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    FC Barcelona e La Masia: que futuro?

    Um Barcelona 'milionário' e uma La Masia na escuridão: a crise de identidade em Can Barça

    2018/09/14 16:11

    *com Ricardo Lestre

    O futebol sofreu uma transformação daquelas. Hoje em dia, é visto como um negócio por todos os envolvidos. Jogadores, agentes, dirigentes. São milhares de milhões que envolvem o dia-a-dia do desporto-rei, dentro e fora. Realizam-se transferências astronómicas aos pontapés, rubricam-se contratos inusitados e os negócios insólitos… Bem, nem se fala.

    Camp Nou, uma casa de lendas ©Getty /
    A inflação do mercado futebolístico está a um nível nunca antes visto nem nunca ninguém imaginou que a coisa atingisse tamanhas proporções. E há um clube em particular que tem feito a sua parte. Ou, se quisermos ser um pouco mais benevolentes, um clube que sofreu com o fenómeno da inflação. O Fútbol Club Barcelona, por muitos considerado como um dos maiores clubes da história, dispensa apresentações. Ganhou todos os troféus possíveis e imaginários e foi a casa dos melhores de sempre quer dentro, quer fora das quatro linhas.

    Camp Nou já viveu melhores dias. Dias mais felizes. É verdade que continua a abarrotar de gente e são raros os dias em que não se assiste a uma casa cheia. Mas o Barça, embora os troféus que vão enchendo o museu todas as épocas, deixou de ser aquele Barça. O Barça hegemónico. O Més que un club. A instituição que tinha como bandeira a La Masia, aquela escola de formação única que produzia os melhores craques do mundo, pensada ao pormenor por um dos maiores génios que alguma vez pisaram o relvado.

    Abalado por uma Catalunha dividida na luta pela independência, o Barcelona dos dias de hoje é humano. Os ventos de instabilidade vão afastando, cada vez mais, a filosofia Cruyff. Há quem diga que o ADN Barça morreu. Outros garantem que a situação deriva de um péssimo modelo de gestão de Josep Bartomeu e companhia. Seja qual for o motivo, a imagem do FC Barcelona não é a mesma desde há muitos anos. Está denegrida, fraturada. Um facto que já não é de agora.

     «Não há maior vitória do que a de promover a estreia de um jogador da La Masia»

    A frase acima mencionada pertence a Pep Guardiola, um dos maiores pensadores do futebol moderno. O antigo futebolista que conquistou o mundo ao leme de uma das equipas mais temíveis da história. Para muitos o melhor de sempre. Para o Barça, o treinador que lançou um total de 22 talentosos meninos da La Masia que jogaram, cresceram e se revelaram ao mundo. Sergio Busquets, Sergi Roberto, Rafinha, Deulofeu, Thiago Alcántara, Marc Muniesa, Xavi Torres, Abraham, Adreu Fontás, Jonathan dos Santos, Jonathan Soriano, Gai Assulin, Oriol Romeu, Sergi Gómez, Rubén Miño, Nolito, Isaac Cuenca, Cristian Tello e Martí Riverola. Todos eles tiveram uma oportunidade, embora uns com mais sucesso do que outros. Um processo natural do futebol, portanto.

    Saiu Guardiola em 2012, e o Barça estagnou. Mudaram-se as políticas, as regras, as ligações, as mentalidades. Do oito ao oitenta num par de anos. De Tito Vilanova, seu sucessor e um elemento muito respeitado no seio blaugrana, ficam as memórias e um onze inicial repleto de canteranos num embate frente ao Levante, em novembro de 2012. Até ao final da temporada, só Carles Planas teve direito a uma estreia pela formação principal. E foi também na era de Tito que Thiago Alcântara decidiu rumar… a Munique.

    Xavi, Iniesta e Busquets, formados na La Masia, fizeram parte da época de ouro da seleção espanhola ©Getty /
    De Tata Martino, com três estreantes, passamos diretamente para Luís Enrique. Outro homem da casa, mas que colocou o tiki-taka de lado. Ora amado, ora odiado, Enrique colocou o Barcelona de novo no topo – destaca-se o famoso triplete – e, durante os três anos no cargo, concedeu 14 estreias a jovens da cantera. Aleñá, Carbonell, Borja López, Cardona, Nili, Jordi Masip, Sergi Samper, Halilovic, Gumabu, Kaptoum, Aitor, Sandro Ramírez e Munir El Haddadi. Alguns mais antigos, outros mais recentes, como os casos do brasileiro Marlon e do português Edgar Ié, que também tiveram direito a alguns minutos. O certo é que nenhum acabou por vingar.

    As conquistas vieram ofuscar, por outro lado, os negócios obscuros praticados pela direção. Sandro Rosell havia renunciado devido ao escândalo protagonizado pela transferência de Neymar, Bartomeu, com base nos estatutos do clube, ascendeu ao poder e aí… tudo descambou. Começando pelo investimento astronómico no plantel e terminando autêntica limpeza no corpo diretivo. Toni Freixa (dirigente e porta-voz), Guillermo Amor (diretor da formação) – regressou mais tarde –, Andoni Zubizarreta (diretor desportivo), Antonio Rossich (diretor geral) e Emili Sabadell (team manager), receberam guia de marcha. Muitos deles conhecedores da filosofia Barça e responsáveis pelas épocas de ouro do clube.

    Praticamente todos se insurgiram contra as políticas do conselho diretivo, e Zubizarreta, hoje no Marselha, quebrou mesmo o silêncio em entrevista ao Mundo Deportivo: «A minha saída do Barcelona não foi por uma questão profissional, nem por uma questão de trabalho, nem devido à formulação do plantel (…). A minha saída teve a ver com a política do futebol, área e campo no qual não me safo bem. Na verdade, não sei mexer-me na parte mais obscura da política… e do futebol (…)».

    Em pouco mais de um ano, Josep Bartomeu viu-se obrigado a abandonar a presidência por ter sido acusado de fraude fiscal no processo da transferência de Neymar. Renunciou, anunciou candidatura para concorrer às eleições… e ganhou. Tudo isto numa questão de meses.

    Imagine-se a situação da La Masia quando, entre 2014 e 2016, a FIFA proibiu os culés de inscreverem novos futebolistas devido a «infrações graves» na contratação de 10 menores…

    Nas três temporadas de Luís Enrique, o Barcelona gastou cerca de 341 milhões de euros em 16 aquisições para o plantel. Muitas deram certo, como Suárez, Ter Stegen, Umtiti e Rakitic e os restantes pouco ou nada acrescentaram. Tiraram, isso sim, o lugar a outros membros da casa como Marc Bartra e Pedro Rodríguez que se viram obrigados a abraçar novos desafios. Douglas e Marlon, completos desconhecidos do futebol europeu, fizeram parte desse lote.

    Completamente desgastado, Luís Enrique bateu o pé. Entrou Ernesto Valverde, técnico reconhecido pelo excelente trabalho realizado no Athletic Bilbao, sob uma forte onda de críticas. Sem praticar um futebol deslumbrante, o Barcelona sagrou-se campeão nacional, venceu a Taça do Rei e investiu de forma... «irrisória».

    Contas feitas à passada e presente temporadas, o Barça gastou uns brutais 475,27 milhões de euros em 10 reforços. Algo nunca antes visto…

    Para além dos troféus, Valverde conseguiu a proeza de elaborar um onze titular sem qualquer jogador da formação num duelo frente ao Celta de Vigo. O técnico viu-se no meio de uma enorme chuva de críticas e o desabafo de Marc Crosas, antigo jogador do clube, espelhou na perfeição a revolta do universo culé: «Há seis anos enchíamo-nos de orgulho por ver um Barça a atuar com 11 jogadores da cantera. Hoje? Nenhum! Não há maior crítica que esta à direção do Barcelona», afirmou o médio nas redes sociais.

    Foi preciso recuar 16 anos para se encontrar um cenário semelhante…

    Crise de identidade e de valores

    Mergulhado no esquecimento e nas profundezas do futebol espanhol surge o Barcelona B, outrora a grande referência da La Masia. É na Segunda División B, terceiro escalão, que a equipa… vai sobrevivendo.

    Na mesma formação B onde os meninos da La Masia ganhavam outra competitividade e se preparavam para um dia subirem à equipa principal. Hoje, é, talvez, a grande vítima da gestão danosa do clube. De lar de talento, passou para um simples plantel de reservas.

    Com o passar dos anos, as situações graves foram-se amontoando. Jogadores saíram, jogadores entraram, e com os treinadores o mesmo. E sem esquecer os relatos que circularam na imprensa espanhola sobre os constantes problemas de balneário.

    Nas últimas três épocas, foram 34 os jogadores que passaram na equipa B e 19 os que saíram sem sequer se estrearem. Em 2017/18, o plantel recebeu 11 jogadores de fora e o investimento calculado rondou os seis milhões de euros.

    La Masia, idealizada por Johan Cruyff, vai perdendo a sua essência ©Getty /
    Com uma média de 2.586 espetadores no Miniestadi, o Barcelona B desceu de divisão e o ano ficou manchado pela polémica. Jordi Vinyals, face aos maus resultados iniciais alcançados por Eusebio Sacristán - para muitos o culpado do fracasso -, assumiu o comando técnico e não tardou em agravar uma situação por si só delicada: «O Barça B é o exemplo da perda de valores da La Masia», atirou, em resposta a uma reação pouco famosa de Halilovic no momento de uma substituição.

    Eric García, Adrián Bernabé, Sergio Gómez, Jordi Mboula, Robert Navarro, José Arnaíz. São os últimos exemplos de joias da cantera que não resistiram ao assédio estrangeiro (e nacional) e que acabaram por deixar a maior e melhor academia do globo. Há, por isso, uma fé muito grande em torno de Carles Aleñá, Riqui Puig e Oriol Busquets. Se conseguirem seguir as pisadas de Sergi Roberto...

    A La Masia, protegida por um código próprio e fechada a sete chaves ao exterior, passou a ser uma espécie de monumento de atração turística, com as portas sempre abertas aos meios de comunicação.

    Um símbolo lendário ©Getty /
    Nos mais diversos escalões, não se privilegia a beleza do futebol. A forma de jogar. A filosofia. Joga-se, sim, para ganhar e premeia-se os jogadores e os treinadores consoante o número de vitórias. Privilegiam-se os mais fortes ao invés dos melhores.

    «Formávamos atletas para competir, respeitar o jogo limpo e, finalmente, vencer. Cruyff perguntava sempre como estávamos a jogar. Ele nunca perguntava sobre o resultado», relatou um ex-funcionário do clube ao portal Goal que preferiu manter o anonimato.

    Barcelona, La Masia e uma identidade que vai morrendo lentamente, muito lentamente…

    Espanha
    Pep Guardiola
    NomeJosep Guardiola i Sala
    Nascimento/Idade1971-01-18(53 anos)
    Nacionalidade
    Espanha
    Espanha
    FunçãoTreinador

    Fotografias(56)

    Comentários

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    motivo:
    _BXTW_
    2018-09-15 03h41m por Ultimo9
    Duvido desses que disseste que o Alena e o Oriol saiam assim tão fácilmente. . . mas os outros, não vejo porque que os top tugas não conseguiríam como disseste
    Lapso
    2018-09-15 00h38m por king_jose
    Da lista de jogadores que vieram da cantera, esqueceram—se de mencionar Xavi e Messi.
    Sim, Messi apesar de argentino fez formação na cantera
    JO
    Mudança de identidade
    2018-09-15 00h35m por joaots
    O Barcelona parece o Real Madrid á poucos anos atrás.
    A verdade é que os melhores jogadores sub23 a saírem da LaMasia já não estão no Barça(Nem chegaram a vestir a camisola)
    Mas nem tudo é mau pois clubes como os nossos 3 grandes e o Braga podem ir buscar pérolas a um custo muito baixo ou até mesmo a custo zero.
    Situações Grimaldo vão se repetir muitas vezes no futuro
    Seixal
    2018-09-14 21h50m por polnarado
    Esta sim é uma academia, ccada vez mais cotada internacionalmente e quiçá a melhor do mundo!
    La Masia
    2018-09-14 21h48m por polnarado
    Parece a academia do sporting, longe vão os tempos em que eram de renome internacional.
    ZA
    j_f_uite
    2018-09-14 21h13m por Zagorakis
    Eu diria que os clubes estão a regressar às suas personalidades. O Barcelona antes do Cruyff era uma equipa que contratava jogadores feitos (sobretudo que tivessem em grande noutros clubes). Já o Real Madrid antes do Florentino Perez (e dos planteis galácticos), embora fizesse o mesmo que o Barcelona, também tinha uma maior aposta na formação (como está a recuperar agora).
    Parabéns ao ZeroZero
    2018-09-14 20h51m por thiago08
    Artigo excelente! Continuem com o bom trabalho!
    Excelente artigo !
    2018-09-14 17h46m por Bento_16
    Realmente o aproveitamento das camadas jovens do Barça já não é o que era. Alguns jogadores que por lá passaram se tivessem tido oportunidades ou não tivessem saído podiam evoluir e ter feito parte do atual plantel. Não tem a qualidade dos tempos de Iniesta, Xavi ou Messi mas ainda assim: Mauro Icardi, Bellerin, Keita Balde, Grimaldo, A. Traore, Onana, Mboula entre outros passaram pelas camadas jovens do clube e podiam ter sido melhor aproveitados. Já para não falar de outros jogadore...ler comentário completo »
    SO
    Milionário?!
    2018-09-14 17h17m por sofintas
    Há indícios significativos de as finanças do Barça estarem débeis. Por exemplo, basta o Real ter cerca de metade do interesse pelo mesmo jogador e o Barça já nem se mexe. Foram muitos anos (entre há cerca de onze anos até este mercado) com uma postura ruinosa no mercado, nas compras e nas vendas (neste caso, o das vendas, com uma certa soberba, a libertar constantemente jogadores - sobretudo, desdenhados da cantera - a preços de outlet). O Barça em tempos - relativamente recentes - era ...ler comentário completo »
    PR
    Muito bom artigo!
    2018-09-14 17h07m por propsbro
    Do melhor que já vi no ZeroZero! Parabéns!

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