*com Ricardo Lestre
O futebol sofreu uma transformação daquelas. Hoje em dia, é visto como um negócio por todos os envolvidos. Jogadores, agentes, dirigentes. São milhares de milhões que envolvem o dia-a-dia do desporto-rei, dentro e fora. Realizam-se transferências astronómicas aos pontapés, rubricam-se contratos inusitados e os negócios insólitos… Bem, nem se fala.
Camp Nou já viveu melhores dias. Dias mais felizes. É verdade que continua a abarrotar de gente e são raros os dias em que não se assiste a uma casa cheia. Mas o Barça, embora os troféus que vão enchendo o museu todas as épocas, deixou de ser aquele Barça. O Barça hegemónico. O Més que un club. A instituição que tinha como bandeira a La Masia, aquela escola de formação única que produzia os melhores craques do mundo, pensada ao pormenor por um dos maiores génios que alguma vez pisaram o relvado.
Abalado por uma Catalunha dividida na luta pela independência, o Barcelona dos dias de hoje é humano. Os ventos de instabilidade vão afastando, cada vez mais, a filosofia Cruyff. Há quem diga que o ADN Barça morreu. Outros garantem que a situação deriva de um péssimo modelo de gestão de Josep Bartomeu e companhia. Seja qual for o motivo, a imagem do FC Barcelona não é a mesma desde há muitos anos. Está denegrida, fraturada. Um facto que já não é de agora.
A frase acima mencionada pertence a Pep Guardiola, um dos maiores pensadores do futebol moderno. O antigo futebolista que conquistou o mundo ao leme de uma das equipas mais temíveis da história. Para muitos o melhor de sempre. Para o Barça, o treinador que lançou um total de 22 talentosos meninos da La Masia que jogaram, cresceram e se revelaram ao mundo. Sergio Busquets, Sergi Roberto, Rafinha, Deulofeu, Thiago Alcántara, Marc Muniesa, Xavi Torres, Abraham, Adreu Fontás, Jonathan dos Santos, Jonathan Soriano, Gai Assulin, Oriol Romeu, Sergi Gómez, Rubén Miño, Nolito, Isaac Cuenca, Cristian Tello e Martí Riverola. Todos eles tiveram uma oportunidade, embora uns com mais sucesso do que outros. Um processo natural do futebol, portanto.
Saiu Guardiola em 2012, e o Barça estagnou. Mudaram-se as políticas, as regras, as ligações, as mentalidades. Do oito ao oitenta num par de anos. De Tito Vilanova, seu sucessor e um elemento muito respeitado no seio blaugrana, ficam as memórias e um onze inicial repleto de canteranos num embate frente ao Levante, em novembro de 2012. Até ao final da temporada, só Carles Planas teve direito a uma estreia pela formação principal. E foi também na era de Tito que Thiago Alcântara decidiu rumar… a Munique.
As conquistas vieram ofuscar, por outro lado, os negócios obscuros praticados pela direção. Sandro Rosell havia renunciado devido ao escândalo protagonizado pela transferência de Neymar, Bartomeu, com base nos estatutos do clube, ascendeu ao poder e aí… tudo descambou. Começando pelo investimento astronómico no plantel e terminando autêntica limpeza no corpo diretivo. Toni Freixa (dirigente e porta-voz), Guillermo Amor (diretor da formação) – regressou mais tarde –, Andoni Zubizarreta (diretor desportivo), Antonio Rossich (diretor geral) e Emili Sabadell (team manager), receberam guia de marcha. Muitos deles conhecedores da filosofia Barça e responsáveis pelas épocas de ouro do clube.
Em pouco mais de um ano, Josep Bartomeu viu-se obrigado a abandonar a presidência por ter sido acusado de fraude fiscal no processo da transferência de Neymar. Renunciou, anunciou candidatura para concorrer às eleições… e ganhou. Tudo isto numa questão de meses.
Imagine-se a situação da La Masia quando, entre 2014 e 2016, a FIFA proibiu os culés de inscreverem novos futebolistas devido a «infrações graves» na contratação de 10 menores…
Nas três temporadas de Luís Enrique, o Barcelona gastou cerca de 341 milhões de euros em 16 aquisições para o plantel. Muitas deram certo, como Suárez, Ter Stegen, Umtiti e Rakitic e os restantes pouco ou nada acrescentaram. Tiraram, isso sim, o lugar a outros membros da casa como Marc Bartra e Pedro Rodríguez que se viram obrigados a abraçar novos desafios. Douglas e Marlon, completos desconhecidos do futebol europeu, fizeram parte desse lote.
Completamente desgastado, Luís Enrique bateu o pé. Entrou Ernesto Valverde, técnico reconhecido pelo excelente trabalho realizado no Athletic Bilbao, sob uma forte onda de críticas. Sem praticar um futebol deslumbrante, o Barcelona sagrou-se campeão nacional, venceu a Taça do Rei e investiu de forma... «irrisória».
Contas feitas à passada e presente temporadas, o Barça gastou uns brutais 475,27 milhões de euros em 10 reforços. Algo nunca antes visto…
Para além dos troféus, Valverde conseguiu a proeza de elaborar um onze titular sem qualquer jogador da formação num duelo frente ao Celta de Vigo. O técnico viu-se no meio de uma enorme chuva de críticas e o desabafo de Marc Crosas, antigo jogador do clube, espelhou na perfeição a revolta do universo culé: «Há seis anos enchíamo-nos de orgulho por ver um Barça a atuar com 11 jogadores da cantera. Hoje? Nenhum! Não há maior crítica que esta à direção do Barcelona», afirmou o médio nas redes sociais.
Foi preciso recuar 16 anos para se encontrar um cenário semelhante…
Mergulhado no esquecimento e nas profundezas do futebol espanhol surge o Barcelona B, outrora a grande referência da La Masia. É na Segunda División B, terceiro escalão, que a equipa… vai sobrevivendo.
Na mesma formação B onde os meninos da La Masia ganhavam outra competitividade e se preparavam para um dia subirem à equipa principal. Hoje, é, talvez, a grande vítima da gestão danosa do clube. De lar de talento, passou para um simples plantel de reservas.
Com o passar dos anos, as situações graves foram-se amontoando. Jogadores saíram, jogadores entraram, e com os treinadores o mesmo. E sem esquecer os relatos que circularam na imprensa espanhola sobre os constantes problemas de balneário.
Nas últimas três épocas, foram 34 os jogadores que passaram na equipa B e 19 os que saíram sem sequer se estrearem. Em 2017/18, o plantel recebeu 11 jogadores de fora e o investimento calculado rondou os seis milhões de euros.
Eric García, Adrián Bernabé, Sergio Gómez, Jordi Mboula, Robert Navarro, José Arnaíz. São os últimos exemplos de joias da cantera que não resistiram ao assédio estrangeiro (e nacional) e que acabaram por deixar a maior e melhor academia do globo. Há, por isso, uma fé muito grande em torno de Carles Aleñá, Riqui Puig e Oriol Busquets. Se conseguirem seguir as pisadas de Sergi Roberto...
A La Masia, protegida por um código próprio e fechada a sete chaves ao exterior, passou a ser uma espécie de monumento de atração turística, com as portas sempre abertas aos meios de comunicação.
«Formávamos atletas para competir, respeitar o jogo limpo e, finalmente, vencer. Cruyff perguntava sempre como estávamos a jogar. Ele nunca perguntava sobre o resultado», relatou um ex-funcionário do clube ao portal Goal que preferiu manter o anonimato.
Barcelona, La Masia e uma identidade que vai morrendo lentamente, muito lentamente…