placardpt
    As ideias e o percurso de Miguel Valença

    Aos 28 deixou as balizas para ser treinador, aos 31 vai levar o Anadia à fase de subida à 2.ª Liga: «Vamos surpreender...»

    'Olha o cachopo, não percebe nada disto, é um miúdo… Ele vem para aqui fazer o quê? Vem de Nogueira do Cravo para enterrar o Oliveira'.

    A crítica do público foi a primeiro grande obstáculo no início de carreira do treinador Miguel Valença. Aos 28 anos, depois de muitos anos como guarda-redes, Miguel sentiu que o bichinho do treino já o estava a consumir mais do que o de jogador. Despediu-se das balizas como melhor guarda-redes da série C do Campeonato de Portugal, ao serviço do Nogueirense, em 2017/18, para no ano seguinte estar a comandar o vizinho e rival Oliveira do Hospital.

    Miguel Valença
    2020/2021

    26 Jogos
    16 Vitórias
    5 Empates
    5 Derrotas

    45 Golos
    18 Golos sofridos

    ver mais »
    O conhecimento da série era o seu principal aliado. Desde treinadores a jogadores, do sistema à forma de jogar dos adversários, Miguel Valença conseguiu vencer a dúvida com um honroso 6.º lugar no primeiro ano enquanto treinador, naquela que seria, à data, a melhor classificação da história do clube no Campeonato de Portugal. «Uma chapada de luva branca» para os mais céticos.

    Após duas temporadas em Oliveira do Hospital, o jovem treinador recebeu o convite de um velho pretendente, o Anadia, para assumir um projeto com outras ambições. O futebol tem sido muito elogiado pela crítica, mesmo pelos rivais, e o 1.º lugar da Série D só surpreende os mais desatentos. 

    Na semana que antecede o arranque da fase de subida à Segunda Liga, Miguel Valença aceitou conversar com o zerozero sobre o seu percurso e partilhou connosco as suas ideias e os seus objetivos a curto-médio prazo. E deixou uma certeza: «Vamos surpreender tudo e todos».

    Miguel Valença (segundo a contar de baixo) com a sua equipa técnica e elementos da estrutura do Anadia ©AFC

    «O autocarro passa algumas vezes, mas é raro passar mais do que uma vez»

    zerozero (ZZ): O Miguel toma a decisão de deixar o futebol enquanto futebolista aos 28 anos para assumir o comando de uma equipa técnica. Como surge essa decisão?

    Miguel Valença (MV): Não foi fácil. Tive a oportunidade de falar convosco logo na minha primeira época e falar sobre isso. Na altura tinha sido destacado como o melhor guarda-redes da série C, mas o bichinho do treino já me estava a consumir mais do que o de jogador. Nesse ano tinha tomado a decisão de conciliar o jogo com o treino e treinava os juniores do Nogueirense. Depois recebi o convite da Naval para ir treinar a equipa de juniores na segunda divisão nacional. Já tinha a decisão tomada e ia jogar numa equipa da distrital de Aveiro para conciliar. Até que o presidente Paulo Figueira ligou-me, como já me ligava há alguns anos para me contratar para a baliza. Mas dessa vez queria jantar comigo em Coimbra e propôs-me o cargo de treinador no Oliveira do Hospital.

    ZZ: …

    MV: É curioso e posso confidenciar isso. Já tinha falado com ele umas semanas antes, ele andava à procura de treinador e tínhamos falado sobre 2-3 nomes e eu tinha-lhe dado a minha opinião. Passado uma semana ele lança-me esse desafio. Na altura estava a viver uma boa fase da minha vida. Tinha saído de casa dos meus pais, tinha-me juntado com a minha namorada e o meu irmão tinha saído do país para jogar à bola. Era uma decisão muito importante para o meu futuro. O autocarro passa algumas vezes, consoante se mereces ou não, mas é raro passar mais do que uma vez. E aquela era a oportunidade para assumir uma equipa no Campeonato de Portugal, onde me podia projetar até onde nunca tinha conseguido como jogador, que são os campeonatos profissionais.

    qDentro das quatro linhas não me interessa se me chamam mister, Miguel ou Valença, isso não interessa. O que interessa é que me respeitem. É a única coisa que exijo. Lá dentro sou quem manda, mas cá fora podemos ser os melhores amigos
    ZZ: Fora esse lado mais pessoal, qual considerava que pudesse ser o maior problema? Ir logo para um Campeonato Nacional? Ou ter jogadores mais velhos que o Miguel no plantel?

    MV: Essa parte até era a que me deixava mais tranquilo. Eu joguei desde os 17 nos seniores, três na distrital e o resto no Nacional. Eu conhecia aquela série de trás para a frente e da frente para trás. Conhecia os treinadores e jogadores todos e sabia como colocavam as equipas a jogar. Isso dava-me algum conforto. Em relação à idade dos meus jogadores, ainda hoje tenho jogadores mais velhos do que eu. Nunca foi um problema. Dentro das quatro linhas não me interessa se me chamam mister, Miguel ou Valença, isso não interessa. O que interessa é que me respeitem. É a única coisa que exijo. Lá dentro sou quem manda, mas cá fora podemos ser os melhores amigos. Os meus jogadores sabem que estão à vontade para falar comigo sobre tudo.

    ZZ: Como foi a troca entre dois vizinhos e rivais – Nogueirense e Oliveira do Hospital?

    MV: Levei quatro jogadores de um lado para o outro. Fui mal-amado, eu era 'este', era 'aquele'… Eu estive cinco anos no Nogueirense e estive nos melhores anos do clube. Era uma pessoa acarinhada. E decidi… Consciente daquilo que queria e do que tinha para fazer, com algum receio, é verdade, mas saí para agarrar uma oportunidade com unhas e dentes. O resultado foi a melhor época da história do clube. Entretanto, este ano, já foi melhor com o Tozé [Marreco]

    ZZ: …

    MV: O primeiro ano foi fantástico. O nosso principal adversário, muitas vezes, foi o público. Começávamos o jogo e era: 'olha o cachopo, não percebe nada disto, é um miúdo… Ele vem para aqui fazer o quê. Vem de Nogueira do Cravo para enterrar o Oliveira. Vocês foram uns burros em ir buscá-lo'. Ouvia isto, muitas vezes, até que as coisas começaram a encarreirar e algumas pessoas tiveram de levar umas chapadas de luva branca. (...) Sabíamos que era difícil, que outros tinham aquela diferença orçamental muito grande, mas corríamos mais do que os outros. Acabámos num honroso 6.º lugar.

    ZZ: Tinha essa bagagem da carreira de jogador, mas como é que o Miguel chega à sua ideia de jogo?

    MV: Enquanto jogador sempre fui muito curioso e houve ali uma parte da carreira em que comecei a olhar para o treino com outros olhos. Queria perceber porque se fazia isto ou aquilo. Estava sempre no grupo de capitães, que me dava aquela parte da liderança, e tinha uma visão privilegiada do jogo de trás para a frente, como guarda-redes que era. Houve uma altura em que comecei a passar exercícios do treino para o dossier. Enchi 2-3 naquele tempo. Hoje já tenho cinco [risos]. Foi assim que fui moldando a minha maneira de pensar. No meu primeiro ano treinei processo ofensivo apenas em dezembro, faltavam dois jogos para o final da primeira volta e estava em 7.º. Como disse antes, não tínhamos a qualidade que os outros tinham, mas corríamos mais do que eles. Só assim podíamos estar mais perto de discutir os jogos. E quando as equipas davam por ela, já estava 1-2 zero para nós e toca a meter bloco médio-baixo, toca a defender, sem espaço entrelinhas e fomos construindo assim o caminho, através de uma base defensiva sólida.

    ©AFC

    «Tenho 31 anos e tenho oito jogadores mais velhos. Aprendo mais eu com eles do que eles comigo»

    ZZ: Após duas temporadas no Oliveira surge o desafio em Anadia. Como se processou esta mudança?

    MV: Em novembro do ano passado, tenho três propostas para sair, uma delas até foi do Anadia. Na altura disse que não. Tinha dado a minha palavra ao Oliveira de que ficava lá dois anos. E queria cumprir pela oportunidade que me tinham dado. Quando acaba a época devido à pandemia tive algumas abordagens, inclusive para continuar em Oliveira. Tive quase tudo acertado com um clube de Lisboa, até que surge novamente o Anadia… Eu sempre disse ao Oliveira que sairia para um projeto com outros objetivos. O Anadia era um clube ambicioso, com condições e objetivos altos, perto de minha casa, e aceitei logo. Queria dar esse passo em frente na minha carreira.

    ©AFC
    ZZ: Como se faz o planeamento de uma temporada em plena pandemia? O plantel do Anadia conta com muitos jovens, mas também vemos vários jogadores experientes.

    MV: Posso dizer que foi um trabalho árduo, mas muito rápido. Um bocadinho à velocidade da luz. Percebemos e tentámos chegar a um consenso. Nos últimos anos o Anadia tinha morrido à beira do objetivo porque faltava um bocadinho de maturidade e começamos a trabalhar em 4-5 peças com essa experiência. Não foi fácil. Conseguimos alguns jogadores de qualidade que estavam em situações menos positivas e a lutar por outros objetivos.

    ZZ: Não estavam num contexto favorável…

    MV: Por aí. Não lhes davam o devido valor. Sabes, hoje olha-se muito para idade. Tenho 31 anos e tenho oito jogadores mais velhos do que eu e aprendo muito com eles. Aprendo mais com eles do que eles comigo. Não tenho problemas com isso. As vivências que eles têm: Primeira Liga, Segunda Liga, estrangeiro... Eu vou lá chegar, mas até lá vou bebendo o sumo que também posso beber. Os mais velhos são uns profissionalões e ajudam-me muito com os mais novos…

    ZZ: São vistos por eles como referências..

    MV: Sim. Chegaram onde eles querem chegar. Esta simbiose fez com que estivéssemos agora mais perto de lutar por este sonho. Mesmo depois de tudo o que passámos. Tivemos 15 jogadores com Covid. É muita gente. Coincidiu depois com a nossa melhor fase. Isto é trabalho deles! Tive jogadores que aos 15 minutos estavam a pedir para sair, outros que vinham aos 30 beber água e que bebiam um litro. Lidámos com um bicho que não sabíamos sequer onde estava. Felizmente contei com um grupo de homens com H grande. Foram fantásticos.

    ZZ: O Miguel disse numa outra entrevista que no plantel do Anadia «não há vedetas, trabalhamos todos para o mesmo». É assim mesmo?

    MV: Eu lido muito mal com o vedetismo. Podemos ter bons e grandes jogadores, mas se um deles pensar que é melhor do que o colega do lado vai correr mal. E aqui foi um bocadinho a sorte na escolha que tivemos. Todos a trabalhar para o mesmo. Quando tens os mais velhos a serem exemplo para os mais novos, com um compromisso muito grande e muita ambição também facilita o trabalho.

    Anadia conquistou um lugar no 'play-off' de subida à Segunda Liga ©AFC

    «Somos muito fortes na primeira fase de construção»

    ZZ: O futebol do Anadia tem sido muito elogiado pela crítica e também por vários adversários. O que é que o Miguel mais gosta de ver na sua equipa?

    MV: Os meus jogadores entenderam uma das principais formas de desmontar as equipas em pedacinhos nos vários momentos do jogo. Somos muito fortes nesse capítulo. Percebemos quando estamos em organização defensiva e ofensiva. Conseguimos perceber quando são esses momentos. Gosto de construir desde a primeira fase de construção e tentar chegar a zona de finalização com muita gente. Um futebol fluído.

    ZZ: E quando a equipa adversário não permite esse futebol. Insiste-se ou adapta-se ao contexto?

    MV: Estamos sempre em constante adaptação, mas tentamos sempre desmontar para tentar fazer, sempre tivemos paciência com bola para perceber onde podemos atrair para depois explorar e os timings para o fazer. Por exemplo, nos dois jogos contra o Beira Mar. O primeiro golo em Aveiro e o nosso primeiro golo agora na penúltima jornada foi praticamente igual. Começamos na esquerda, atraímos à direita, voltamos à esquerda, conseguimos criar por dentro e conseguimos sair pela direita. Só mudou o homem que cruzou. O homem que fez o golo foi o mesmo.

    ZZ: O que sente um treinador ao ver que aquilo que treina acaba tão bem representado em campo?

    MV: É fantástico, um orgulho enorme. Outro exemplo: na primeira volta ganho em Espinho numa bola parada treinada no dia anterior. Três pontos. Isto para nós é fantástico. É sinal que eles entenderam e aceitaram aquilo que pediste.

    ZZ: Podemos ter uma ideia muito boa, mas se os jogadores não a conseguirem interpretar temos um problema…

    MV: Concordo. A minha ideia é a mesma desde o primeiro dia em Oliveira. Temos de nos adaptar ao contexto e à matéria. Se eu tenho jogadores com qualidade para sair na primeira fase de construção eu vou sair sempre. Eles pressionam, eu vou errar, mas só a errar conseguimos mudar o processo. Esse calo, essa confiança, essa coragem… Hoje em dia as equipas que nos pressionem é muito difícil acertarem a pressão. Somos muito fortes na primeira fase de construção. Sentimo-nos bem em bloco médio a defender, não temos problemas, mas sentimo-nos bem a pressionar alto e a jogar num bloco mais alto. Sabemos isso e é uma estratégia. Nós na primeira volta defendíamos muito bem e bastavam poucas oportunidades para fazermos golo, mas não saímos tão bem como agora. Somos muito mais felinos na procura da transição para provocar a profundidade.

    qA fasquia está alta, já temos o objetivo principal concretizado, mas agora temos aqui outro que podemos e temos qualidade para o atingir. Sendo o ousider, vamos conseguir surpreender tudo e todos
    ZZ: Hoje qualquer equipa e qualquer treinador tem acesso a todos os jogos e consegue perceber quais são as rotinas dos adversários. Acredito que seja muito importante ter uma ideia em constante evolução.

    MV: Exatamente. Nós conseguimos ver tudo hoje em dia. Se quisermos estudar o adversário ao pormenor só não conseguimos ver o que está por dentro, de que cor é o boxer do jogador. Mas mais importante do que estudar os outros somos nós. A nossa ideia não pode ser a mesma, nem estagnar. Felizmente tenho uma grande equipa técnica comigo.

    ZZ: Como é que é o Miguel fora do treino e do jogo? É uma pessoa que consome muitos jogos ou que consegue abstrair-se um bocadinho do mundo do futebol?

    MV: Já passei os livros todos à minha confidente e ela já os estudou todos [risos]. Ao domingo quando perco, e este ano felizmente foram poucas vezes, quando chego a casa já não preciso de dizer nada. Não janto, não falo muito com ela e só à segunda-feira à tarde é que volto ao normal. Mas não é fácil. Tenho uma empresa de catering e tenho tudo parado, infelizmente, mas por outro lado felizmente porque permitiu focar-me no Anadia. Mas sou uma pessoa tranquila. A pessoa que está ao nosso lado é que sofre sempre um bocadinho mais e leva comigo todos os dias. Papo muitos jogos, passo 5-6 horas por dia ao computador. (…) Consegui moldar bem a minha namorada e hoje ela é a primeira a mudar a televisão para o futebol. Os programas começam às 22 horas e ela muda logo para o Canal 11. Enquanto guarda-redes metia as luvas de um lado e as botas no outro, agora enquanto treinador temos de estar sempre ligados, a pensar naquilo se vamos fazer. 24 sobre 24 horas.

    ZZ: O Anadia terminou a fase regular no 1.º lugar da série D. O que se pode esperar da sua equipa nesta fase de subida?

    MV: Muito trabalho, compromisso e ambição. Vamos olhar qualquer adversário olhos-nos-olhos e vamos honrar o símbolo que temos ao peito. A vitoria é um acessório, aquilo que temos de fazer é dar tudo o que temos, porque a partir daí ninguém nos vai poder apontar o que quer que seja. Vamos ser os mesmos, pés bem assentes na terra, atrás do nosso sonho. A fasquia está alta, já temos o objetivo principal concretizado, mas agora temos aqui outro que podemos e temos qualidade para o atingir. Sendo o ousider, vamos conseguir surpreender tudo e todos.

    ZZ: Qual é que é o sonho do Miguel neste momento?

    MV: Sempre fiz a minha carreira pautada por baixo, a qualidade não era muita. Sempre trabalhei para atingir os profissionais. Nesse ano que fui à liga Placard [futsal] foi também para sair da minha caixa. Gosto de desafios e de me pôr à prova. Quero chegar onde sempre foi o meu objetivo. Não o consegui como jogador, quero consegui-lo como treinador. É o meu objetivo principal. Não vou descansar enquanto não conseguir.

    ZZ: E o que gostaria de me contar daqui a um ano?

    MV: Gostava de contar que estava na segunda liga com o Anadia e nesta altura já com a manutenção garantida. Gostava de estar mais realizado, pois isso seria sinal de que subi com o Anadia ou estava um passo mais à frente. 

    Comentários

    Gostaria de comentar? Basta registar-se!
    motivo:
    EAinda não foram registados comentários...

    OUTRAS NOTÍCIAS

    Liga BETCLIC
    Processo disciplinar cessa suspensão
    Dado que Tiago Araújo não faz parte das contas para o duelo frente ao emblema minhoto por estar lesionado e não poder voltar ao relvado até ao final da temporada, os ...

    ÚLTIMOS COMENTÁRIOS

    AU
    Aurelio_Carvalho 25-04-2024, 02:13
    FC
    Fcpflaw2506 25-04-2024, 02:09
    FC
    Fcpflaw2506 25-04-2024, 02:05
    FL
    fllcortez 25-04-2024, 01:22
    RI
    RicardoHGoat21 25-04-2024, 01:06
    Sir_jaof 25-04-2024, 00:46
    bmgb_bmgb 25-04-2024, 00:41
    Ronaldinho-gaucho 25-04-2024, 00:36
    Jorge-Fernandes 25-04-2024, 00:35
    Ronaldinho-gaucho 25-04-2024, 00:33
    Ronaldinho-gaucho 25-04-2024, 00:28
    Sotkio 25-04-2024, 00:27
    zlatan_21 25-04-2024, 00:26
    AS
    asa_scouting 25-04-2024, 00:26
    ikercasillasbestgk 25-04-2024, 00:12
    CA
    carlsonzz 25-04-2024, 00:10