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    Nélson Santos falou com o zerozero

    No Egipto, há um português a querer ser faraó: «Isto é um teste, estou a ser posto à prova»

    2020/12/06 12:33
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    * com Francisco Paulo Carvalho

    O treinador português é cada vez mais desejado lá fora e é cada vez mais comum encontrá-los nos campeonatos mais distantes e mais peculiares. Na terra das pirâmides e dos faraós, o Egipto, há Jaime Pacheco, que treina o Zamalek, na primeira divisão, mas há um outro que está a tentar conduzir um jovem clube ao regresso aos grandes do futebol egípcio.

    Nélson Santos tem 36 anos e já conta com alguma experiência no que toca a ser treinador. Já passou pelo Campeonato de Portugal, por dois dos melhores clubes de Moçambique, já foi adjunto em dois históricos da Primeira Liga portuguesa e até já andou pela recente Liga Revelação.

    Agora, aceitou o desafio de fazer o Nogoom FC - com quem renovou recentemente -, da segunda divisão do Egipto, regressar ao principal escalão daquele país. Em conversa com o zerozero, o técnico abriu o livro e falou de vários temas, desde o projeto deste clube criado em 2006 - que já contou com uma parceria com a academia da Pepsi, onde já passaram jogadores como Mohamed Salah -, às dificuldades e diferenças culturais que tem enfrentado no Egipto.

    ZEROZERO: Como surgiu a possibilidade de rumar ao Egipto e mais concretamente ao Nogoom?

    Nélson Santos
    1 títulos oficiais

     Nélson Santos: Depois de passar por Moçambique e pelo Campeonato de Portugal, decidi procurar outros desafios e acabei por voltar a Portugal para me juntar à equipa técnica do Silas e do Zé Pedro, com quem tenho uma boa relação e já tinha trabalhado, no Belenenses. Estive com eles na temporada 19/20 e acabámos por sair logo na 4.ª jornada, mas eu fiquei na equipa sub-23 até ao período de quarentena em que os campeonatos pararam. Foi aí que decidi sair e vir para Nogoom, porque era um projeto muito interessante e uma experiência diferente. Tendo em conta que estávamos perante o início de uma pandemia não me passava pela cabeça sair de Portugal, mas infelizmente não surgiu nenhum projeto para ficar e acabou por surgir esta proposta através do meu empresário. O Egipto em termos de continente africano é como se fosse a Premier League na Europa e prova disso é que a final da Liga dos Campeões africana opôs o Zamalek do Jaime Pacheco e o Al Ahly – o Al Ahly acabou por vencer por 1x2 -, ambos egípcios. O campeonato egípcio (e as equipas do Norte de África) domina as competições internacionais. Sempre tive curiosidade de trabalhar num campeonato de norte de África por isso mesmo e o Egipto, pela sua proximidade ao mundo árabe, é um trampolim muito fácil caso se faça um bom trabalho. Eu não fiz carreira de jogador e quando assim é, é mais difícil arranjar trabalho de treinador e temos de procurar outros caminhos e eu estou a fazer o meu via continente africano para alcançar outros voos.

    ZZ: O facto de estarem na segunda divisão não o desmotivou a ir para o Egipto?

    Nélson Santos: O Nogoom há dois anos esteve na Primeira Liga. Não tinha como meta subir, mas acabou por consegui-lo. Contudo, quando o fez, não estava preparado para se afirmar e acabou por descer novamente. O ano passado quiseram voltar a subir, mas não conseguiram e acabaram por quase descer à terceira divisão. Não me desmotivou, porque tenho os pés bem assentes na terra e sei que é cada vez mais difícil entrar no mercado português. Ou se emigra, ou se tem muitas dificuldades, porque há falta de oportunidades, mesmo com a grande geração de treinadores que está a aparecer. Se queremos seguir a vida de treinador de futebol temos de arriscar. Isto é um teste, estou a ser posto à prova. Há coisas que pensava que não pensava que ia voltar a passar e já passei, mas vamos continuando com as armas que temos. O clube quer regressar à primeira liga, mas não é assim tão fácil. É um campeonato de 16 equipas onde só uma sobe – o campeonato está dividido em três séries com 16 equipas cada e só uma de cada série sobe. Quando vim há três meses para o Egipto vim com o intuito de me adaptar primeiramente.

    Nélson e José são muito interventivos no treino ©Arquivo pessoal

    ZZ: Apesar dos seus ainda 36 anos, já conta com alguma experiência. Passou pelo Belenenses SAD, Marítimo, Moura, Costa do Sol e Ferroviário de Maputo, em Moçambique. O que diferencia o Nogoom enquanto clube dessas outras experiências?

    Nélson Santos: O clube precisava de ser organizado, estruturado e as coisas levam tempo. Uma das minhas missões é ajudar nessa organização, profissionalizá-lo. Este clube antigamente era a equipa da Pepsi, uma academia à semelhança da Taça Coca-Cola em Portugal, que organiza torneios por todo o país e recruta os melhores jogadores para vir para a academia do clube. O Mohamed Salah passou por este projeto, o Hassan que jogou no Braga também e outros três ou quatro jogadores de renome egípcios também. O clube tem ainda uma ligação ao Benfica, onde estão cá dois treinadores portugueses ligados ao Benfica, que estão responsáveis por toda essa formação. Desta forma implementam a filosofia de treino do Benfica, uma das melhores escolas de formação do mundo, aqui. A minha vinda também veio nesse sentido de dar maior qualidade no treino. 90% da minha equipa tem uma média de idades a rondar os 20 anos e para ter resultados também é preciso experiência. Nos últimos cinco jogos da época passada perdemos nos últimos 10 minutos, no período em que é mais preciso experiência, inteligência, malandragem. Este é um clube formador e vendedor, pelo que a idade é normal. Nós temos cerca de 100/150 crianças a dormir na academia do clube. Têm as refeições lá, treinam e têm o sonho de chegar à equipa principal.

    ZZ: Conta na sua equipa técnica com o José Ferreira, treinador de guarda-redes. Tem jogadores portugueses no plantel?

    Nélson Santos: Na Segunda Liga podemos ter dois estrangeiros no plantel. Quando vim tive a oportunidade de trazer dois portugueses, mas acabou por não acontecer. Eu gosto de jogar pelo seguro, estar no terreno e analisar se há condições para trazer as pessoas para cá. Agora vou assinar com um jogador nigeriano e outro da Gâmbia, pelo que o plantel está praticamente fechado. Eles aqui procuram mais o jogador africano.

    ZZ: A barreira linguística dificulta muito o seu trabalho de treinador?

    Nélson Santos: Bastante. Já tive cinco tradutores, por vários motivos. Traduzir uma linguagem técnica de futebol é diferente de traduzir algo relacionado com cozinha ou outro tema. É preciso alguém que já tenha jogado ou jogue futebol, porque precisas que a mensagem seja exatamente a que estavas a pensar. Às vezes dava um grito a dizer «vira o jogo» e ele traduzia «podes virar o jogo se faz favor», é diferente. Além disso a questão de estar a falar inglês com o tradutor não ajudava. Tenho perdido mais tempo e as minhas sessões têm sido maiores precisamente por causa disso. Não vale a pena fazer coisas muito complexas porque colocar variantes vai fazer pior, não vai resultar. Entretanto nestes três meses já sei algumas palavras em árabe, pelo menos as mais técnicas, e tenho dois ou três jogadores que falam em inglês, o que facilita muito e acaba por não ser comum no Egipto. Tem sido uma barreira extremamente difícil, que vou tentando utilizar com a utilização de vídeos, por exemplo. 

    Treinador português tem tido dificuldades com a língua ©Arquivo pessoal

    ZZ: Sente que tem havido um maior investimento no futebol egípcio e africano no geral?

    Nélson Santos: Sim, sem dúvida. Basta ver o exemplo do Pyramids. Eles ficaram em 3º lugar na Primeira Liga nos últimos dois anos e este ano até foram buscar jogadores ao Al-Ahly. Pertenciam ao grupo City e têm uma grande capacidade financeira e têm apostado bastante. De tal modo que têm trazido sempre treinadores de renome e com bastante experiência internacional. Sinto que na segunda liga há uma grande diferença em relação à primeira no que toca às condições de trabalho, campos e tudo mais. No último jogo apanhei balneários com as paredes todas riscadas com táticas. É algo que nunca tinha visto. Há estádios bons na segunda liga, mas são os de clubes com maiores investimentos, que pertencem a empresas, por exemplo. Com a Taça do Egipto terei oportunidade de ver melhor como são os clubes das divisões mais baixas – há quatro no Egipto.

    ZZ: Renovou recentemente contrato com o clube para esta nova temporada que agora vai começar. O que o levou a querer continuar? Sente que foi um voto de confiança?

    Nélson renovou com o Nogoom nas últimas semanas ©Nogoom FC
    Nélson Santos: Quando vim, foi com um contrato de dois anos, mas era quase um teste, para ver se me adaptava bem com todas as diferenças culturais. Depois há a questão de estar no continente africano, mas num país com cultura árabe. A cultura africana por si só já é diferente, mas assim ainda mais diferente é. Aqui temos as duas culturas juntas. O feedback inicial dos jogadores foi muito positivo e aceitaram bem as novas metodologias de treino e algumas regras. A renovação deve-se muito a isso. Reconhecem qualidade, reconhecem competência e valor.

    ZZ: Qual o principal objetivo para esta temporada?

    Nélson Santos: Neste momento o objetivo é claramente subir. É muito mais fácil vender os jogadores estando na Primeira Liga do que na Segunda, isso é geral. A ideia é potenciar e vender jogadores. Há jogadores com muita qualidade. Nem todos vão chegar lá naturalmente, mas para que isso possa acontecer tem que haver uma boa metodologia de treino e boas condições. Se a equipa estiver num patamar competitivo mais elevado, melhor. Quando fui convidado para vir para cá foi nesse sentido.

    ZZ: No Egipto tem o exemplo do treinador Jaime Pacheco, no Zamalek. Como sente que é visto o treinador português aí?

    Manuel José esteve nove temporadas, no total, no Egipto ©Getty / Junko Kimura
     Nélson Santos: O Rui Águas esteve cá há pouco tempo. Neste momento está cá o Jaime Pacheco. Aqui gostam muito do treinador português, já cá estiveram uma série deles, como o José Peseiro e o Jesualdo Ferreira. O Manuel José é o faraó aqui, ele próprio sabe que quando morrer lhe farão uma estátua algures. Ele teve um grande impacto.

    ZZ: Como tem lidado com a cultura do Egipto? É muito distinta da portuguesa?

    Nélson Santos: Aqui a semana de trabalho, assim como o horário dos treinos, é um pouco diferente daquilo que estamos habituados, também por causa das rezas e tudo mais. Estamos habituados a jogar ao sábado e ao domingo em Portugal, aqui varia muito mais. Não vamos ter pausa para o Natal nem para o Ano novo. A cultura deles não comemora essas datas, por isso vai ser uma experiência também diferente. Estar longe da família, não ir a Portugal, até porque está complicado de viajar com a pandemia.  É uma diferença cultural bastante grande, mas não foi um grande choque, porque quando estive em Moçambique preparou-me para muita coisa em termos de falta de recursos, de trabalhar com jogadores que não pensam tanto o jogo. Aqui o choque não foi tão grande, mas acredito que para alguns colegas meus de profissão fosse muito difícil. Tive que me adaptar e perceber que todos os dias há algo diferente para me preparar.

    ZZ: Quais as principais diferenças do futebol praticado no Egipto e em Portugal?

    ©Arquivo pessoal
    Nélson Santos: O jogo aqui tem muitos erros táticos. Joga-se muito ainda no individualismo, enquanto que na Europa é mais coletivo e pensado. O jogador egípcio tem mais preguiça de querer aprender. Em Moçambique os jogadores todos os dias sabiam e queriam aprender, aqui são mais preguiçosos, fogem muito. Preferem ter dois dias de folga do que um prémio de jogo. Isso às vezes dificulta. Por exemplo, tenho um jogador que me desapareceu durante duas semanas e me apareceu ontem para treinar. Ninguém me disse nada, não sei se foi castigado ou foi algo grave, não sei. Outra coisa que tentei implementar é que todos têm que treinar de caneleiras e aqui ninguém o faz. Preferem pagar multa a treinar de caneleiras, não gostam. Tem que se adaptar, porque não vale a pena criar conflitos. Já me aconteceu rezarem entre o aquecimento e o jogo, ao intervalo, um pouco de tudo. Já estou habituado e tenho que respeitar. Já me aconteceu jogadores terem um problema na unha e eles correrem e fazerem um exercício com uma bota calçada e o outro pé descalço, porque não sabem meter uma ligadura. Quando iniciei a pré-época, apareceram-me todos de ténis, porque estavam à espera que fosse só corrida, não estão habituados a treinar algo mais pensado. Por exemplo, eu gosto muito do sistema de 3x4x3 e tentei implementá-lo aqui, mas para o fazer é preciso jogadores com inteligência para isso. Eles não conseguiram e acabei por desistir, quando eu queria melhorar a nossa qualidade defensiva, porque era uma equipa que sofria muitos golos.

    ZZ: Conta com um longo passado de ligação ao Belenenses. Sonha com um regresso a Belém?

    Nélson Santos: Quanto mais tempo estiver a trabalhar no futebol é o mais importante. Gostava claramente de estar em Portugal, no meu país, e de estar perto da minha família, mas sabendo que cada vez é mais difícil isso acontecer, não vejo o regresso a Portugal tão depressa. Quanto a regressar ao Belenenses, é um talvez, afinal sou um profissional do futebol. Quanto mais tempo estiver fora, mais difícil será regressar a Portugal. A questão da Covid também fez com que os orçamentos dos clubes baixassem e isso abriu e pode abrir oportunidades a treinadores noutras realidades.

    ZZ: Quais os seus principais objetivos para o seu futuro enquanto treinador?

    Nélson Santos: Essencialmente continuar no ativo, de preferência em ligas profissionais e onde tenha valorização, reconhecimento e visibilidade pelo meu trabalho. Não vou dizer que gostava de treinar equipa x ou na liga y, até porque isso também depende da sorte. Quero procurar fazer bons trabalhos, em campeonatos mais competitivos e que me obriguem a ter desafios difíceis. Agora, isso não é fácil, mas quero poder continuar com esta paixão e esta paixão, apesar de se tratar de uma vida difícil e de uma profissão muito ingrata.

    Portugal
    Nélson Santos
    NomeNélson Eduardo Silva Santos
    Nascimento/Idade1984-05-29(39 anos)
    Nacionalidade
    Portugal
    Portugal
    FunçãoTreinador

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