento mais aprumado, o Neemias não tem esses predicados, mas tem envergadura enorme. Fisicamente está muito melhor. O jogo interior da NBA precisa deste tipo de atletas. Neste momento acho que o Neemias tem que melhorar o lançamento de curta e média distância para ser um jogador mais completo e o Neemias tem estes predicados físicos que o podem ajudar mais.»

Além disso, o antigo treinador do poste português destaca que a desistência de Neemias da sua candidatura ao Draft de 2019 - recorde a história do português aqui - ajudou o seu antigo pupilo dos tempos do Barreirense, uma vez que agora este está «um jogador completamente diferente», depois de ter trabalhado «muito a nível físico e técnico». José considera que o jovem de origens guineense «tem uma margem de progressão muito grande» e prova disso é que hoje se atreve a lançar afastado da área restritiva ou até de três, algo «impensável» quando se cruzaram há uns anos.

«O trabalho de pés dele está totalmente diferente. Ainda agora assisti a um treino dele no Draft Combine e ele fez parecer que o cesto estava mais baixo, porque ele afundava com uma facilidade enorme. Está com uma destreza muito mais apurada e ele tem condições físicas do outro mundo, coisa que na altura o Betinho e o Carlos Andrade não tinham, embora tivessem o lançamento muito mais apurado. O Neemias consegue fazer essa transição do interior para o exterior, que é mais fácil, trazer novidades e situações que vai enriquecendo no seu jogo ofensivo», acrescenta.

José destaca a evolução técnica de Neemias nos EUA ©Utah State Aggies

«O Neemias ao contrário de muitos jovens sabe o que quer e tem uma grande estabilidade emocional. Mesmo quando ele era mais jovem, e as coisas não lhe corriam tão bem, nunca o vi com atitudes derrotistas. Ele sempre foi um miúdo muito estabilizado. Agora tenho a certeza que o trabalho que fazem com ele não vai mudar essa situação», denotou José.

Porta-estandarte que pode chegar ao topo

Sempre com um tom carinhoso, quase de figura paternal, na sua voz quando fala de Neemias, com quem hoje ainda mantém contacto esporádico, José Francisco Fernandes não tem receio de apontar ao topo quando lhe perguntam até onde Neemias pode chegar: «Ele vai ser dos melhores da NBA. Ele vai conseguir. Depois de lá estar, ele vai conseguir chegar e espero conseguir vê-lo campeão da NBA.»

O treinador das camadas jovens do Barreirense admite que não é o fã mais assíduo da NBA e que não consegue apontar um destino favorito para o internacional sub-20 português. Contudo, admite que «gostava que ele conseguisse uma estabilidade já forte, com um contrato para dois, três ou quatro anos, algo que pode acontecer se ele for escolhido na 1ª ronda do Draft». «Quero apenas o melhor para ele», comentou, numa conversa em que confidenciou ao zerozero que, recentemente, chegou a ser contactado por «um treinador da liga espanhola, a ACB, a pedir o contacto» de Neemias. O jovem aceitou ouvir a proposta, mas acabou por recusá-la, pois o objetivo era só um: a NBA.

Neemias pode seguir as pisadas de Ticha ©Christian Petersen / Getty Images

A antiga base é vista em Portugal como uma grande embaixadora do basquetebol feminino - recentemente foi homenageada no campo que a viu crescer - e José Francisco considera que Neemias terá um papel semelhante ou ainda maior a partir do momento em que entre na NBA.

«Ele já está a ser um grande embaixador. Falo com algumas pessoas e elas já estão em pulgas para a madrugada de 29 para 30, para saber se ele entra ou não, mesmo pessoas que nada tem a ver com o basquetebol. O Neemias falava a toda a gente quando entrava no ginásio do Barreirense e isso vê-se agora. Se ele entrar na NBA penso mesmo que vamos ter cada vez mais jovens a praticar a modalidade, esperando eu que a Federação saiba tirar proveito da situação, não explorando o Neemias, mas colocando-o no lugar que ele merece. Ele vai contribuir muito para a contribuição do basquetebol enquanto modalidade em Portugal», conclui. 

As estrelas estão alinhadas. O percurso de Neemias fala por si: uma história de superação, sempre de olhos postos na sua ambição de ser profissional na modalidade que o fez e viu crescer e no sonho de chegar à NBA. Tudo se decidirá na madrugada de 29 para 30 de julho, em Portugal Continental, quando se realizar o Draft deste ano da NBA e aí, José Francisco Fernandes, assim como os vários adeptos portugueses e pessoas a quem Neemias tocou com a sua personalidade estarão colados aos ecrãs para ver o filho do Barreiro fazer o que se espera que seja história.