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      Camp. Alemanha 1941
      Grandes jogos

      Schalke 04 x Rapid: A vingança da história

      Texto por João Pedro Silveira
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      Nas primeiras horas do domingo, 22 de junho de 1941, sob o falso pretexto de violações fronteiriças e sem declaração formal de guerra, a Alemanha Nazi rompeu o Pacto de Não Agressão Germano-Soviético, que fora assinado apenas dois anos antes, e invadiu o território da União Soviética. As primeiras horas do ataque alemão revelaram toda a dimensão da operação militar.

      Três milhões e meio de soldados, equipados com mais de 40 milhões de armas e morteiros, cerca de quatro mil veículos blindados e apoiados por mais de quatro mil aviões. A ofensiva alemã, organizada em três grupos principais de exércitos que se encontravam divididos em 180 divisões, avançou numa frente contínua de 3 mil quilómetros do Báltico até ao Mar Negro, na maior operação militar de todos os tempos, a «Operação Barbarossa». 
       
      Estados de alma difusos
       
      Depois da conquista da Europa central e ocidental, a invasão e conquista da União Soviética era a última etapa do plano de Adolf Hitler que passava por construir um Reich do Atlântico aos Urais, deixando a Inglaterra como uma ilha isolada em frente a um continente controlado por Berlim.
       
      Com o raiar da manhã confirmava-se a magnitude da operação. Os soviéticos, apanhados de surpresa, recuavam em todas as frentes. Entre prisioneiros, desertores, feridos e mortes, as baixas ascendiam às centenas de milhares. As cidades eram queimadas, os campos arrasados e, em muitas localidades dos países bálticos e da Ucrânia, os alemães eram recebidos com flores e vistos como libertadores.
       
      Equipa do Schalke 04, cinco vezes campeã da Alemanha entre 1934 e 1940.
      No posto móvel do comando de operação, ao som de «Les Préludes» de Franz Liszt, Hitler, para gáudio do seu Estado-maior, fazia avançar as peças no mapa, replicando o movimento imparável dos panzers nas planícies ucranianas e da Bielorrússia em direção às estepes da gigante Rússia... A confiança na vitória era total.
       
      Do outro lado, em Moscovo, Estaline fechava-se em copas no Kremlin, num silêncio revelador, recolhendo-se durante dois dias, não querendo ver ninguém. Atónito, incrédulo, fechou-se ao mundo sem querer ouvir as notícias que chegavam da frente, narrando derrota atrás de derrota e confirmando os piores cenários de um desastre em toda a linha.
       
      Ao terceiro dia, Estaline saiu do seu quarto para quebrar o silêncio através de uma histórica comunicação por rádio ao país. Era a primeira vez que os russos ouviam a voz do seu líder, clamando pela resistência, pelo orgulho da pátria, apelando aos seus concidadãos uma luta heróica sem tréguas. Pela primeira e única vez na vida tratava os seus compatriotas como irmãs e irmãos...
       
      Mais um domingo...
       
      Franz Bomber Binder, 1006 golos em 756 jogos na sua longa carreira.
      Nesse mesmo 22 de junho, pela tarde, em Berlim, na capital do Reich que iria durar mil anos, jogava-se a final do campeonato alemão. A cidade acordara com as notícias da «Operação Barbarossa» nos cafés e locais públicos e as histórias da frente eram repetidas com alegria, confirmando mais uma vez o sucesso da Blitzkrieg, a guerra relâmpago com que a Alemanha conquistara já mais de meio continente. 
       
      Os alemães estavam confiantes e desde o começo da guerra que, em boa verdade, ainda não haviam sentido em solo alemão as agruras do conflito, aparte de um ocasional - e extremamente raro - raide da Força Aérea Britânica, que fazia soar os alarmes e obrigava a recolher aos abrigos.
       
      Ao fim da manhã, o tema de conversa que já dominava a cidade - e o país - era a final da 34ª edição do Deutsche Meisterschaftssaison, o Campeonato Nacional da Alemanha de futebol. No Olympiastadion de Berlim, onde cinco anos antes se tinham realizado as olímpiadas, perante 90 mil espetadores, o Schalke 04 e o Rapid de Viena prometiam uma tarde de futebol ofensivo e espetáculo. 
       
      Binder aponta um livre perante o olhar atento do guarda-redes Klodt.
      Os azuis de Gelsenkirchen eram bicampeões germânicos, tinham ganho cinco campeonatos nas últimas sete edições. Os seus jogadores eram estrelas mediáticas, jovens privilegiados, utilizados em propaganda do regime, verdadeiros heróis nacionais e não era à toa que o Schalke era comummente apontado como o clube do regime. Ao Rapid de Viena competia salvar a honra austríaca, abalada desde do Anschluss - a anexação pela Alemanha em 1938 - que reduzira a Áustria à mera condição de província da Alemanha com o nome de Ostmark.
       
      As duas Alemanhas
       
      O futebol fora nesses anos a única verdadeira réstia do orgulho nacional do país que já não existia. A vitória no Anschlussspiel, o jogo de despedida da Áustria; a misteriosa morte de Matthias Sindelar e a colossal adesão popular ao seu enterro; a vitória do Rapid na Taça da Alemanha... Tudo servia para fazer subir uma onda de fervor nacional.
       
      Jogadores do Rapid efetuam a saudação nazi antes de começar a partida.
      Não era de admirar que um sentimento anti-germânico trespassasse o ambiente do futebol austríaco. Raras eram as ocasiões em que as partidas disputadas entre clubes austríacos e alemães não terminavam em desacatos, com algumas a redundarem mesmo em autênticas batalhas campais. Numa dessas ocasiões, num desafio em que um selecionado de Viena defrontava uma equipa da Luftwaffe (Força Aérea Alemã), os confrontos provocaram a morte de um jogador austríaco, vítima dos ferimentos que sofrera na batalha campal. 
       
      Era este estado de quezília que ensombrava os encontros entre o norte dominador, protestante e prussiano e o sul dominado, católico e austríaco: as duas Alemanhas que a história mantivera separadas e que Hitler unificara.
       
      Dois anos antes, o Admira Wien fora a primeira equipa austríaca a chegar à final do campeonato alemão. As expectativas eram elevadas e a pequena vingança, na própria capital do Reich, seria possível, pensavam os vienenses. Mas a derrota às mãos do Schalke 04 por uns expressivos 0x9 humilhara o futebol austríaco, reduzido então a um mero campeonato regional.
       
      Um começo demolidor
       
      No primeiro dia de verão, debaixo de um generoso sol, as duas equipas perfilaram-se perante a tribuna para ouvirem o Das Lied der Deutschen, o hino nacional alemão, enquanto faziam a saudação nazi e muitos jogadores do Rapid lembravam a si mesmos a possibilidade de reescreverem a história. 
       
      O marcador do Estádio Olímpico exibindo o resultado final: Schalke 3x4 Rapid.
      O Schalke 04 entrou a todo o gás. Aos seis minutos, Hinz abriu o marcador, um minuto depois Eppenhoff fez o 2x0 e a goleada parecia o destino do Rapid. Se o claro favoritismo do Schalke era uma certeza antes do jogo, os dois golos em sete minutos faziam do que restava jogar uma quase mera formalidade.
       
      O Rapid cerrou fileiras e aguentou os ataques da equipa da Vestefália. Mesmo antes do intervalo teve a hipótese de reduzir através de uma grande penalidade, mas o guarda-redes Klodt travou o remate do avançado vienense.
       
      Rapidgeist
       
      Ao voltarem das cabines, os jogadores do Rapid passavam pelo grande troféu, que olhavam de viés - diz o mito - e tentavam assim não ver o nome do Schalke 04 já tantas vezes gravado naquela taça.
       
      A segunda parte começou com o Rapid a tentar voltar ao jogo, mas o Schalke estava imparável. Aos 62 minutos, Heinz Hinz recebeu um passe na área adversária, chutou com o pé direito, Raftl defendeu com o pé para ao lado, Hinz foi à sobra e, de ângulo apertado, chutou forte com o pé esquerdo, fazendo a bola entrar entre Raftl e o poste direito da baliza, bisando na partida e pondo uma pedra sobre a questão. Ou assim todos pensavam...
       
      Ainda os adeptos de Gelsenkirchen não se tinham sentado depois dos festejos e já Georg Schors fazia o 1x3 e pegava na bola em direção ao meio-campo para reatar a partida. Na bancada, tímidos festejos dos verde e brancos eram tolerados por uma esmagadora maioria de sorridentes adeptos do Schalke 04
       
      Sessenta segundos tem um minuto, mas nem de cinquenta segundos precisou o Rapid para continuar a fazer história. Bola roubada, contra-ataque rápido, defesa do Schalke ainda atónita e Franz Bomber Binder rematou um dos seus famosos tiros de canhão para fundo das redes de Klodt. 2x3! Primeira verdadeira explosão de alegria nas bancadas afetas ao Rapid.
       
      Bola ao meio e os jogadores do Schalke demonstravam algum nervosismo... O Rapid percebeu, roubou novamente a bola, ataque rápido, confusão na área e o árbitro apontou para a marca de grande penalidade. Os azuis contestavam, os vienenses abraçavam-se. Finalmente o penálti era cobrado e o bombardeiro não perdoou. 3x3, segundo golo de Binder. A versão futebolística Blitzkrieg apanhava os alemães de surpresa...
       
      Para coroar a reviravolta épica, Binder rematou a uns bons vinte metros da baliza e fez o 4x3. Nas bancadas, os adeptos do Rapid festejavam e choravam de alegria. Os alemães não queriam acreditar, pois ainda nem nove minutos tinham passado quando o Schalke tinha feito o 3x0, preparando-se para festejar o tricampeonato.
       
      Binder, um gigante de 1,90, era levado em ombros pelos colegas e elevado à condição de herói. Pouco depois do fim do campeonato seria convocado para o exército alemão e só voltaria a jogar futebol no fim da guerra, voltando a defender as camisolas do Rapid e da seleção nacional austríaca.
       
      Jogadores do Rapid com a «Victória», a Taça alada que sagrava os campeões da Alemanha, o mais soturno dos troféus no palmarés do clube verde-e-branco.
      Der Bomber, o bombardeiro, deitava por terra a equipa do Schalke.
       
      Até ao fim, o Rapid defendeu heroicamente, com alma e com uma garra sem comum, nascendo então a lenda do Rapidgeist, o espírito do Rapid, a força imbatível da alma dos verde e brancos que, ao longo da sua história, voltou a fazer vítimas nos mais diversos adversários. Ao Schalke, o crónico campeão do regime nazi, coube a honra da estreia.
       
      Das Lied der Deutschen
       
      Os austríacos tinham a sua vingança e, curiosamente, no dia em que a Alemanha começou a invasão que lhe custaria a guerra, bem longe da frente oriental, em plena Berlim, o regime de Hitler tinha uma derrota simbólica às mãos de uma equipa da sua Áustria natal que o ditador reduzira à mera condição de província. 

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