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    História da transferência
    À volta do jogo

    De Jesus a «Judas»... a polémica troca de rivais

    Texto por Ricardo Miguel Gonçalves
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    As transferências mais controversas são, por norma, aquelas que levam um jogador para um clube rival. É um acontecimento raro, especialmente em Portugal, mas quando as vontades de jogador e clube se alinham, é garantido que a troca faça correr muita tinta. Ainda mais difícil de aceitar para os adeptos seria a de um treinador acarinhado. Mas isso não aconteceria, certo? Errado...

    Em 2015, Jorge Jesus, treinador bicampeão português pelo Benfica, terminou o contrato com os encarnados e, para surpresa do país inteiro, rumou ao eterno rival, o Sporting

    Independentemente dos motivos, a transferência tornou-se um dos momentos de maior controvérsia na história do futebol nacional. A inevitável personalidade do técnico garantiu constantes manchetes de jornal, com juras de amor ao novo clube e picanços ao anterior, o que fez com que os adeptos encarnados se começassem a dirigir ao novo treinador dos rivais como Jorge «Judas», numa referência à traição narrada na bíblia. Igualmente bíblica era a proporção das novas expectativas em Alvalade. Depois de dois anos em crescimento sustentado, o Sporting via-se então com um novo treinador de gabarito, que trazia com ele intenções de sucesso imediato.

    Quase um ano de especulação

    A chegada de Jorge Jesus ao Sporting foi oficializada a 5 de junho de 2015, mas a possível saída da Luz já estava em cima da mesa muito tempo antes. A temporada de 2014/15 era a última contemplada no contrato do treinador português com o Benfica, mas as negociações alastraram-se durante muito tempo. Primeiro, o treinador queria ficar e o clube queria sangue novo, depois era o Benfica quem queria renovar e o treinador procurava outras opções, às tantas ninguém queria ninguém e a seguir já era tudo amor novamente. 

    Enquanto as vontades andavam para trás e para a frente, a época ia correndo de acordo com as expectativas. O Benfica caiu cedo na Liga dos Campeões, mas o primeiro lugar no campeonato, aliado à conquista da Supertaça, garantiam tranquilidade e sucesso. Sem aquecer nem arrefecer, ou até alternando entre os dois, continuava a não haver novo contrato, e pelo caminho Jorge Jesus ia sendo associado a todos os lugares livres pela Europa fora...

    Na segunda metade da temporada, a seis meses do final do acordo, o volume de notícias acerca do futuro do treinador de 60 anos foi aumentando progressivamente. Falava-se já no interesse de alguns dos melhores clubes do mundo, como o Real Madrid e o Barcelona, para além de outras alternativas mais próximas da realidade do Benfica, como o Zenit, o AC Milan e os turcos do Fenerbahce, mas parecia tratar-se apenas de especulação.

    Renovação foi sendo adiada @Global Imagens / Ivan del Val
    Três meses à frente na contagem decrescente, em março, surgiram vários relatos da vontade de Jesus prosseguir na Luz. Falava-se que o técnico podia renovar até com uma redução de salário, desde que isso significasse um maior investimento no plantel, que permitisse um upgrade nas exibições europeias do Benfica

    Em abril, a conversa era a mesma, com a agravante do tempo a esgotar-se, o que levava ao constante bombardeamento de notícias e até mesmo opiniões: jogadores, ex-jogadores, como Matic e Javi García, e até ex-treinadores, como foi o caso de Trapattoni e Sven-Goran Eriksson, deram a sua opinião sobre o grande tema da atualidade encarnada, aconselhando o clube e o técnico a acertar a renovação rapidamente. Nesse momento, Jesus já não falava, tal era o foco em conquistar o campeonato que estava cada vez mais próximo. E a delicadeza do tema.

    E eis que maio chegou e com ele veio o bicampeonato encarnado. No dia 17, o Benfica foi a Guimarães, onde não conseguiu mais que um 0x0 frente à muralha daquele que seria o futuro treinador do clube - Rui Vitória - mas, devido ao empate do FC Porto no Estádio do Restelo, o Benfica venceu o título. Os sorrisos dos adeptos do Benfica cresceram ainda mais quando, três dias depois, ainda antes da 34ª jornada e festa do campeonato, foi noticiado pela primeira vez o interesse de uma nova equipa nos serviços de Jorge Jesus: o Sporting.

    Saiu como campeão nacional @Carlos Alberto Costa
    As notícias, que inicialmente não foram levadas a sério, ganharam novos contornos e quase duas semanas depois pareciam ser uma possibilidade completamente legítima. Estaria Jesus mesmo a considerar trocar o clube que treinou durante seis anos pelos seu maior rival? Seria isso possível? Ao que tudo indicava, sim. A falta de acordo com o Benfica e um desejo de permanecer em Portugal aliou-se à vontade de Bruno de Carvalho, presidente dos leões, de afirmar o Sporting de novo como candidato ao título, e se as notícias ainda não eram concretas, rapidamente passariam a ser.

    Dia 3 de junho foi noticiada a possibilidade de um contrato de três anos para JJ no Sporting, uma notícia que foi levada muito mais a sério no dia seguinte, principalmente devido à reação do clube da Luz. Nessa tarde, a equipa técnica de Jorge Jesus foi impedida de entrar no centro de treinos do clube, no Seixal, isto depois de João Gabriel, diretor das águias, ter feito uma série de tweets acerca do treinador, acusando-o de ser um mercenário no futebol:

    «Sou grato a Jesus!», desabafou, acrescentando, «Para o ano vamos ter treinador comprometido com o Benfica e não apenas com o seu ego e conta bancária!»

    Último jogo foi em Coimbra, contra o Marítimo @Rogério Ferreira
    Também Varandas Fernandes, vice-presidente das águias, condenou a atitude de Jesus, considerando-a uma «falta de respeito».

    «Deveria ter havido lealdade em relação ao presidente e à direção do Benfica. Não é pela saída de um treinador que o Benfica deixa de ser grande», disse o dirigente. «Havia contrato até ao final do mês e negociações a decorrer.»

    As declarações benfiquistas acerca da novela que decorria no futebol português foram como um spoiler do seu eventual desfecho, mas não faltaria muito para a confirmação oficial. Aliás, surgiu mesmo um dia depois.

    Promessas de competitividade e juras de amor

    «A partir de hoje, não há dois candidatos em Portugal, há três.»

    Apresentação foi marcante @Carlos Alberto Costa
    Foi esta a frase marcante do dia de apresentação de Jorge Jesus no Estádio José Alvalade. Se os adeptos leoninos não estivessem entusiasmados o suficiente por "roubar" aos rivais o treinador bicampeão nacional, então o discurso ambicioso do treinador e presidente certamente ajudava a dar alguma confiança a um grupo de apoiantes que tinha vindo a celebrar em poucas ocasiões.

    Jesus voltava a casa, 39 anos depois de sair enquanto jogador de uma experiência que dificilmente foi espetacular (12 jogos, um golo), e trazia com ele um sentimento que para a maioria dos adeptos portugueses era novidade: o amor o Sporting.

    Estavam mais de dez mil pessoas nas bancadas de Alvalade à espera para receber o novo treinador, enquanto se ouvia nos altifalantes o anúncio: «faltam poucos minutos para aparecer o grande sportinguista, Jorge Jesus». E apareceu. Viu nos ecrãs gigantes imagens do seu pai, Virgolino Jesus, que também fora jogador do clube. Riu. Chorou. Saltou. Tudo antes de discursar pela primeira vez para os seus novos adeptos, salientando aquilo que esperava de todos no clube: «Está na hora de caminharmos todos juntos.»

    Adeptos leoninos em êxtase @Carlos Alberto Costa
    Iniciava-se assim um novo ciclo para o clube verde e branco. Com um contrato de três anos, Jorge Jesus tornava-se o mais bem pago treinador em Portugal, 13º no mundo, com cerca de cinco milhões de euros por ano. Um valor equiparável às expectativas que trazia consigo: títulos, imediatamente. Objetivos reforçados por Bruno de Carvalho, que também abordou o universo leonino:

    «Chegou o momento de todos terem noção de que os níveis de exigência neste clube mudaram com objetivos muito claros: voltar a ser campeões nacionais, reforçar a experiência no nosso plantel e manter a aposta na formação como prioridade», anunciou.

    «O nosso treinador saberá potenciar como ninguém a melhor academia de talentos de Portugal e uma das melhores do mundo e saberá potenciar o valor da experiência, que é fundamental. Ele respira futebol, vive futebol e a isso junta um amor intenso ao seu, ao nosso clube. Aqui está o grande Sporting Clube de Portugal».

    A ideia do treinador mais vitorioso da década em Portugal se mudar para o clube do seu coração já era romântica, mas as ambições que trazia consigo tornavam esta história de amor numa verdadeira epopeia. O Sporting estava há treze anos sem ser campeão, tinha um orçamento inferior aos rivais, mas ainda assim Jorge Jesus nunca escondeu que o seu objetivo era ser campeão, apresentando bom futebol.

    Um abraço sentido @Carlos Alberto Costa
    «Quando tens uma carreira desportiva e uma paixão muito forte pelo futebol, essa componente está sempre à frente», admitiu o novo técnico dos leões ao jornal do clube, acrescentando, «quando podes conciliar a paixão pelo futebol com a paixão pelo clube, é sempre melhor».

    «Queremos apresentar um futebol de muita qualidade e ganhar ao domingo, que é o mais importante, para transportarmos o Sporting para o patamar que todos queremos, de forma a que sejamos sérios candidatos ao título de campeão».

    Reencontro teve polémica @Carlos Alberto Costa
    Chegou com uma promessa de vencer e que para isso olharia para todos os jogadores independentemente da nacionalidade e dos nomes, isto é, que a aposta na formação aconteceria apenas se existisse qualidade e desse garantias na primeira equipa. Acabou por acontecer, dentro da medida possível, mas com a exigência de resultados de uma equipa que se queria campeã, com um treinador que não deixava dúvidas dessa possibilidade.

    «Acredito que vou ser campeão», admitiu o técnico no quinto dia como leão, «temos que perceber a exigência do nome que eu represento. Qualquer treinador que treine o Sporting tem que ser campeão.

    Um salto para a frente

    A passagem de Jorge Jesus por Alvalade foi uma daquelas que deixará os adeptos do futebol português, principalmente do Sporting, a pensar naquilo que poderia ter sido. No total, foram três anos e o melhor acabou por ser mesmo o primeiro, que ainda assim não terminou em título.

    Voltou à Luz e ganhou 0x3 @Carlos Alberto Costa
    O início foi a todo o gás, com o primeiro jogo oficial de Jesus a materializar-se numa vitória sobre a antiga equipa por 1x0, que significou a conquista da Supertaça. De seguida veio um bom início no campeonato, que à oitava jornada via o Sporting tornar-se líder no seguimento de nova vitória sobre o Benfica, dessa vez por 0x3, numa partida que silenciou a Luz.

    A liderança iria durar bastante, mas não o suficiente. Na 25ª jornada, as águias vingaram-se dos dos seus carrascos e foram ao Estádio José Alvalade vencer por 0x1, ultrapassando o Sporting de Jesus na liderança. O que se seguiu foi o domínio total lisboeta. Tanto o Sporting como o Benfica venceram os nove encontros restantes, o que significou uma luta interessante todas as semanas, que por fim terminou no tricampeonato encarnado, com recorde de pontos. 

    Benfiquistas não lhe deram descanso @Carlos Alberto Costa
    As duas épocas seguintes seriam menos impressionantes, com dois terceiros lugares e um troféu da Taça da Liga, antes da saída no final da época 2017/18, em acordo com o Sporting, no seguimento do incidente em Alcochete. Mais tarde, depois do tornado emocional dos leões, algumas coisas começaram a surgir com maior clareza. Bruno de Carvalho sempre se mostrou apoiante do treinador que tanto sacrificou para trazer para o clube, mas já fora do cargo, em 2019, revelou uma perspetiva nova:

    «Como católico acredito em Jesus, mas sou descrente de Jorge Jesus», disse o ex-presidente, antes de falar do seu pesar relativo à temporada anterior, «Do que mais me arrependo? De não ter despedido Jorge Jesus em Janeiro. Fizemos o maior investimento de sempre no futebol, cerca de 100 milhões. A partir de Janeiro deixei de acreditar, mas não o despedi porque eram nove milhões de euros», admitiu. E para Bruno de Carvalho o erro não foi apenas não despedir Jesus, chegando mesmo a arrepender-se de assinar com o técnico:

    «Errei na decisão de o contratar, foi claro, tinha tudo para dar certo, fazia muita lógica. Estamos a falar de um treinador que era campeão, que era do rival, portanto teve toda a lógica, como global foi um erro, em termos de resultados», disse, em março de 2019.

    Relação acabou muito azeda @Global Imagens / PEDRO_ROCHA
    E se o presidente de Jorge Jesus no Sporting assumia a contratação como um erro, restava saber qual a opinião posterior do líder do clube que o perdeu, opinião que foi difícil de obter durante os primeiros meses de JJ nos leões, mas foi surgindo gradualmente mais tarde, apesr de não ser o tema favorito de Jorge Jesus.

    «Jorge Jesus está na história do Benfica, é o passado, ninguém o vai esquecer. Ganhou três títulos, ganhou outros, também perdeu outros quando ninguém pensava que perdia», atirou o presidente das águias, antes de revelar o que precedeu o bicampeonato de Jesus no Benfica: «Quando já ninguém o queria, alguém o agarrou e depois conseguiu voltar a ganhar. Se tivesse saído, se calhar hoje já ninguém sabia quem ele era», revelou. Quando questionado se era uma coisa boa o treinador português já não estar no Benfica, Luís Filipe Vieira não escondeu o lado positivo:

    «Para o projeto que o Benfica tem, não tenho dúvidas nenhumas. Não podíamos trabalhar a longo prazo, nem a médio, toda a gente sabe como é que o Jorge trabalha. Ele tem uma maneira de trabalhar que hoje não serve os interesses do Benfica».

    Rui Vitória foi o seu substituto @Getty / Filipe Amorim
    A mudança de um treinador diretamente de um rival para outro foi algo que tinha acontecido apenas em 1931, quando o técnico inglês Arthur John fez a mesma troca que o português 84 anos mais tarde. Pela raridade do sucedido, esta troca tornou-se muito mais que uma novela de um verão, foi um tema que se prolongou pelos três anos de Jorge Jesus no Sporting, e até um pouco depois, e serviu de veneno nas já difíceis relações entre os rivais.

    Em 2020, no Brasil, Jesus voltou a falar sobre a controversa transferência para o clube do seu coração. Falou no seu pai, como já o fizera antes e, emocionando-se como sempre, disse que queria cumprir um desejo do pai que, devido ao Alzheimer, lhe perguntva várias vezes porque não ia treinar o Sporting, antes de falecer. Quando a oportunidade surgiu, o treinador não pensou duas vezes, simplesmente aproveitou. 

    «O meu regresso a Portugal é um dado factual», disse também. E assim foi! Não para o Sporting, o clube que jurou amar, mas sim para o Benfica. Voltou a comandar as águias, que perdoaram Judas quando a oportunidade surgiu.

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