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    Entrevista à Tribuna Expresso

    (20AGO2017) | Futre: «Já era embaixador do Atlético. Estava sentado a fumar e o Antíc diz-me para me equipar»

    2020/04/11 18:30
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    Entrevista da autoria da jornalista Alexandra Simões de Abreu da Tribuna Expresso, originalmente publicada a 20 de agosto de 2017 e que pode ser vista na publicação original aqui.

    Figura ímpar do futebol, chegou a ser apelidado de «Maradona português». Jogou em vários clubes e países mas foi a Espanha que conquistou o seu coração. A viver metade da semana em Madrid e a outra metade em Lisboa, Paulo Futre passa em revista quase 50 anos de vida, a maior parte deles dedicados ao futebol.

    O seu pai foi quem mais o influenciou para jogar futebol?
    «Sim, claro, ele foi jogador. Jogou no Montijo, depois na Amora, nunca jogou na I Divisão, sempre na II, mas era um bom jogador, era conhecido como o “pé canhão” lá no Montijo, porque era canhoto».

    Antes do Sporting jogou onde?
    «No Cancela, nos Califas, União, clubes de bairro lá da terra».

    Como foi parar ao Sporting?
    «O Aurélio Pereira organizou o primeiro torneio da onda verde, para a captação de jovens jogadores. O torneio era entre equipas dos 10 aos 13 anos. A nossa equipa, o Cancela do Montijo, foi à final no primeiro e no segundo ano. O grande prémio era jogar a final no estádio de Alvalade. No primeiro ano, como eu tinha só nove anos, entrei com o bilhete de identidade de um amigo meu, do Montijo, o Rogério Paulo Viegas Alves. Como tive de decorar nunca mais me esqueci do nome. No final do jogo o Aurélio Pereira aparece a perguntar: 'Onde é que está o Rogério?'. Queria falar comigo e com o meu pai. Mas, claro, fui logo embora. Na segunda final, já fui como Paulo Futre e ele fala com o meu pai, mas o meu pai disse que não».

    Entretanto vai jogar numa seleção, não é?
    «Sim. É a primeira seleção que existe de 11 anos, organizada pela Direção-Geral dos Desportos, que fez umas experiências em todo o país para escolher os melhores 16. Passei dos testes do Montijo, para Setúbal, depois passei para fase final e finalmente para os melhores já em Lisboa, no Estádio Nacional. Fiquei nos 16 melhores. Depois vou para França, para Rocheville - foi a primeira vez que viajei -, era capitão dessa seleção de sub-11. E sou o melhor jogador e marcador do torneio. E quando chego de Rocheville está o Aurélio Pereira no aeroporto. Isto uns meses depois da oferta que ele faz. E convence o meu pai».

    Porque é que o seu pai não o deixou ir da primeira vez?
    «Tinha medo que eu fosse para Lisboa sozinho, havia o barco, demorava mais de uma hora só em transportes. Tinha de sair às três da tarde e só chegava a casa às onze e tal para jantar. Mas da segunda vez o Aurélio consegue convencer o meu pai e começo no Sporting com 11 anos e poucos meses».

    Ia e vinha sozinho do Montijo?
    «Sim. Daquela minha equipa do Cancela, logo no primeiro ano contrataram o Júlio, mas era quatro anos mais velho que eu, por isso, às vezes coincidíamos no barco, outras vezes não».

    Começou a fumar nessa altura.
    «Com 12 anos. Foi no barco, para passar o tempo comecei a fazer bolinhas de fumo, comecei a travar e nunca mais parei, até hoje».

    No clube e em casa não o chateavam?
    «Normalmente antes de entrar em casa escondia o tabaco e metia uma pastilha na boca. Fui apanhado, já com 14 anos, pela minha mãe. Tinha o tabaco nas meias. Ela normalmente cheirava, ia à procura, mas não encontrava nada. Até àquele dia. A bronca foi dura».

    Lembra-se do primeiro jogo oficial que fez pelo Sporting?
    «Entro a meio da época, num torneio em Alverca. Quando cheguei ao balneário, já a equipa estava feita, olharam-me meio de lado, nem me passaram cartão. Os miúdos são cruéis. Conclusão, no primeiro jogo faço sete golos. Bastaram 40 minutos e no autocarro, na volta, já era o maior. Já tinham respeito por mim, o que é importante dentro do balneário. Comecei logo ali a ver o que é um balneário de futebol. Porque uma coisa é jogar nos bairros com os teus amigos, outra coisa... Vi o desprezo e o desrespeito no primeiro impacto e uma hora depois vi que tinha conquistado um balneário».

    Foi a primeira lição.
    «Foi. Ter respeito no balneário é a coisa mais importante, desde que somos miúdos até cá acima».

    ©D.R.

    Cresce como jogador no Sporting e deixa a escola.
    «Tinha uns 13 anos quando deixei a escola. Chumbei por faltas e o meu pai tira-me da escola e põe-me a trabalhar como bate-chapas. Naquela altura já ia à seleção e era impossível acompanhar a escola. Tinha muitos jogos. Fui trabalhar para a oficina de um primo. Tinha jeito para aquilo. Trabalhava até às duas e meia e depois apanhava o barco para ir para o Sporting».

    Até que assina o primeiro contrato profissional. Com que idade?
    «Não sei se já tinha tinha 15 anos. Se não tinha, andava lá muito perto».

    O primeiro ordenado era de quanto?
    «O meu pai dava-me um conto por mês (5€), mas eu acho que recebia quatro ou cinco contos (20/25€) por mês».

    É nessa altura que começa a ficar mais no centro de estágio?
    «Sim, porque uns meses depois começo a treinar com a primeira equipa de manhã e com a minha equipa, de juniores ou de juvenis, à tarde».

    Gostava de ficar no centro de estágio?
    «Não muito. Tinha saudades de casa, do Montijo, da família, dos amigos, do comer da mãe. Era tudo diferente. Mas eram etapas que era preciso passar».

    Não aproveitava para ir para a 'coboiada'?
    «Não, porque havia hora marcada. Claro que havia lá um sítio em que dava para sair sem ser visto, mas era muito arriscado. Havia seguranças. E tinhas que subir lá para cima e podias cair. Fui só uma ou duas vezes, mas não gostava muito porque era perigoso, podia cair e aleijar-me. Dava-me medo».

    Nessas saídas ia para onde, fazia o quê?
    «Fui ao cinema, ao Caleidoscópio. Incrível, não é? Nem abusei. Também não podia entrar nas discotecas, era menor».

    Acaba por fazer só uma época como sénior no Sporting.
    «Só uma e com idade de júnior».

    E vai para o FC Porto, em 1984.
    «É o destino. Tinha feito um ano no Sporting. Sempre fui um miúdo alegre e com bom humor e a primeira vez que estive deprimido foi com 18 anos, quando o Toshack veio ter comigo e disse-me que não tinha espaço para mim na primeira equipa. No dia seguinte, veio no jornal: 'Paulo Futre vai ser emprestado à Académica'. Foram dois dias duros para mim. Mas no terceiro dia aparece o FC Porto».

    Foram ter consigo ou com o seu pai?
    «Veio uma pessoa ter comigo ao estádio, depois do treino. Eu costumava apanhar boleia com o Manuel Fernandes, que era o capitão da equipa e vivia em Sarilhos, ao lado do Montijo. Essa pessoa leva-me até junto do carro dela com a conversa de que ia mostrar-me catálogos de casas na Costa da Caparica e depois diz-me: 'Chamo-me Domingo Pereira e venho a mando do presidente Pinto da Costa'. Eu assustei-me, espantei-me e menti ao Manuel, disse-lhe ia ver umas casas à Costa da Caparica. E fui para a Av. da República, para a sede do FC Porto. E é aí que falo pela primeira vez, ao telefone, com o Pinto da Costa e ele tem a célebre frase: 'Paulinho, aí não te querem, mas aqui vais ser tu e mais 10'».

    Ficou logo a saber qual era a proposta?
    «Sim, vou dali com a proposta feita. Era 27 mil contos [€135 mil] em três anos, nove mil por ano, casa e carro».

    Era um contraste enorme com o Sporting.
    «Ia começar a ganhar 70 contos/mês (350€) no Sporting. Vou para casa e explico isto ao meu pai, meio assustado, a minha mãe fica a chorar: 'O Porto não, o Porto não', a minha avó também, não queriam que eu saísse de casa. No dia seguinte ainda vou ao Sporting, falo com o Armando Biscoito, digo qual é a oferta do FC Porto e que se o Sporting me der seis mil contos por ano [€30 mil], fico. Ele disse que ia falar com o presidente. Entrou num escritório, saiu passado um minuto e disse-me: 'O presidente disse que estás louco'. Hoje ainda tenho dúvidas se ele chegou a falar mesmo com o presidente ou ele pensava que eu estava a fazer bluff».

    Vai sozinho para o Porto?
    «Vou. Mas aquilo foi uma grande confusão, porque durante o primeiro mês e meio tive de viver na casa do Álvaro Braga, o chefe do departamento de futebol na altura, com guarda costas e tudo. Tinha sete anos de contrato com o Sporting. Eu tinha de fazer um jogo oficial com o FC Porto para irem para a luta a nível judicial. Tinha 18 anos, não estava preparado para aquilo».

    Nessa altura já tinha namorada?
    «Tinha, no Montijo. Depois durou pouco. A distância... e depois o jogador do FC Porto é rei. É perigoso para um jogador solteiro, porque és adorado, querido... para teres uma amiga especial não precisas de sair de casa. Por isso, a Isabel, a mãe dos meus filhos, foi muito importante».

    Quando conhece a Isabel?
    «Um ano depois de estar no Porto. Foi super importante para mim. Foi a chave para a minha estabilidade, tranquilidade e concentração só no futebol».

    Esteve com ela quanto tempo?
    «Até 1999. Foram muitos anos, 14 anos».

    ©Getty /

    O que o marcou mais no FC Porto?
    «O balneário. Era tremendo. Ali estava a mística, o Porto, matar pelo Porto, morrer pelo Porto, suar sangue pelo Porto. Tudo Porto. E tu vens de Lisboa e tens de mudar o chip rápido, se não não entras e não tens hipótese nenhuma. 95% dos jogadores ou mais eram jogadores do Norte. Eu vinha de Lisboa, o Inácio era de Lisboa. Tens de ser super transparente e estás ali para matar pelo Porto também. Até eles verem isso, tarda umas boas semanas, para não dizer meses».

    É por isso que vai para a praia à noite com o 'bruxo' Delane Vieira? É também para provar que estava com eles?
    «Não podemos esquecer que é o Artur Jorge que traz o Delane. Ele tinha trabalhado com o Delane como jogador, quando era do Benfica. O Delane veio trabalhar para Portugal com o Otto Glória. E depois é o Artur Jorge, já como treinador, que o vai buscar. Ao princípio não levas aquilo a sério. Ele detestava ser chamado de bruxo. Ele, para ele, era um parapsicólogo. E era um grande parapsicólogo. A nível de psicologia era um génio».

    Porquê?
    «Ele levantava rapidamente a moral dos jogadores. Dou um exemplo de como ele ganha o balneário pouco a pouco. Se virem os punhos de todos os jogadores na final de Viena, toda a gente tem as pulseiras que ele nos dava. Antes do jogo ele ia direito a mim e dizia: 'Paulo, hoje vai ser o teu dia, vais marcar e vamos ganhar 1-0'. Se diz isso aos 11 titulares e aos seis suplentes... Claro que o FC Porto fazia sempre golos, umas vezes eu, outras o Gomes... Ele falava sempre individualmente. Se ele diz isso continuamente, claro que uma vez vai acertar. Imagina que hoje diz-me que vou marcar, mas falho. Ele passa por mim e diz: 'Quase marcaste, estiveste perto, é para a semana'. E para a semana ia ter comigo outra vez: 'Hoje vai ser o teu dia'. Vai haver um dia que marco. E começa-se a acreditar nele».

    Qual foi a coisa mais esquisita que ele fez ou que vos pediu para fazer?
    «Fui uma vez à praia à noite com ele».

    Fazer o quê?
    «Ele levou animais, galos ou galinhas. Ele matava a galinha e dizia coisas estranhas. Eu não vou dizer mal dele nunca. O que fica dele para mim é sem dúvida alguma a sua capacidade a nível psicológico. Era super importante e era mais um do grupo. Numa derrota, num jogo, com as suas palavras levantava rapidamente a moral que era o mais importante para um jogador de futebol. O factor psicológico é super importante num desportista de elite».

    Ficou com alguma história para contar do Pinto da Costa?
    «Ele para mim é o meu segundo pai desportivo. O Aurélio Pereira foi o homem que me descobriu e o Pinto da Costa acredita em mim num momento... Se eu vou para a Académica não sei onde estaria hoje».

    Que género de pessoa ele é?
    «O Pinto da Costa falava com os olhos. Ele ia para o banco e não era preciso falar para ver quando estava contente ou não. Era um ganhador nato. Recordo-me que a primeira vez que ouvi 'podemos ser campeões da Europa' foi da boca dele. Foi nos quartos de final, na Dinamarca, em 1987. 'Se passamos amanhã, vamos ser campeões da Europa'. Sonhei acordado antes de dormir, com esta frase. 'Campeões da Europa'. O FC Porto não tinha ido nunca a uma meia final, quanto mais ganhar. Eram palavras maiores».

    Pinto da Costa é homem para chamar jogadores ao gabinete?
    «Às vezes, quando eu saía, virava-se para mim e dizia: 'Paulinho, Paulinho... não podes sair, não abuses'. Só dois ou três toques destes eram suficientes. Para mim nunca foi preciso gritar».

    ©Atletico Madrid

    Vive uma situação caricata com ele quando aparece o Gil y Gil, presidente do Atlético de Madrid.
    «Depois de sermos campeões da Europa, já tínhamos feito várias reuniões com alguns clubes. Na véspera de aparecer o Gil y Gil tínhamos chegado a acordo com o Inter de Milão. Estávamos em Itália, fomos jantar a casa do presidente do Inter, o Pelegrini, chegámos a acordo. E no dia seguinte, depois de almoço, quando ia dormir a sesta, quando carrego no botão do elevador, tocam-me no ombro e dizem-me: 'Paulinho, chegou aqui um homem que é candidato à presidência do Atlético de Madrid, veio num avião privado e cheio de dinheiro para nós'. E é quando o Pinto da Costa diz: 'Vamos pedir o dobro'. Já tínhamos o pássaro do Inter na mão, com quem ia assinar no fim de semana assim que acabássemos o Mundialito».

    Essa saída do FC Porto tinha sido previamente combinada entre si e o Pinto da Costa? Havia vontade de ambos em que saísse?
    «Ele faz-me um grande contrato antes da final para subir a cláusula de rescisão. Eu assinei, porque era bom para mim, juntamos o útil ao agradável. Se partir a perna agora pelo menos tenho um grande contrato, mas se não partir e se fizer um bom jogo na final o FC Porto vai vender bem».

    Mas queria sair ou preferia ter ficado no Porto, na altura?
    «Temos sempre um sonho de voar. Se vais ganhar ainda mais dinheiro...»

    Encontram-se com o Gil y Gil...
    «E foi um filme. O Gil nunca discutiu um euro. Não demorou nem cinco minutos. Quatro ou cinco horas depois de tocar no botão do elevador estava numa discoteca com 5000 pessoas em Madrid. A vida mudou radicalmente. A reunião foi do género:

    -'Quanto para o FCP?'
    - 'X'.
    - 'Ok'.
    - 'Quanto para ti?'
    - X e carro.
    - 'Ok'.
    - 'Casa com piscina'.
    - 'Ok, com piscina, não há problema'.

    Ele não discutiu nada».

    Mas o Futre exige-lhe o Porsche logo no dia seguinte.
    «Pois, eu não queria esperar. No avião de Milão para Madrid, eu ia de costas para o piloto, à minha frente ia o Pinto da Costa e ao lado dele o Gil y Gil, que acabou por adormecer. Nessa altura digo ao Pinto da Costa: 'E se este gajo perde as eleições?'. E ele: 'Ele vai ganhar, vai ganhar'. Mas eu disse-lhe: 'Presidente eu amanhã quero o Porsche'».

    E no dia seguinte levam-o a um stand.
    «O incrível de tudo é que só havia um Porsche no stand para entrega».

    Que era amarelo.
    «Exato. Mais incrível ainda, que não sabia na altura, só soube depois, é que a cor do azar dos espanhóis, é o amarelo. Nunca tinha visto um carro amarelo. Quando vi o carro comecei a recuar e a barafustar com a cor, e às tantas ouço o Pinto da Costa: "Ó Paulinho, o carro é muito bonito, não é?". [gargalhada]. E pronto, fiquei com o carro».

    A sua mulher foi consigo para Madrid?
    «Sim, claro. Foi super importante. Ao princípio, nos primeiros dois meses, os meus pais estiveram connosco e os pais dela iam lá ter muitas vezes. Depois os meus pais voltaram».

    Acabou por ficar cinco épocas e meia no Atlético de Madrid. A esta distância, foram os melhores anos da sua vida?
    «A nível futebolístico, foram os três do FC Porto e os quase seis no Atlético. Mas tenho de incluir o Sporting, porque fui internacional A quando estava no Sporting».

    Pois é, vai ao famoso Mundial-1986.
    «Claro. 1986, a página negra do futebol português e um ano depois... o paraíso: campeão da Europa. O futebol é incrível!»

    O que realmente aconteceu em Saltillo?
    «Sei lá. Foi a página mais negra do futebol português. A inexperiência da Federação Portuguesa de Futebol (FPF) e nossa, dos jogadores, todos fomos culpados. A ganância da FPF, porque queriam tudo para eles, era a primeira vez que havia publicidade e queriam o bolo todo para eles, não queriam dar-nos uma fatia. E começou a guerra. Uma guerra horrível».

    O balneário estava unido?
    «Na altura a rivalidade entre FC Porto e Benfica era tremenda. Hoje os jogadores da seleção estão todos lá fora, naquela altura não. Na parte de trás do autocarro iam os jogadores do FC Porto, à frente os do Benfica, e no meio ia um do Boavista, um do Setúbal, do Sporting, mas o peso da seleção era FC Porto e Benfica. Eu era de Lisboa e dava-me bem com os jogadores do Benfica, mas aquilo não era fácil para mim, porque eles não se falava. Até ao Mundial, a mesa comprida de almoços e jantares era dividida. Jogadores do FC Porto de um lado e do Benfica do outro, não havia relação. E é no México que começamos a falar todos. Portanto, se há alguma coisa positiva no México é que o ambiente ficou limpo entre jogadores. A partir dali houve uma reunião tremenda. Esquecemos o clubismo».

    Qual é o jogador que lidera a revolta?
    «Quando se sabe que a FPF ia ganhar tanto de publicidade e não queria dar-nos nada, começamos todos a negociar, queremos isto, mais aquilo. O Manuel era um dos líderes, era um dos capitães, o Carlos Manuel, Diamantino, Gomes, Jaime Pacheco também».

    Estava do lado dos mais revoltados?
    «Sem dúvida. Tinha 20 anos. Estava ao lado dos mais radicais. Não jogamos, não jogamos, por mim tudo bem. Não entendia como é que queriam o bolo todo para eles».

    ©Getty / David Cannon

    Esticaram a corda. Nem treinavam com o equipamento da seleção.
    «Sim, usávamos a nossa roupa, uns chegaram a treinar de cuecas, até tenho vergonha hoje de falar nisto. Nem sequer íamos de fato de treino, porque tinha publicidade. Com o calor que fazia no México, vamos de fato para os jogos em vez de ir com o fato de treino. Quando ganhamos o primeiro jogo, não ganhamos à Inglaterra, ganhamos à FPF. Acho que perdemos a noção de que estávamos no Mundial. Queriamos ganhar para ganhar à Federação. Depois veio o comunicado do Presidente da República, o Dr. Mário Soares, que dizia, cuidado que está o nome de Portugal em jogo, muito suave, mas com uma pequena ameaça. Aquilo era para todos, incluindo a Federação».

    Foi a partir daí que os ânimos se acalmaram?
    «Acho que nunca acalmou. Recordo-me que o Silva Resende nem ficava onde estávamos, ficava noutro hotel. Ele só volta connosco, quando fomos eliminados. Aí é que foi o caos total. É quando muitos são erradicados. É quando chegamos a Saltillo, a FIFA não tem lá os carros para os diretores e para o presidente e eles têm de vir connosco no autocarro. E aí é que foi o caos».

    Conte lá.
    «Insultos a sério, houve muitos insultos. Acho que devíamos ter sido todos erradicados porque todos insultámos. Por isso é que estivemos solidários com aqueles que foram erradicados. Foi mesmo dura aquela viagem do aeroporto até ao hotel. Foi um filme de terror. Mas nada de violência, que fique bem claro, foi só de boca».

    E as histórias de que nos estágios da seleção há sempre ou quase sempre noitadas com meninas nos quartos? É verdade?
    «[Risos]. Isso é outro capítulo. Numa equipa há gente solteira, casada, divorciada e não se pode meter tudo dentro do mesmo saco. Durante o estágio dificilmente ou quase nunca. Agora, depois do jogo, uma brincadeira, sim. Mas conheci gente que nunca, outros que só de vez em quando, alguns muitas vezes. Não se pode meter tudo no mesmo saco».

    Dos tempos do Atlético de Madrid tem mil e umas histórias. Há alguma que ainda não tenha contado?
    «Não podemos esquecer que estive com o presidente mais polémico do mundo. E a minha relação com ele, de 17 anos, foi de pai e filho. Nunca mais vai haver uma história entre um presidente e um jogador como a nossa. Como jogador, como capitão, depois como embaixador e como diretor desportivo. Não sei se contei já isto, acho que sim. Quando ele faleceu eu estava em guerra com ele porque tinha saído há uns meses do Atlético. Um dia antes de ele falecer, ligou-me o médico do Atlético e disse-me: 'Paulo isto está mesmo mal e ele pode apagar-se'. Eu estava em Lisboa, já era uma da manhã, mais uma hora em Espanha, meti-me no carro e fui para Madrid. Quando cheguei por volta das sete, vou para casa dormir umas horas, porque não havia novidades, acordo e vou para o hospital. Quando saio do elevador, no andar onde ele está, vejo a família do Gil y Gil junto do médico que estava a acabar de dizer-lhes que ele se tinha apagado, naquele preciso momento. E é quando um ou dois jornalistas escrevem: 'Esteve à espera do Futre para ir deste mundo'. Acho que isto define bem a minha relação com ele».

    Como é que vem parar ao Benfica?
    «Naquela altura, o Atlético de Madrid e a maioria dos seus clubes viviam do dinheiro dos seus presidentes. Eram todos ricos. Gil y Gil era um deles. Mas teve uma pequena crise, não vendeu casas e já estava há sete/oito meses sem pagar ordenados e o clube com muitas dificuldades financeiras. A única saída para o clube sobreviver era a minha venda. Era a primeira vez que o mercado abria, no inverno, e os jogadores estrangeiros que estavam em Espanha só podiam ser vendidos aos seus países de origem. Quando ele disse que me vendia arranjámos uma luta entre nós. E apareceu o Sporting e o Benfica. O FC Porto não apareceu. O primeiro a aparecer é o Sporting, com quem chego a acordo e digo ao Benfica que não. Tínhamos combinado ir a Marbella ter com o Gil y Gil para levar o cheque, mas o presidente Sousa Cintra não apareceu. Sempre disse a brincar que ainda hoje estou à espera dele. Era muito dinheiro e deve ter havido algum problema para juntar o dinheiro e ele não apareceu. Na altura o presidente do Benfica era o grande senhor e cavalheiro Jorge de Brito, das pessoas mais maravilhosas que conheci no futebol».

    Era um sonho jogar no Benfica?
    «Quando somos miúdos temos normalmente dois sonhos. O primeiro é jogar na nossa equipa, no meu caso era o Sporting, o segundo é ser internacional. Se der, o terceiro é jogar lá fora, ir ganhar dinheiro lá fora. Naquele tempo não existia na cabeça de nenhum miúdo a ideia de que vai jogar pelos três grandes do seu país. Era impossível. Quando assinei pelo Benfica fechei o ciclo. Olho para o meu pai e... quer dizer, é demais. Inchado de orgulho, fez um filho que consegue jogar nos três grandes. Era o terceiro, depois do Alhinho e do Eurico, a jogar pelos três grandes. Ora, se é um sonho? É um sonho, mas que nunca tinha tido, porque era impossível. É um milagre quase».

    Foram só cinco meses...
    «Em que nunca perdi com a camisola do Benfica. E faço o jogo mais completo da minha vida, aquela final com o Boavista, em que ganhamos a Taça. É aquele jogo com o qual sonhas na véspera. E naquela final saiu tudo. Fiz dois golos, uma assistência e um penálti. Foi uma loucura. É o meu jogo mais completo, tendo também em conta a importância do jogo, porque era a final da Taça de Portugal».

    Não foi complicado voltar a Lisboa?
    «Como disse que ia para o Sporting e afinal fui para o Benfica, a princípio não foi fácil, porque é a mesma cidade de clubes rivais. Via muitas paredes pintadas, que não me eram simpáticas. Mas também já tinha muita experiência porque tinha sido capitão do Atlético durante cinco anos, estava preparado para encaixar tudo».

    Antes da ida para Itália, para o Reggiana, ainda joga no Marselha.
    «Sim, saí do Benfica para o Marselha, que era o campeão da Europa, mas fiquei pouco tempo porque rebentou o escândalo da corrupção, com o Tapi. Foi uma pena. Uma equipa que é campeã da Europa foi comprar um joguinho da tanga no campeonato. Como é que é possível? Ganhava o campeonato à vontade. Não se entende. Um mês e meio depois já estava a ser avisado para sair porque o clube podia baixar de divisão a qualquer momento».

    É quando sai para o Reggiana.
    «Sim, mas com o Inter de Milão por trás. Porque na altura só podiam jogar três estrangeiros, no ano a seguir eram 3+1 (no banco)».

    Lesiona-se entretanto.
    «Logo no primeiro jogo. Se estou num clube tranquilo era operado, limpavam-me o tendão, estava com uma tendinite, e dois ou três meses depois estava a jogar. Mas a confusão que havia em Marselha, obrigou-me a jogar infiltrado. Não tinha hipótese. Eu estava naquela, isto vai para a segunda divisão, se sou operado não jogo mais. Era um caldinho. Então pensei, deixa-me ver se aguento até novembro. E jogava infiltrado com cortisona. Rebentou. Se virmos as imagens, há uma entrada por trás, mas nada do outro mundo. Só que o tendão rotuliano já estava no limite e rebentou».

    Esteve quanto tempo parado?
    «Eh pá, depois foi um caldinho. Porque a ruptura parcial do rotuliano só tinha acontecido a um esquiador, nunca a um futebolista. Então o médico diz-me, estás a jogar daqui a dois meses. E começo o calvário. Estou um ano parado. Jogo mais uns joguinhos e sou operado outra vez. Depois recomeço a jogar e o Milão vê que estou mais ou menos e diz-me para eu ir fazer uma experiência com eles à Ásia. Aos 29 anos, fazer uma experiência, não é fácil ouvir isto. O presidente do Reggiana nem me disse nada, meteu o fax em cima da mesa. E nos seis jogos em que jogámos acho que fui sempre o melhor jogador em campo. Sou contratado pelo Berlusconi em Itália, a ver os jogos pela televisão. Sabia que eles iam contratar-me porque no último jogo que fiz na Ásia veio o diretor ter comigo dizer que o presidente queria que assinasse contrato. E eu, ok, maravilha».

    Mas volta a sentir dores.
    «Sim, logo na pré-temporada. E sou operado três meses depois, em outubro».

    Só faz um jogo pelo Milão.
    «E não era para fazer nenhum. Em agosto começo a ir a especialistas, já tinha duas operações e ninguém queria operar-me. Eles diziam 'o último a operar é quem vai pagar se não jogas. Vais arruinar a vida de qualquer cirurgião, porque o Milão é um gigante e o médico que opere e não jogues mais…'. Corri toda a Europa, fui aos EUA e nada. Até que vou a França ao mesmo médico que opera o Ronaldo, 'o fenómeno', mais tarde, o Dr. Saillant. A primeira coisa que ele me disse foi: 'Opero-te amanhã e vais jogar'. Ele opera-me e não mete gesso, mete uma fibra, e consegui voltar a jogar.

    Um jogo.
    «Mas joguei, sou campeão. Na primeira operação estava presente toda a imprensa mundial no hospital, um ano depois, na segunda, estavam três jornalistas da zona de Reggina e na terceira tive que ligar para o Record e para a Bola, a dizer: 'Ouve lá, vou ser operado' [risos]. Assim é a vida e o futebol. Aquilo era uma luta que eu tinha com a minha cabeça e o meu joelho. Mas do que mais me orgulho dessa altura, no Milão, é que tinham dois psicólogos que chegavam lá de manhã, olhavam para os teus olhos antes do treino e se vissem alguma coisa estranha, diziam: 'Depois do treino passa pelo meu gabinete'. Estive ali um ano e eles todos os dias olhavam para mim, e eu todo lixado, davam-me dois toques nas costas e diziam: 'Tu és um leão'. Nunca fui ao gabinete deles. Acho que eles olhavam para mim e pensam: 'Este gajo vai conseguir jogar'».

    Foi nessa altura que esteve a viver no centro de estágio?
    «Estive ao princípio, para não correr riscos de ter algum acidente, de carro ou assim, e também para baixar o peso. Era a terceira operação não podia correr o mínimo risco. Estive lá quatro ou cinco semanas. Fazia vários tratamentos por dia».

    Lembra-se desse último jogo?
    «Claro, fui campeão. Mas mais do que ser campeão foi o dizer 'consegui', 'estou aqui'. Estou no San Siro a festejar o título. Foi uma grande satisfação, porque só a minha cabeça acreditava que podia voltar a jogar».

    ©Getty / Getty Images

    Segue-se o West Ham.
    «Depois tive várias propostas, até do Milão. Mas no Milão queriam que ficasse lá por objetivos, davam-me um salário e queriam que fizesse jogos, não gostei muito da abordagem, apesar de me terem tratado sempre muito bem. Talvez a minha cabeça já não estivesse para ali, aquilo era muito grande já, estou com 30 anos. Estou com os melhores jogadores do mundo, já não posso lutar com eles, porque eu continuava com uma atrofia total na perna. Aliás, nunca mais fui o mesmo jogador. E no meio das ofertas todas, porque não Inglaterra? E fui. Sabia que estava muito perto do fim».

    Gostou da experiência em Inglaterra?
    «Adorei, adorei. Só que o joelho outra vez... Estava muito bem ao inicio, mas quando vem o frio, sinto um estalo no joelho. Não ia ser mais operado. Tive as mesmas sensações, estive em tratamento, mas já não dava».

    Mesmo assim ainda bateu o pé por causa do número da camisola.
    «Sim. Quando fui para o West Ham a última cláusula do contrato era jogar com a camisola 10. Como pensava que podia ser a minha última experiência, queria terminar com o 10. Durante a pré-época joguei sempre com o 10. No primeiro jogo oficial com o Arsenal, faço o aquecimento e quando chego ao meu sítio no balneário para vestir a camisola, vejo que não é o 10 mas o 16. Rebentou a bronca».

    Não jogou.
    «Não. O presidente que estava no camarote e teve que vir cá baixo, porque encostei-me à porta e disse: 'Daqui ninguém sai'. Foi lá o roupeiro chamá-lo e quando ele chega ao balneário, perguntei-lhe como era. Ele, 'I'm sorry, i'm sorry'. Eu não falava inglês ainda, tinha lá o meu intérprete que era o guarda-redes australiano, que falava italiano. Ele dizia que não era possível, que não era possível jogar com o 10. Meti-lhe a camisola na cabeça e disse: 'Então joga tu' e fui-me embora. O mais giro é que o meu filho mais velho há seis ou sete anos chegou-se ao pé de mim e disse: 'Ó pai, tenho um grande orgulho em ti'. 'Porquê?'. 'Acabo de ver na internet o Redknapp a dar uma conferência numa universidade inglesa e há um aluno que lhe pergunta qual foi o caso mais surreal que viveu enquanto treinador'. E o Redknapp à sua maneira conta esta história que acabei de contar, do que fiz».

    Colocou mesmo a camisola na cabeça do presidente?
    «Sim. Com os nervos comecei a abrir a gola da camisola enquanto falávamos e à terceira ou quarta vez que ele diz que é impossível eu jogar com o 10, enfio-lhe a camisola rápido pela cabeça: 'Então joga tu'».

    Mas acabaram por lhe dar a camisola 10.
    «Tivemos sorte porque quem ficava com o 10, que era um jogador mais antigo, não jogou aquele jogo com o Arsenal. Por isso ainda conseguiram dar-me o 10. Se ele tivesse jogado com o 10 naquele dia contra o Arsenal, havia caldinho. Não sei onde estava hoje, nem eu nem o West Ham [risos]».

    Acaba por voltar ao Atlético.
    «Retirei-me em dezembro de 1997 quando sinto as dores outra vez. Chegava. Já estava mentalizado, retirei-me e começo a trabalhar como embaixador do Atlético de Madrid».

    Até que há um treino histórico.
    «Em abril. Eu ia ver os treinos da equipa principal. À quinta-feira nunca falhava. E uma quinta-feira, depois de almoço, vou para o estádio e sento-me no banco dos suplentes. Normalmente à quinta-feira havia sempre muito adeptos porque era à porta aberta. O treino está praticamente a começar e o treinador, o Antic, vem ter comigo. Estou sozinho no banco e diz-me: 'Paulo, disse para estarem aqui os miúdos da segunda equipa, agora dizem-me que se enganaram e só chegam daqui a uma hora. Não vou estar aqui uma hora à espera. Falta-me um jogador na equipa de reservas, faz-me o favor, mete o fato de treino e entras tu'. Disse-lhe: 'Ó mister, acabei de almoçar agora, como é que vou treinar? Não me faça isso.'. Ele lá me convenceu e eu fui com alguma azia vestir o fato de treino. Tinha almoçado há pouco tempo, estava como agora, a fumar».

    Não tinha voltado a treinar?
    «Desde dezembro que não dava uma corrida. Mas lá fui. Os reservas querem sempre ganhar à equipa titular. A primeira coisa que lhes disse foi: 'Vocês vejam lá, sei que querem ganhar, mas eu não vou correr, não me passem a bola e muito menos me dêem broncas?. Mas aquela pica... veio a bola para mim, entusiasmei-me, faço dois golos em 20 minutos, à primeira equipa. Os títulos no dia seguinte nos jornais eram: 'O espectáculo volta ao Calderón'. Logo assim. Saí de lá morto, nem conseguia respirar, e os adeptos a gritar pelo meu nome. Quando chego ao balneário diz o treinador: 'Eh pá, tu tens que voltar'. Logo naquele momento vem o delegado com o telefone, era Gil y Gil: 'Paulo, coño, tienes que volver'».

    E voltou.
    «Sim. Comecei a fazer tratamentos de produtos naturais nos joelhos, infiltrações diárias de produtos nacionais. E quem decidia era eu. Tinha dois meses para decidir. Comecei a treinar, a aumentar a carga, o joelho não me doía e decidi ir para a frente. Aí está o destino».

    ©Atlético Madrid

    Há um vídeo que mostra esse seu regresso, na apresentação da equipa.
    «É arrepiante, não é? Não deixam falar o Gil y Gil. Falava o capitão, o treinador e o presidente. Quando o Gil começa a falar, o estádio estava cheio, e não o deixam falar. Fez 20 anos agora».

    Ainda vai jogar para o Japão.
    «Sou jogador e a minha cabeça começa a pensar: 'Eu posso jogar'. Tinha uma proposta de um empresário para ir para o Japão e tinha outra para ir para o México. E eu pensei, o Japão é outro mundo, outro idioma, é uma aventura à parte. O México é um idioma que eu conheço, um futebol que eu conheço, mas também é uma pressão tremenda a nível dos media. No Japão não tenho pressão, o dinheiro era praticamente o mesmo. Decidi com moeda ao ar».

    A sério?
    «Juro pelos meus filhos. No Algarve. Moeda ao ar, saiu Japão, liguei para o gajo do Japão».

    O que o impressionou mais no Japão?
    «A segurança, a higiene, o respeito. Estas três coisas estão acima do limite. A nível de futebol, eu era o Maradona para eles. A pressão era zero. Uma vez estávamos a perder 5-0 em casa e no quinto golo estavam a aplaudir a equipa contrária [risos]. Gostava de estar lá».

    Veio embora por causa do joelho?
    «Sim. Como já não tinha as infiltrações de produtos naturais, há um momento que o joelho começa a ceder outra vez».

    Não podia ter levado essas infiltrações?
    «Aquilo era todo um outro mundo. E talvez por excesso de confiança minha, já estava bem na altura em que vou e confio que não preciso de mais nada. Mas começou a doer ao fim de oito ou nove meses e já me custava treinar».

    Qual era o valor desse último ordenado?
    «Devia estar aí com 70/80 mil dólares [60/70 mil euros] por mês. Onde ganhei mais dinheiro foi no Atlético».

    Veio embora para Espanha e torna-se diretor desportivo durante dois anos e meio.
    «Entro a ser último da segunda divisão e dois anos depois deixo o clube na UEFA».

    Gostou desse papel?
    «Gostei muito, mas foi um desgaste tremendo. O clube estava na II Divisão e quando entro, em novembro, se o campeonato acabasse naquela altura a equipa descia para a II Divisão B. O segundo ano, que era da minha total responsabilidade, se não subo, não podia ir mais a Espanha».

    Como é que foi estar desse outro lado?
    «Muita pressão. Mais do que o normal. Se a equipa não sobe naquele ano era o caos total. A pressão era enorme, mas foi uma grande experiência porque é tudo da tua responsabilidade, fazes tu a equipa, estás tu a contratar. O Gil y Gil respeitou-me bastante, deixou-me fazer o que eu queria. No segundo ano com o Luis Aragonés, o grande sábio. Fizemos um trabalho extraordinário, ele dentro do campo e eu fora».

    Acaba por vir embora porquê?
    «Foi uma guerra com o Gil y Gil. Ele tinha um pacto comigo, não falava e deixava-me fazer tudo. Na altura havia uma interdição judicial. Para ter um euro eu tinha de convencer os quatro homens do Estado que estavam dentro do clube. Naquela altura era o governo que controlava as contas do clube. Não era fácil. Quando chegámos à I Divisão, tudo mudou. O presidente deixa-me fazer a equipa toda e quando estava uns dias de férias, em Maiorca, ele liga-me a dizer: 'Falaram-me neste jogador'. E eu disse-lhe: 'Presidente, a equipa está feita, não há mais jogadores'. E ele traz jogadores sem eu querer e aí começa a grande bronca. Tivemos discussões loucas. Há uma discussão na rádio entre os dois, que é de filho da mãe para cima, que chega a sair num filme, 'Dias de futebol', que teve muito sucesso em Espanha. Mas conseguimos separar o lado pessoal, porque chegava aos aniversários e Natal e demos os parabéns um ao outro. Quando ele teve os problemas de coração fui ao hospital vê-lo, isto apesar de estarmos de costas voltadas, num período de ódio».

    ©Global Imagens / Gonçalo Villaverde

    O que fez depois de deixar de ser diretor desportivo?
    «Começo nos meios de comunicação social. Começo a escrever para a 'Marca'. Estou no futebol mas sempre um bocado na sombra, como estou hoje ainda. Isto é, entre empresário e clubes, a desbloquear problemas».

    Nunca foi empresário?
    «Nunca fui porque não tenho paciência. Estarem a ligar porque a luz pifou ou o carro avariou, não, não estou para isso. Sei qual é a vida dos empresários. E só pensava, se apanho um gajo como eu, esse gajo mata-me [risos]».

    Em que investiu o dinheiro que foi ganhando ao longo dos anos?
    «Em terrenos. Mais em Portugal».

    Como acontece a ligação ao Dias Ferreira e a candidatura à direção do Sporting?
    «Estava a trabalhar com Al Jazeera já há uns anos quando me liga um grande amigo meu, o Artur Fernandes, que é o presidente dos agentes FIFA em Portugal, a propor-me isso. Ele liga-me a dizer que tinha estado com o dr., mas que ainda não tinha avançado. E o dr. para mim é o grande homem. E decidi ir para a frente».

    Como surge a história do chinês?
    «Eu já tinha falado com o dr. sobre este tema. Porque acho que quem fizer na Península Ibérica, o que fez o Perugia, quando trouxe o Nakata, que foi um negócio incrível durante 10 anos... Era um negócio que só podia durar dois ou três anos e depois tinha que ser vendido. Ele traz o Nakata e traz todo o negócio, os tais charters, departamentos, tudo isso para o Perugia. Mas depois vende tudo isto à Roma por €25 milhões. O Nakata podia valer €5/6 milhões na altura mas não €25 milhões, o negócio em si é que vale €25 milhões. Depois esteve mais dois anos na Roma e foi vendido ao Parma, por €25 milhões. Dois anos depois foi vendido à Fiorentina por mais de €20 milhões e ainda foi para Inglaterra. O negócio todo andou a saltar de um lado para o outro de dois em dois anos. Então eu pensava que há que trazer o melhor. Porque o asiático, sobretudo no Japão (não sei se na China é assim, mas imagino que sim), o adepto segue o seu ídolo. É como eu com o futebol americano. Não se segue uma equipa mas um ídolo, uma figura».

    Fazendo um parêntesis, como é que se torna fã de futebol americano?
    «Na minha primeira viagem com o Sporting aos EUA. Em 1983. Era fã do Joe Montana naquela altura. Quando cheguei a Espanha comecei a comprar tudo o que havia sobre futebol americano no videoclube. Sou um louco pelo futebol americano. Adorava o Montana... E o japonês é assim, segue o seu ídolo. Por isso é que vinham milhares ver o Nakata à Europa. Pensei fazer isso no Sporting.»

    Continua a acreditar que ainda é um negócio rentável, por explorar?
    «Sem dúvida. E vai acontecer. Se vem um jogador a sério, de certeza absoluta que vai ser uma mais valia».

    O que sentiu quando percebeu que as pessoas estavam a gozar consigo, depois da conferência de imprensa que deu?
    «Ou eu a gozar com eles. Quando eu vou no carro, liga-me o meu advogado a dizer que o governo de Sócrates caiu. Já tinha passado a fronteira, a conferência de imprensa era no dia seguinte. E eu pensei, amanhã não vai estar lá ninguém. Quando um governo cai, mais nada interessa. O Sócrates tinha caído, não há espaço para ninguém. Então eu a brincar, e talvez não tão a brincar, disse ao meu filho que ia no banco da frente: 'Paulinho, sabes o que vou dizer amanhã? Vou dizer que vou trazer um chinoca para o Sporting'. O meu filho desata a rir como um perdido. Vi nele a reação de Portugal inteiro. Mas depois tinha o trunfo do Nakata. Para quem está fora, era para rir. Quem entende e sabe um pouco de futebol internacional sabe que a ideia é genial».

    Ainda nenhum clube pegou nisso. Porque é que acha que essa ideia ainda não se concretizou?
    «Vai tudo tão rápido, não vêem a longo prazo. Com todo o respeito para com os clubes portugueses, isto só dá para um dos três grandes. Sei que o Atlético ainda por cima tem um investidor chinês que é um dos donos do clube, tem 20%, estaria interessado. O problema do Atlético é que só podem jogar três estrangeiros, portanto, o chinês tem que ser mesmo um fora de série porque senão não pode jogar um dos estrangeiros que lá estão. Mas estou convencido de que quando houver um chinês de top o Atlético pode fazer este negócio. Não tenho dúvidas de que se fizesse isso cá, seria ótimo. Mas não se faz porque não há tempo. Os três grandes têm que pensar para ontem, têm que ganhar ontem, não há tempo a pensar em negócios a médio prazo».

    Profissionalmente tornou-se comentador.
    «Estou na televisão, estou no 'Record' e estou na 'Marca' e sempre no futebol, na sombra, sempre a desbloquear».

    Desbloquear como?
    «Se és um presidente e não consegues um jogador por qualquer motivo, estão a complicar, ou querem mais dinheiro ou o empresário quer levá-lo para outro lado e eu sou um grande amigo deste empresário, podem chamar-me. Ou o contrário, um empresário vir ter comigo a dizer que tem o jogador tal e não lhe querem dar mais».

    É remunerado por isso?
    «Sim, mas não ganho o que ganham os empresários. Há sempre umas prendinhas, e no futebol as prendas são sempre boas».

    Algum papel no futebol que ainda gostasse de desempenhar?
    «Treinador já fui à minha maneira, mesmo quando jogava... o meu carácter não é para presidente, não me estou a ver como presidente. A não ser lá fora um investidor comprar e meter-me a mim ou a minha imagem, mas não como presidente, não tenho feitio nem caráter nem talvez sabedoria».

    Gostava de voltar a ser diretor desportivo?
    «Depende do presidente e do projeto».

    Continua a viver em Espanha?
    «Faço metade da semana em Madrid a outra metade em Lisboa».

    O que fazem os seus filhos neste momento?
    «O Paulinho é um génio, está com uma arte fantástica. Inventou uma arte de espelho, é um artista. O Fábio está a tirar o segundo nível de treinador e vai por esta linha. Está comigo, já vai conhecendo os empresários».

    Tem pena que nenhum deles o tenha igualado no futebol?
    «Pena não. O Fábio tinha jeito, fez todas as camadas jovens do Atlético e depois teve o problema dos joelhos, foi operado três ou quatro vezes. E teve que deixar. Sempre lhes dei liberdade, nunca lhes meti qualquer pressão. O Paulinho nunca teve jeito para futebol».

    Nunca casou?
    «Não. Estou com a Eva há mais de sete anos e estou feliz. Nunca casei, nem com a mãe dos meus filhos».

    Qual foi o treinador que mais o marcou?
    «O Artur Jorge, sou campeão da Europa com ele. E o Luis Aragonés. E há outro que apesar de não ter jogado com ele, só fiz um jogo, também era fantástico ao nível de motivação, o Capello».

    Qual foi o jogador com quem criou maior amizade?
    «O Fernando Mendes. Conhecemo-nos desde os nossos cinco/seis anos. Somos da mesma terra».

    E um jogador que ficou a admirar bastante?
    «O Maldini. Era tão grande como jogador como a sua humildade».

    Tem algum hobby?
    «Adoro jogar bilhar. E caminhar. E adoro biografias. Tudo o que sejam histórias verdadeiras, vejo os filmes, documentários, adoro. Por exemplo, o arquitecto do Hitler, Albert Speer, tudo o que me perguntarem estou convencido que consigo responder».

    ©Getty / Arquivo T&Q

    Qual a maior mágoa que tem em relação ao futebol?
    «Não ter jogado mais no Sporting, porque o Sporting foi o meu pai e a minha mãe do futebol e só joguei um ano como profissional. Não ter um campeonato em Espanha. Ganhei duas Taças, embora a de 1992 frente ao Real Madrid representa para mim uma Champions. E não ter ganho nada por Portugal. Tenho esta espinha de não fazer nada com a seleção do nosso país».

    E quais foram os momentos maiores que viveu no futebol?
    «Sem dúvida quando fui campeão da Europa com o FC Porto. A Taça em Espanha, receber a Taça das mãos do rei e da rainha de Espanha foi um momento único. E depois a minha homenagem em janeiro de 1997, quando me dão a insígnia de ouro e brilhantes no estádio Vicente Calderón, já depois de retirado, quando comecei como embaixador. Ir ao centro do campo e receber o emblema com aquele público a gritar, até a afición do Real Madrid gritava o meu nome. Esse momento é único porque estava de fato e gravata, não estava equipado. É um momento diferente. Incluia também a Taça de Portugal ganha pelo Benfica ao Boavista, porque é uma final e faço dois golos, um penálti e uma assistência. Também é marcante».

    Qual foi o presente mais estranho que recebeu?
    «Sei lá. Quando estava no auge recebia de tudo. Muitos soutiens, cuequinhas, chuchas. Tirando as fotografias de tudo e de todas as maneiras».

    Foi muito assediado?
    «Os primeiros anos sim. Quando era jogador do FC Porto e do Atlético».

    Alguma vez foi assediado por um homem?
    «Fortemente não. Algumas vezes. Ouvi uns piropos».

    Tem alguma história para contar que ainda não tenha contado?
    «No primeiro ano do FC Porto, quando estava solteiro, recebia muitas cartas com fotografias. Muitas vezes apareciam fotografias maravilhosas, que vinham com o número de telefone. E apanhei muitas deceções».

    Como assim?
    «Eu ligava para os telefones de casa, ainda não havia telemóveis, e marcava local de encontro. Podia ser para um café, mas às vezes a fotografia era tão interessante que marcava logo para casa e depois tinha deceções. Pensava, como é que vou fugir disto agora. 'Eh, pá, desculpa lá, está a doer-me um dente, tenho que ir ao dentista' ou 'ligaram-me do Porto, tenho que ir diretamente para lá'. Às vezes tinha de arranjar uma desculpa no momento, porque a deceção era enorme, a figura não correspondia à fotografia [risos]. Mas nunca perguntei 'porque é que me mandaste isto?'. Sim, porque no fundo era outra pessoa, tinha enviado uma foto que não era dela. Tão pouco ficava chateado. Compreendia, respeitava, percebia que era uma emoção para elas. E sempre dei a cara. Podia marcar num sítio e ver ao longe, mas não, sempre dei a cara. Sempre fui simpático, dava dois beijinhos, arranjava uma desculpa e ia embora. Apanhei algumas deceções dessas. E apanhei alguns sustos, como conto no meu livro, daquela que dizia que estava grávida. Mas comprem o livro».

    Portugal
    Paulo Futre
    NomePaulo Jorge dos Santos Futre
    Nascimento/Idade1966-02-28(58 anos)
    Nacionalidade
    Portugal
    Portugal
    PosiçãoAvançado (Extremo Esquerdo)

    Fotografias(24)

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