A história de Ricardo Sá Pinto dentro dos relvados teve muito coração. E nervos à flor da pele. Também polémica. Mas, mais do que qualquer incidência provocada pelo seu carácter peculiar, na memória de muitos ficou o carisma, a entrega, a paixão e a força que demonstrou sempre ao longo de 17 anos de carreira. Em Alvalade, a simbiose com os adeptos foi tal que virou um eterno Leão. Ou melhor: Coração de Leão.
Nascido a 10 de outubro de 1972 e criado na cidade do Porto, o futebol marcou presença desde cedo na vida de Ricardo Manuel Andrade Silva Sá Pinto, tal como o ténis, desporto que jogou federado até aos 14 anos. Os primeiros anos de carreira, aliás, envolveram as três principais cores nacionais, mas no fim só houve espaço para o verde. E o resto é o que já se sabe.
A primeira fase de formação de Sá Pinto foi feita de dragão ao peito e a segunda completada no SC Salgueiros, uma das melhores escolas do país antes da extinção. No velhinho e saudoso Vidal Pinheiro, onde ainda é recordado com muita saudade pelas gentes salgueiristas, mostrou-se ao mundo. E há quem diga que o carisma, o feitio e o carácter único já se notavam ao longe.«Metade da formação no Porto, a outra metade no Salgueiros, onde cheguei à selecção portuguesa pelos sub-21. Depois Sporting e, dois meses depois, apanhei a geração de ouro. Foi assim o começo. Meteórico, não? (…)», brincou, já maduro, em entrevista ao Observador.
Simples, direto e sem rodeios. Sá Pinto era assim dentro e fora do campo. Meteórica ou não, a ascensão até ao futebol sénior deu-se a uns tenros 20 anos apenas. Um ano antes havia convivido de perto com famosa equipa que fez história na Taça UEFA e que apadrinhou a debut europeia de um tal de Zinedine Zidane.
De 6 para 11. Se o número de golos numa época de estreia não foi mau, o que dizer da seguinte? Mais do que os golos, as jogadas e a qualidade demonstradas dentro das quatro linhas davam sempre que falar e os principais tubarões não baixavam a guarda. Sá Pinto não era um homem-golo, mas desempenhava com a mesma classe e dedicação qualquer posição do meio-campo para a frente, sempre com uma técnica acima da média.
A época seguinte, 1993/94, foi ainda melhor: o Salgueiros ficou bem mais acima na tabela e os registos individuais melhoraram significativamente, tendo feito gosto ao pé contra os dois clubes da 2ª circular e sido chamado para a seleção sub-21.
Nas Quinas, saltou para um lugar alto na hierarquia e coincidiu com a seleção de esperanças. Esperanças, diga-se, pela idade e pelo muito talento em questão. Ao lado de nomes como Figo, Jorge Costa, Abel Xavier, João Vieira Pinto e Rui Costa, liderados por Nelo Vingada, Sá Pinto marcou presença no Mundial Sub-21 ’94, em França, onde a formação lusa brilhou até à final, perdida contra uma Itália não menos forte de Toldo, Panucci, Fabio Cannavaro e Pippo Inzaghi. O golo do triunfo transalpino surgiu no prolongamento por Orlandini numa jogada em que, curiosamente, Sá Pinto teve influência.
«Um jovem irreverente, aventureiro, mas também conservador». Aos 21 anos, em entrevista à revista Foot, o rapaz do cabelo comprido revelava o desejo de jogar no Benfica como «gosto pessoal». O que se seguiu depois foi, então, a vertente profissional, na qual «não desdenharia representar qualquer um dos três grandes».
Atento aos seus passos e aos de Pedrosa, Carlos Queiroz convenceu Sousa Cintra e levou dois meninos para Alvalade. E assim se iniciou capítulo mais bonito.
Quiseram os deuses do futebol que o Farense fosse novamente o adversário de uma nova estreia. A 20 de agosto de 1994, Ricardo Sá Pinto jogou os 90 minutos, marcou e o Sporting ganhou. Mas foi o seu festejo que ficou na retina dos sportinguistas, isto antes das famosas danças tribais com alguns colegas que passaram a fazer parte das celebrações.
Aí nascera um ídolo. A garra, o punho cerrado a bater no peito, a forma como sentia todo os minutos em campo conquistaram o coração de muitos leões. E ele mesmo virou o Coração de Leão, famosa alcunha atribuída pelo universo verde e branco.
Em Alvalade foram três épocas de sonho. Nessa primeira, houve espaço para jogar pela seleção AA, marcar ao Real Madrid, na Taça UEFA, ser vice-campeão e conquistar a Taça de Portugal, colocando os leões na rota dos títulos mesmo sem ser um indiscutível. E mais: sempre que Sá Pinto esteve em campo, a equipa não perdeu um único jogo para o campeonato!
Pegou de estaca e, como seria de esperar, cedo virou figura. Em 1995/96, talvez no momento mais especial e saboroso, bisou contra o FC Porto, em Paris, e ajudou o Sporting a vencer a Supertaça Cândido de Oliveira, acontecimento esse que também marcou a sua explosão e afirmação na equipa.
Na terceira e última, antes da interrupção, fez parte dos eleitos de António Oliveira para o Europeu ’96, com alguns da sua geração, e criou logo impacto com o primeiro golo pelas Quinas: sofreu a poderosa Dinamarca de Laudrup e… Peter Schmeichel, que viria a ser, mais tarde, seu compincha em Lisboa. E que belo cabeceamento foi!«Quando percebo que a bola vai cair ali perto de mim, lembro-me perfeitamente de olhar para a baliza e vejo uma coisa enorme. Perguntei-me ‘como é que vou fazer golo a este tipo?’. Cabeceei com convicção, com força e para o chão. A bola foi bem puxada ao canto, foi», sublinhara, mais tarde.
Mas o sangue quente era intrínseco e os comportamentos irascíveis também fizeram das suas, como naquela manhã de 26 de março de 1997…
Para o bem e para o mal há quem recorde vivamente Ricardo Sá Pinto por um episódio em particular que manchou a sua carreira: a agressão a Artur Jorge, então selecionador nacional, e ao adjunto Rui Águas, num dos momentos mais mediáticos do futebol luso que Alberto Silveira, na altura vice-presidente da Federação para as seleções, descreveu como «um dos acontecimentos mais graves da história do futebol português».
Satisfações essas que, segundo testemunhas, tiveram socos, pontapés e insultos dentro do complexo. Pouco depois, nas imediações do recinto, envolveu-se com Rui Águas e as imagens acabaram por se tornar virais por todo o país.
O jogador, por sua vez, «lamentou o que aconteceu» e garantiu que reagiu «emocionalmente às provocações e agressões» feitas à sua «dignidade e honra».
Artur Jorge apresentou queixa, da qual viria a desistir anos mais tarde, e Sá Pinto, para além de ter sofrido uma multa altíssima do clube presidido por José Roquette (40 mil euros, na altura a multa mais pesada de sempre do futebol português), viu o Conselho de Disciplina da FPF proferir a sentença de um ano de suspensão.
A emotividade - ou cabeça quente – custou-lhe o afastamento dos relvados durante 13 meses e, consequentemente, a saída do clube que passara a amar.
Perante as proporções da polémica, o Sporting viu-se na obrigação de proceder à venda de um dos seus principais ícones. 700 mil contos (algo como 3,5 milhões de euros) vindos do País Basco levaram o Coração de Leão para o rival… dos leones (Athletic Bilbao).
A estreia pelos txuri urdin só aconteceu após uma temporada a zero. De seis passaram para treze meses «duros, duríssimos e intermináveis» sem cheirar a relva, uma vez que o castigo aplicado em solo luso acabou por ser validado pela FIFA para se estender internacionalmente. Mesmo tendo surpreendido o próprio e os dirigentes do emblema espanhol, a dedicação estava lá. E não houve como perder a fé.
«(…) Eles, da Real, acreditaram em mim e ficaram comigo. Foi uma demonstração inequívoca de persistência, também porque ficaram estupefactos pela forma como treinava afincadamente. Via-se mesmo na cara dos jogadores e até dirigentes o espanto deles, como quem diz ‘só vai jogar daqui a mais de um ano e trabalha para o jogo do próximo fim-de-semana’», revelou, mais tarde.
«(...) Tenho na memória, sobretudo, os grandes duelos com Real Madrid e Barcelona. (...) Tratava-se da liga mais forte do mundo, na altura. Fui muito bem tratado e vivi anos felizes no País Basco. Foi, acima de tudo, muito divertido. A nossa equipa gostava de jogar à bola. Era um futebol destemido, alegre», acrescentou.
Foram duas épocas a bom nível (seis golos em 76 partidas). Jogou contra alguns dos maiores craques da esfera futebolística no país de nuestros hermanos e voltou à seleção depois de uma longa ausência, a tempo, ainda, de disputar o Euro 2000 com grande parte da sua geração que caiu eliminada frente à França naquela famosa mão de Abel Xavier. Por tão pouco…
A experiência basca permitiu, mais tarde, o regresso de um filho da casa, isto ao virar do século. Coração de Leão voltou a Alvalade e, mesmo com os joelhos debilitados pelas várias operações, não deixou de ser o mesmo de sempre. Porque essa era a sua essência: lutador feroz, ágil, disputando cada bola como se da última se tratasse.Mas podia nem ter sido assim tão simples. Porquê? Porque o FC Porto de Pinto da Costa esteve à espreita um ano antes…
«Se Sá Pinto saísse da Real Sociedad, com certeza viria para o FC Porto», chegou a revelar o icónico líder portista em declarações à TVI, garantindo, com toda a certeza, que o avançado «continuava portista».
Mas o futuro era outro. Sá Pinto viveu, na segunda passagem pelo Sporting, alguns momentos inesquecíveis. Conquistou um campeonato (2001/02) que iniciou um longo (e atual) jejum dos leões, uma Taça de Portugal e duas Supertaças.
Envergou a braçadeira de capitão com orgulho e como maior símbolo verde e branco até o deixarem. As pernas e tudo o resto. Esteve nos momentos mais altos e também nos mais baixos, como o título nacional que escapou nas últimas jornadas, em 2004/05, sob o comando de José Peseiro e a final da Taça UEFA contra o CSKA Moscovo, «o momento mais triste da carreira como jogador».
Coração de Leão era assim. Um leão indomável, um incompreendido que mesmo como dirigente e treinador não mudou o feitio. Em Lisboa «apanhou Figos, Balakovs, Iordanovs e Valckxs» e em Espanha teve «o prazer o prazer de enfrentar jogadores fenomenais como Zidane, Rivaldo, Ronaldo e Roberto Carlos».
Se protótipo existe de um one club-man (homem de um só clube, em português) esse era (e é!) Ricardo Sá Pinto. Técnica, emotividade, carisma, entrega, intensidade e espírito lutador, tal como Ricardo I de Inglaterra. Uma odisseia de 17 anos com nove deles despendidos no clube que aprendeu a amar desde novo. Podiam ter sido mais. Mas as boas histórias também acarretam um pouco de tudo.