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    Um clube singular de uma capital «pobre» mas «sexy»

    Tennis Borussia Berlin: O Grand Slam da tolerância no futebol

    Poucas cidades no mundo se podem gabar de ter a diversidade de Berlim. Uma capital diferente de muitas outras onde, em cada canto, encontramos uma peça do puzzle onde o mundo se encaixa num ambiente de tolerância, respeito e convergência. No futebol, essa representatividade não se reflete num colosso a nível europeu, mas espelha-se bem no exemplo do Tennis Borussia Berlin e de muitos outros que encontraram o seu espaço numa capital onde cabem todos. De claques que lutam contra a homofobia aos diplomatas de chuteiras, eis como Berlim e um clube de futebol em particular se tornaram exemplos de igualdade no desporto.

    Mais de 100 anos a derrubar preconceitos

    Para quem já visitou Berlim, talvez a melhor expressão que a defina seja a do antigo mayor, Klaus Wowereit, em 2010: «Somos pobres, mas somos sexy». Analisando a afirmação, a pobreza é facilmente explicada pela própria história da cidade. Foi vítima de uma razia alimentar na Primeira Guerra, foi o epicentro da Segunda e esteve, até 1989, dividida por um muro, com dois sistemas completamente opostos a administrá-la. Se isso explica a pobreza, também explica o sexy. A mescla de culturas, pessoas, arquitetura e intelectualidade fazem da capital alemã um dos lugares mais singulares do planeta, incluindo o futebol.

    qComo provocação, os nossos adeptos decidiram que os homens iam vestidos de mulheres e vice-versa, só para mostrar que não queríamos mesmo saber
    Tobias Schulze

    Mas e o Tennis Borussia? Este clube, simpaticamente apelidado de TeBe, surgiu em 1902 como um clube, lá está, de ténis e ping-pong. Com o inverno rigoroso de Berlim, os membros decidiram que o futebol seria o melhor desporto para praticarem no tempo frio e assim surgiu, em 1904, a secção de futebol do clube. A diversidade deste clube está diretamente relacionada com a própria história, isto de acordo com Tobias Schulze, membro da direção do TeBe desde 2019, que falou em exclusivo ao zerozero.

    Tobias Schulze é um dos membros da direção do TeBe ©TENNIS BORUSSIA BERLIN

    «O clube, desde a sua fundação, sempre foi muito cosmopolita. Um bom exemplo foi após a Primeira Guerra em que a maioria dos alemães consideravam os franceses inimigos. Mas o TeBe colocou essa rivalidade de lado e foi o primeiro clube alemão a jogar um amigável com uma equipa francesa» disse, através de videochamada.

    Se o pós-Primeira Guerra Mundial serviu para unir e construir, já o regime nazi e a Segunda Guerra serviram para o oposto. «Com a chegada dos nazis ao poder e consequente ditadura, muitos membros do clube foram mortos e perseguidos por serem judeus» adiantou.

    Um desses casos foi o de Hans Rosenthal, presidente do clube entre 1965 e 1973, que conseguiu voltar a ter contacto com o TeBe após ter conseguido escapar, com a ajuda de uma família alemã, à perseguição nazi. Além do cargo no futebol, foi uma das maiores estrelas da televisão e rádio durante os anos 70 e 80, que coincidiram com os tempos áureos do clube berlinense, com duas presenças na Bundesliga.

    ©Soren Kohlhuber

    Ainda com as feridas bem abertas do regime nazi, um dos problemas da Alemanha era o antissemitismo, bem patente na sociedade, e um chairman judeu representava bem os ideais que o clube pretendia vincar. No entanto, nos anos 80 e 90, a Alemanha assistiu a um crescimento preocupante de neonazis e hooligans nos estádios de futebol.

    «Se quiséssemos ver futebol na Berlim Ocidental, o Hertha era o grande clube. Mas se fosses gay ou de esquerda, era um ambiente perigoso devido ao hooliganismo. Então essas pessoas procuraram um abrigo para verem um desporto que é de todos e encontraram-no aqui, no Tennis Borussia. Era um clube pequeno, sem muitos adeptos, então pessoas do movimento Punk, LGBT, partidários de esquerda etc., encontraram aqui um porto seguro e começaram a apoiar o clube» afirmou Tobias.

    Com a queda do muro e já com uma massa adepta bem vincada, o TeBe passou a jogar com clubes da Alemanha de Leste. Os clubes da antiga RDA suportavam o mesmo problema do ocidente: neonazis. Com a especificidade dos fãs do clube, foi expectável a pouca tolerância dos cânticos dos rivais.

    ©Daniel Stolzenbach

    «Eles tinham uma música favorita que era algo como 'as vossas cores são gays' (o clube está associado ao roxo). Mas os nossos adeptos não ligavam muito e não tinham problemas nenhuns com essa associação. Em 2000, tivemos um jogo com o Energie Cottbus fora de casa, então, como provocação, os nossos adeptos decidiram que os homens iam vestidos de mulheres e vice-versa, só para mostrar que não queríamos mesmo saber» acrescentou.

    Toda essa inclusão deu a motivação necessária para que alguns adeptos se assumissem, tal como aconteceu nesse mítico jogo com o Cottbus. «Na viagem de regresso, um dos adeptos sentiu-se tão bem com a experiência que sentiu a necessidade de assumir que era gay. O problema é que todos se riram porque não acreditaram e que naquele dia eram todos gays... Teve de voltar a dizer uma semana depois e só aí os conseguiu convencer… Aquela coragem e à vontade em ser ele próprio mostrou bem o que é o espírito do clube» lembrou Tobias Schulze. 

    ©Daniel Stolzenbach

    Sem muros, ganhou a diversidade

    As dificuldades dos clubes berlinenses durante a Guerra Fria foram evidentes, levando mesmo o Hertha a descer de divisão em 1964 por subornar jogadores para jogarem na capital, uma vez que a tensão política da cidade afastava qualquer atleta. Essa descida significou que não haveria um representante da capital na liga da RFA e, por imposição da federação, o SV Tasmania subiu à Bundesliga e efetuou o pior registo da história da competição, que ilustrou bem as fragilidades dos clubes berlinenses.

    Com a queda do muro de Berlim, a Bundesliga sofreu alterações profundas para reunificar as duas ligas da Alemanha. Embora, no lado do Leste, os Dynamos de Dresden e de Berlin (clubes com fortes ligações aos soviéticos, o primeiro era das forças policiais, o segundo pertencia à Stasi) fossem clubes com dimensão europeia, houve dificuldades em integrá-los na Liga. Com apenas duas vagas disponíveis, os premiados foram o Hansa Rostock e o Dynamo Dresden, não havendo espaço para nenhum clube da capital, à exceção do Hertha, que já lá estava a jogar pelo lado ocidental. Um derby de Berlim só voltaria a ser visto no principal escalão com a subida do Union Berlin em 2019.

    Dynamo Dresden em jogo com o Bayern Munique na Taça dos Campeões Europeus de 1973 © Keystone / Freelancer - Getty

    Ora, se a subida do Union mostrou que, nos últimos 31 anos, os clubes da capital têm evoluído no plano desportivo, no plano social, o TeBe tem a noção do impacto que o futebol pode ter e tudo começa nos adeptos. Após a crise dos anos 90, que arrastou o clube para o quarto escalão, ficou decidido que caberia aos seguidores escolherem o rumo do clube. Além da relação próxima com a administração – onde toda ela faz trabalho voluntário-, cabe aos fãs programar as atividades do dia de jogo, a ementa do bar – que inclui comida vegetariana -, a música e tudo o resto que rodeia o clube.

    O principal grupo de apoio do TeBe criou o movimento Fußballfans gegen Homophobie(FfgH) (adeptos de futebol contra a homofobia). Depois da iniciativa ter angariado 40 clubes na Alemanha, a ação foi além-fronteiras e é bastante notória em Inglaterra, onde praticamente todos os clubes da Premier League tem uma fação de apoio LGBT. Em Portugal, o movimento ainda não chegou, mas provavelmente será uma questão de tempo.

    ©Daniel Stolzenbach

    Porém, seria hipócrita ter essa diversidade fora de campo e não a apresentar dentro das quatro linhas e, nesse aspeto, o Tennis Borussia volta a dar o exemplo. 13 jogadores do plantel são descendentes de emigrantes dos mais diversos países, tais como Palestina, Turquia, Polónia, Congo, Albânia, Tailândia, entre outros.

    «A equipa representa Berlim em todos os níveis. Nenhum dos jogadores veio de fora para jogar aqui, são da cidade e a maioria jogou nas camadas jovens. Alguns jogaram noutras equipas, mas voltaram. Berlim tem muita diversidade, há muita gente com dupla nacionalidade, parentes migrantes… é normal isso refletir-se na equipa» declarou Tobias Schulze.

    Jérôme Boateng
    1. Bundesliga 2020/21
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    Talvez o maior símbolo dessa diversidade seja Jérôme Boateng, produto da formação do TeBe cujas origens remontam ao Gana, seleção onde joga o seu irmão mais velho Kevin Prince - que foi formado no Hertha- e que reflete a diversidade identitária da cidade. E é nessa formação que este clube mais investe. Se nos seniores a equipa está num patamar «acima das suas capacidades», nas camadas jovens a história é outra. O clube é dos que mais proliferam nesse escalão, sendo «um dos melhores da cidade e talvez do país» e, também, no futebol feminino, onde o clube foi um dos pioneiros a ter uma equipa exclusiva desta vertente, de acordo com o dirigente do clube.

    ©TENNIS BORUSSIA BERLIN

    Diplomatas de chuteiras nos pés

    qHá quem nos chame diplomatas de chuteiras. O que é um hobby para muita gente, para nós é uma luta de reconhecimento
    Rafal Kwak

    O Tennis Borussia poderá ser o representante máximo dessa diversidade, mas a cidade de Berlim tem mais que um clube a servir de exemplo. Se acima referimos o SV Tasmania – clube fundando para angariar dinheiro para cumprir o sonho dos criadores de imigrarem para essa região da Austrália-, existem outros clubes cujos propósitos igualam a homogeneidade característica da cidade.

    De acordo com o gabinete de estatística federal alemão, existem 21,2 milhões de pessoas na Alemanha de proveniência estrangeira, o que representa 26% da população. O maior grupo são os turcos, que representam 13% dessa fatia. Tendo isso em conta, só em Berlim, encontramos uma variedade de clubes que nos fazem lembrar a Süper Lig: Hilalspor, Al-Dersimspor, Türkiyemspor, Berliner AK 07, SV Yeşilyurt... Fora da cidade, o Türkgücü München tem vindo a subir a pulso e pretende juntar toda a comunidade turca à volta do clube, apontando mesmo à Champions League numa dúzia de anos.

    O Türkiyemspor é um dos muitos clubes turcos de Berlim e da Alemanha ©Türkiyemspor Berlin

    Além de clubes turcos, existem ainda o TuS Makkabi Berlin, que representa a comunidade judaica, o SV Norden-Nordwest que alberga, na sua maioria, refugiados da Etiópia e Eritreia, clubes croatas, polacos, sérvios, árabes… e, noutros campos, o Union Berlin com ligações diretas à união trabalhista soviética e ainda o clube das forças secretas comunistas -as Stasi-, o Dynamo Berlin.

    O presidente de um desses clubes é Rafal Kwak, do FC Polonia, um clube com ligações polacas no seio de Berlim que alimenta a integração dos imigrantes na cidade. «Estes clubes são importantes para aqueles que são novos aqui. Aqui encontram pessoas que falam a mesma língua, encontram amigos e podem esquecer um pouco do dia-a-dia difícil que têm» disse em conversa com o zerozero.

    Rafal Kwak (à esquerda) é o presidente do FC Polonia ©FC POLONIA

    Mas engane-se quem pense que a ligação étnica os torna exclusivos de uma determinada nacionalidade, pelo contrário, estes clubes pretendem integrar toda a gente, dando um pouco do que é deles a todos, como o convívio depois dos jogos com a equipa adversária onde, antes da pandemia, era comum trazer umas cervejas polacas e um grelhador para animar a confraternização.

    «Apesar de sermos um clube polaco, temos 250 membros, entre eles polacos, alemães, sérvios, turcos e ucranianos. Qualquer um pode fazer parte independentemente da sua origem, o desporto é uma linguagem universal e aqui cada um consegue comunicar mantendo a sua identidade pessoal. Representamos o nosso país e sentimo-nos muito bem em Berlim, porque aqui vivem todas as nações» afirmou Rafal.

    «Jogámos regularmente contra clubes como o SD Croatia, FK Serbia, SC Bosnia, clubes da Síria, árabes, italianos… Há quem nos chame diplomatas de chuteiras. O que é um hobby para muita gente, para nós é uma luta de reconhecimento. Nem sempre os polacos têm boa reputação na Alemanha, nós queremos contribuir para limpar essa imagem. Vamos fazer de tudo para ter sucesso, não temos nada a perder» concluiu Rafal Kwak.

    Os jovens do FC Polonia ©FC POLONIA BERLIN

    O que Berlim mostra ao mundo é que os grandes podem vestir a pele de pequeno e dar o exemplo desde cedo de que a competitividade é importante, mas não é tudo. Numa altura em que os clubes tentam fabricar jogadores num processo quase industrial para alimentar os plantéis e futuras vendas, círculos como estes ensinam a fabricar a pessoa antes do jogador.

    Além disso, num período em que o racismo e a intolerância estão novamente - e lamentavelmente - em voga, os exemplos de integração, respeito e superação destes pequenos clubes deveriam ser exaltados e fazer parte do vocabulário futebolístico. Com a pandemia a colocar em causa a sobrevivência destes clubes - que mais do que qualquer um, vivem dos seus adeptos -, é urgente olhar para eles e não deixar falir estas pequenas associações. O futebol, como tudo na vida, constrói-se pela base e, tendo em conta o deserto dos estádios, é indispensável olhar para a pirâmide como um todo.

    Alemanha
    Jérôme Boateng
    NomeJérôme Agyenim Boateng
    Nascimento/Idade1988-09-03(35 anos)
    Nacionalidade
    Alemanha
    Alemanha
    Dupla Nacionalidade
    Gana
    Gana
    PosiçãoDefesa (Defesa Central)

    Fotografias(48)

    Comentários

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    motivo:
    JO
    Excelente Artigo
    2020-11-28 11h39m por jonyvice
    Continuem a apostar neste tipo de artigos e reportagens, são excelentes matérias a falar sobre o futebol
    Atenção - depois da queda do muro,
    2020-11-28 00h54m por carlos_batuta
    A RDA só teve direito a 2 vagas na Bundesliga - Dynamo Dresden e Hansa Rostock

    O RotWeiss e o Chemi Halle disputaram a Bundesliga2, a exemplo de outras 4 equipas da RDA.
    Agradecimento
    hm por zerozero.pt
    Muito obrigado. A notícia foi alterada com base no comentário acima.
    Adeptos Alemães
    2020-11-27 19h30m por stereolab
    Que exemplo! Não é só o nível de vida que os faz ter os estádios cheios, também é esta cultura de desportivismo que traz aos estádios adeptos mais diversos, e faz da ida ao futebol uma experiência positiva. Parabéns ao zerozero por fazer cobertura a exemplos como o TeBe. Já agora, neste registo de clubes pequenos que fazem da inclusão e diversidade um bandeira identitária, há um exemplo muito bom em Inglaterra, o Whitehawk FC.
    Muito bom!
    2020-11-27 17h40m por theatoozofficial
    Parabéns por este artigo ! Na Alemanha na mesma linha tambem existe o St Pauli na Segunda divisão .
    Belo artigo!
    2020-11-27 17h40m por FredericoFigueiredo
    Os jornalistas que trabalharam neste artigo estão completamente de parabéns!! Muito bom, a história do futebol na cidade de Berlim é interessantíssima e única no mundo! Espero poder voltar a ver artigos desta qualidade no prazo de tempo próximo!!
    Tourist
    2020-11-27 17h26m por daniel_fcporto
    Faço minhas essas palavras! Já conhecia o Tennis Borussia, mas alguns destes clubes só conhecia do FM, foi um regalo ler estas linhas. Parabéns ZeroZero.
    TO
    Excelente artigo!
    2020-11-27 17h05m por Tourist
    Muitos muitos parabéns ZeroZero! Excelente artigo!

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