Saltar de um grande para o outro, surpreender tudo e todos e estar no epicentro de uma conversa durante largos dias. O futebol português sempre foi propício a trocas e baldrocas, sobretudo entre os três maiores clubes. Heróis um dia, vilões no outro, a vida dos futebolistas nunca deixou de ser volátil.
Casos desse tipo, em Portugal, são vários. Desde o «Verão Quente» de 1993 à dispensa de João Pinto do Benfica com destino a Alvalade, passando ainda por Rui Águas, Simão Sabrosa e Fábio Coentrão (ainda que não em 'troca direta'), Maxi Pereira, André Carrillo, 'Cebolla' Rodríguez, entre outros. Destinos diferentes, motivos distintos, mas o mesmo nível de alarido.«Amigos, amigos... Negócios a parte». É um clichê, mas também é uma expressão utilizada frequentemente para definir a relação institucional entre FC Porto e Sporting. Relação essa que conheceu alguns momentos de tensão nos últimos 20 anos, mesmo que a rivalidade não fosse - nem seja - de tão grande magnitude comparativamente com aquela que coloca o outro rival ao barulho.
Ainda assim, no século XXI, houve uma transferência em particular que provocou um sismo de larga escala: a de João Moutinho, em julho de 2010. Em Alvalade, a fúria apoderou-se dos sportinguistas quando o menino da formação - e, mais tarde, símbolo e capitão - virou, surpreendentemente, «maçã podre». A mais de 300 quilómetros de distância, na Cidade Invicta, a felicidade do universo portista levaria, anos mais tarde, à ironia da «maçã podre de boa»...
A situação não era propriamente famosa do lado verde da Segunda Circular. O Sporting havia terminado a temporada 2009/10 no quarto lugar da tabela classificativa, interrompendo a sequência de quatro segundos lugares consecutivos com Paulo Bento, e de forma atribulada. Para além disso, a condição financeira era delicada, com falta de liquidez em investimentos avultados no plantel, como o caso de Sinama-Pongolle, e de capital.
Mesmo com um ligeiro ascendente, a posição frágil do antigo jogador dos leões aos olhos da opinião pública era, acima de tudo, frágil. O ciclo necessitou de ser quebrado e iniciou-se uma crise interna profunda. Leonel Pontes, como interino, acabou por assumir o leme até à oficialização de Carlos Carvalhal, sucessor escolhido face à queda das negociações por... André Villas-Boas, treinador da Académica à data. E tudo numa altura delicadíssima do clube.
«Estivemos perto de chegar a acordo com o Sporting. Eu tentei fazer com os meus adjuntos, de certa forma, o mesmo que o Mourinho fez connosco, e não senti que estivessem a protegê-los e eu disse que não. Quando quiseram voltar atrás nem quis saber e renovei pela Académica logo a seguir. O Sporting insistiu em Fevereiro mas passei em frente a este estádio [do Dragão], no autocarro da equipa [Académica] e soube que era aqui que eu queria estar», revelaria, anos depois, o na altura futuro treinador do FC Porto ao Porto Canal.
«A minha sucessão, passadas umas semanas, era uma realidade», revelou, ao jornal Record, salientando que a apresentação de Costinha como diretor desportivo foi feita «à sua revelia».
«Não estava presente na sala quando ele foi apresentado aos jogadores como o novo diretor para futebol. Isto foi tudo sui generis: havia jogadores no balneário, outros a levar massagens, outros na casa de banho e o Costinha a ser apresentado a 15/16 jogadores, sem a presença do treinador. Uma coisa fantasmagórica. De repente, entro no balneário, vejo aquele cenário – os jogadores a equiparem-se para o jogo com o Everton! – e o presidente diz-me: "Entre, entre." "Eu? Nada disso. Não fui convidado. Peço desculpa." Fechei a porta e fui embora (...)», explicou, passada uma década.
No covil do dragão, a ressaca do penta falhado era dura, mas também motivo para colocar mãos à obra e dar início a uma nova era.
Assim como em Alvalade, no Dragão houve a necessidade de colocar um ponto final numa longa relação. A época foi desapontante: alguns fiascos no mercado, buraco difícil de tapar com a saída de Lucho González, lesões de certas figuras e suspensão de Hulk por causa do famoso 'Túnel da Luz'. Tudo contribuiu para a maior desilusão da era do Professor que conheceria, por isso, o seu fim.
Ciente da urgência de sangue fresco, a direção portista canalizou esforços para oficializar André Villas-Boas, jovem e irreverente treinador da Académica que tinha feito parte da comitiva de José Mourinho durante caminhada triunfal dos azuis e brancos.
Novos ventos, novos casamentos e... novos investimentos.
Aos 13 anos trocou o Portimonense e a sua cidade natal pelo Sporting e por Lisboa, tendo, em Alcochete, realizado a restante formação como futebolista. Um das primeiras grandes revelações da 'nova' Academia Sporting, João Moutinho teve uma daquelas ascensões meteóricas.
Durante a primeira parte da temporada fez parte do conjunto de juniores, liderado por Paulo Bento, no entanto, assim que Tinga regressou ao Brasil, em janeiro de 2005, José Peseiro não hesitou em chamá-lo de volta. Aos 18 anos, Moutinho estreou-se pela seleção AA das Quinas, nesse mesmo ano debutou na Primeira Liga e chegou com o Sporting à final da Taça UEFA perdida para o CSKA Moscovo, mas, aos olhos dos adeptos, carregava um fardo importante nos ombros: a mística leonina.
Não demorou muito, por isso, a ser encarado como uma valiosa prata da casa à imagem de outros craques que o centro de formação exportara para vários pontos do planeta. A maturidade incomum para a idade, a liderança, a responsabilidade e a polivalência deliciavam o universo verde e branco.
Até que, no verão de 2008, após o Europeu realizado em solo suíço e austríaco, a bomba rebentou. Na pré-época, mais concretamente no fim do encontro frente ao Blackburn Rovers no Torneio do Guadiana, Moutinho reuniu os jornalistas e colocou Alvalade em estado de choque.
«A minha vontade, pelas razões que tenho, é poder sair», atestou o capitão dos leões, ciente da proposta rejeitada pela direção proveniente de Inglaterra: 15 milhões de euros apresentados Everton. «Espero que possa haver uma boa solução para ambas as partes», reforçou.
Precisamente por volta dessa altura, rumores na imprensa nacional deram conta de um eventual almoço do médio com o presidente do FC Porto, Pinto da Costa, com quem o próprio confirmou ter-se cruzado juntamente com Pini Zahavi, seu representante, uma vez que tinha passado «o último fim-de-semana de férias» na cidade portuense.
A polémica instalou-se por completo e o líder máximo dos portistas não hesitou em atirar mais uma acha para a fogueira, classificando João Moutinho como um «jogador à Porto» em entrevista à Visão.A relação entre capitão e clube começou a deteriorar-se e a renovação de contrato, perto do fim de 2008/09, apanhou todos de surpresa: contrato ampliado por mais uma época, salário ao nível dos mais altos do plantel e uma cláusula de rescisão de 22,5 milhões de euros.
A direção liderada por José Eduardo Bettencourt parecia ter ganho um braço de ferro que perderia... meses depois. Não que algo de estranho não se notasse à distância, mas a saída de Paulo Bento, aliada à crise interna e ao fraco rendimento coletivo e individual que custou a Moutinho a presença no lote de eleitos de Carlos Queiroz para o Mundial na África do Sul, teve um peso considerável para o desfecho final.
Na zona norte, a situação era seguida com especial atenção e a imprensa divulgava, a cada dia, informações reveladoras. As dificuldades financeiras do Sporting eram evidentes, especialmente depois do fracasso da temporada finda, e, em inícios de junho de 2010, José Eduardo Bettencourt, João Moutinho e o seu empresário, o conceituado Pini Zahavi, estabeleceram, por escrito, um contrato no qual o agente israelita tinha um mandato para encontrar uma nova casa para o seu cliente, até ao final do mês, mediante o pagamento de 10 milhões de euros.
Moutinho confrontou a direção sobre o acordo, envolveu-se numa discussão com Costinha, diretor desportivo, e acabou por ser impedido de treinar com a equipa, apesar da informação oficial ter dado conta de «trabalhos de ginásio».
Gerou-se um problema de tal forma alarmante que Paulo Sérgio, aposta de Bettencourt para 2009/10, afirmou ter «feito coisas no Sporting que provavelmente não teve de fazer em Guimarães».
«Havia coisas que não eram do futebol ou do treinador do futebol, mas em que eu tinha de participar e partilhar. Por exemplo, a saída do João Moutinho, eu vi a aflição das pessoas a lidar com um erro tremendo que se cometeu e chamaram-me às onze da noite para ir a Alvalade para discutirmos isso», revelou, ao Expresso.
«Era uma coisa muito frágil e num ano em que o presidente contava com um determinado número de apoios que depois não aconteceram. Ele viu-se na iminência de ter de fazer a venda do João [Moutinho] para poder fazer face à temporada, porque não tinha dinheiro. (...) Lembro-me de uma frase dele: 'Ó Paulo, eu prefiro comer ovos com salsichas o resto da minha vida do que falir o meu clube'», acrescentou.
Consumava-se, portanto, a transferência mais cara da história do futebol português e a segunda mais cara de sempre dos dragões (já ultrapassada a larga distância nos dias de hoje), um desfecho inesperado digno de um thriller à boa moda portuguesa. Em 2014, o assunto foi motivo de corte de relações entre ambos os clubes pela cláusula de uma futura transferência (25 por cento) estabelecida na altura, com a Comissão Arbitral da Liga Portuguesa de Futebol a condenar o FC Porto ao pagamento de 650 mil euros aos leões relativos à mudança de Moutinho para o AS Monaco.
Eternizada na memória dos portugueses ficou uma das tiradas de José Eduardo Bettencourt, ao lado de Costinha, em conferência de imprensa, assim que a operação foi oficializada: «(...) O Sporting não queria no seu pomar uma maçã podre (...)».
A Moutinho «doeu» ouvir tais palavras, mas... «Era capitão do Sporting e a minha mudança para o FC Porto não foi fácil. Uma grande decisão, uma boa decisão, uma das melhores que tomei no futebol, porque ganhei muitas coisas».