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Qarabag

Texto por Ricardo Lestre
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Askeran, 22 de fevereiro de 1988. Um pelotão de azeris deixa a cidade de Agdam, inserida na província de Nagorno-Karabakh, com o único propósito de enfrentar a população arménia residente em Askeran. Para trás, um rastro de destruição. Nos arredores da cidade, o conflito, mesmo contando com a intervenção da polícia azeri, descambou. A morte de dois azeris e a quantidade de arménios feridos foi a acendalha. Estava dado o mote. A República Socialista do Azerbaijão e a República da Arménia declaravam, oficialmente, guerra. Uma que viria a ser das mais sangrentas da história.

Explosões. Balas. Tanques. Bombardeamentos constantes. Populações minoritárias massacradas. Cidades destruídas. Lares abandonados. Os conflitos eram diários. No meio de milhares, houve um que se destacou. O conflito no Nagorno-Karabakh, no início da década de 90, adquiriu uma dimensão política/religiosa/territorial enorme, movendo milhares e milhares de refugiados.

O caso remonta aos anos 20. Joseph Estaline, até então líder da União Soviética, decretou que a região montanhosa e autónoma, presente em território azeri e habitada historicamente por maioria arménia e cristã, passaria a ser integrada e governada pela República Socialista do Azerbaijão, habitada, de forma predominante, por muçulmanos xiitas. Durante décadas, as relações foram estáveis, mas a queda da União Soviética acordou um gigante adormecido, incontrolável. E o estatuto de região independente, revogado pelo governo azeri em 1991, veio acentuar ainda mais a tensão. A bolha, de tão grande tamanho, rebentou de vez… e o conflito estalou.

Tornou-se no clube mais titulado do Azerbaijão @Getty / Richard Heathcote
Agdam, 23 de julho de 1951. Era fundado o Qarabag Futbol Klubu, clube originário da região de Nagorno-Karabakh e celebremente conhecido como Qaçqın Klub, ou o ‘Clube dos Refugiados’. As dificuldades financeiras e as constantes mudanças de nome fizeram com que o crescimento e o consequente sucesso do clube começasse na década de 90. Poucos anos antes, e já com o nome atual, o Qarabag venceu o primeiro título de campeão, no campeonato local, ainda sob o domínio da União Soviética.

Agdam, 12 de maio de 1993. Data e local da última partida realizada pelo Qarabag no seu estádio. Cerca de oito mil pessoas assistiram à vitória diante do Turan Tovuz por 1x0, na primeira mão da meia-final da Taça do Azerbaijão. Hoje, o İmarət Stadium não é nada mais do que um acumulado de ruínas e Agdam uma cidade fantasma, apelidada… de ‘Hiroshima do Cáucaso’.

Evacuada para a capital, a formação do Qarabag venceu a segunda mão dias mais tarde e levantou o troféu. E nunca mais regressou às suas origens…

Agdam, 23 de julho de 1993. As forças arménias conquistam a cidade de Agdam. O Qarabag é forçado a exilar-se na capital, Baku, e a fazer da sua casa o Tofiq Bəhramov Stadium – atualmente joga na Azersun Arena, construída em 2015  –, local onde a seleção do Azerbaijão disputa os jogos de preparação, construído em homenagem a um famoso ex-árbitro azeri.

Foi até ao último suspiro. O Qarabag recusava abandonar o seu lar. O seu estádio. A sua cidade. A situação prolongou-se, mesmo com bombardeamentos constantes nos arredores, até porque a relação entre clube e cidade era peculiar. As palavras de Shahid Kasanov, ex-capitão da equipa exilada, proferidas ao jornal Independent descrevem isso mesmo.

«Antes da guerra acho que nós éramos o único clube do Azerbaijão que atuava apenas com jogadores locais. A equipa era nativa para o povo. Toda a gente era de Agdam, jogadores e adeptos. Eram parentes e vizinhos. Era especial, nativo. A equipa era deles. O clube e o estádio viraram autênticos templos», apontou.

A ocupação do exército arménio surgiu numa fase posterior à morte de Allahverdi Bagirov, antigo técnico do clube e, sobretudo, um herói de guerra no Azerbaijão. Em 1988, Bagirov alistou-se no exército e travou imensas batalhas no seio do conflito no Nagorno-Karabakh.

Bagirov, o Herói. Salvou um número incontável de vidas, hasteou a bandeira da independência do Azerbaijão pela primeira vez em Agdam e derrotou as milícias arménias por mais do que uma ocasião. Faleceu aos 46 anos, tornando-se numa das cerca de 40 mil vítimas da sangrenta guerra arménia-azeri. Dentro das muitas distinções post mortem, destaca-se a de “Herói Nacional do Azerbaijão”, concedida pelo presidente. Relatos indicam que o próprio comandante do exército arménio fez questão de contactar, via rádio, os soldados azeris, mostrando-se frustrado com a sua morte: «Como não conseguiram salvar tal homem?».

Elshad Khudadatov, antigo jogador e atual técnico nas camadas jovens do Qarabag, estava presente no momento em que a cidade de Agdam recebeu a notícia do falecimento do seu herói. Um testemunho arrepiante.

@Getty /
«Quando soubemos da sua morte [Allahverdi Bagirov], não conseguimos conter as lágrimas. Durante um dos jogos, fizemos um tributo de silêncio em sua memória e um míssil de Grad [veículo de artilharia] atingiu o relvado… mas nenhum jogador se mexeu. Ficamos perplexos e parados no mesmo sítio», revelou, em declarações reproduzidas pelo portal futebolgrad.

Para além da Taça, estava outro título em disputa. O de campeão. Agdam caiu e o Qarabag, poucos dias depois, venceu o campeonato - a recém-fundada Azerbaijan Premyar Liqa (Primeira Liga do Azerbaijão) após a queda da URSS. Todo um contraste brutal. De um lado, a dobradinha, do outro, uma cidade destruída. Segundo vários meios de comunicação, alguns elementos do plantel, dias antes da finalíssima, partiram para Agdam movidos pela esperança de encontrar familiares e amigos com sinais de vida no meio de um cenário de completo horror.

Depois da guerra, os problemas financeiros

Em 1994, foi assinado um cessar-fogo entre as forças azeris e arménias. No entanto, o pacto não passou de uma mera formalidade. Persiste uma espécie de paz podre. E os conflitos na região continuam a ser constantes. Agdam, uma cidade fantasma. Uma cidade de 60 mil habitantes reduzida a cinzas, cujos únicos batimentos cardíacos registados são os de inúmeros snipers arménios posicionados em pontos estratégicos.

Como expectável, o Karabakh viveu períodos de graves dificuldades financeiras. Ainda assim, na edição da Taça Intertoto de 1999, tornou-se na primeira formação azeri a vencer um jogo fora de portas numa competição da UEFA, ao triunfar em casa do Maccabi Haifa por 1x2, e marcou presença em algumas edições da velhinha Taças das Taças. Numa fase pós-guerra, a sobrevivência do clube corria, uma vez mais, sérios riscos… até que o governo decidiu intervir.

No ano de 2001, a bancarrota estava próxima, mas a entrada da Azersun Holding, uma das maiores empresas do Azerbaijão, resolveu os problemas existentes com a injeção de capital e os êxitos do Karabakh a nível nacional e internacional foram-se acumulando constantemente.

Apesar de uma única Taça do Azerbaijão conquistada em 2006, a direção do Karabakh viu-se obrigada a apostar num novo treinador, dois anos depois, face à saída inesperada de Rasim Kara. Começava a era dourada de Gurban Gurbanov, um ícone azeri dentro e fora dos relvados...

Gurbanov no auge do Qarabag

A maior figura da história do clube @Getty /
Antigo futebolista de craveira nacional – é o melhor marcador de sempre da seleção azeri com 12 golos em 64 partidas –, Gurbanov colocou o Qarabag em patamares altíssimos. Mudou uma filosofia geracional – aposta nos jogadores estrangeiros ao invés da ‘prata da casa’ – e introduziu um estilo de jogo único, muito semelhante ao tiki-taka praticado pelo… FC Barcelona. Daí que a alcunha de Qafqazın Barselonası – ‘Barcelona do Cáucaso’ – começasse a ser popular entre a massa adepta.

O sucesso foi tal que, hoje, o Qarabag continua a colher os seus frutos e os êxitos internos e externos estão à vista de todos. É maior e melhor clube do Azerbaijão da atualidade e o palmarés não mente. Desde a entrada do novo técnico, foram conquistados cinco campeonatos consecutivos (atualmente é pentacampeão), quatro Taças do Azerbaijão e uma Supertaça.

No contexto internacional, atingiu por três vezes os play-offs da Liga Europa (2009/10, 2010/11, 2013/14), por uma vez a terceira pré-eliminatória (2011/12) e por outras três ocasiões a fase de grupos da competição após ter caído da terceira pré-eliminatória da Liga dos Campeões (2014/15, 2015/16 e 2016/17).

Foram batidos recordes de golos marcados, golos sofridos e quase todos foram sob o comando de Gurbanov, o mais bem-sucedido técnico azeri de sempre, que, em novembro de 2017, acumulou a função de selecionador nacional.

2017/18 viria a ser o clímax. Pela primeira vez na sua história, o Qarabag apurou-se para os playoffs da Champions League, ao bater o Sheriff Tiraspol por 1-2 no agregado das duas mãos da terceira pré-eliminatória. Na fase seguinte, eliminou o FC Copenhaga (2-2 no agregado, beneficiando da regra dos golos fora de casa) e tornou-se na primeira equipa do Azerbaijão a ingressar na fase de grupos da prova milionária, tendo dividido grupo com Roma, Chelsea e Atlético de Madrid– arrancou dois empates inéditos frente aos colchoneros.

@Carlos Alberto Costa

Derrotado na terceira pré-eliminatória da Liga dos Campeões pelo BATE Borisov (2-1 no agregado), o Qarabag venceu, curiosamente, o Sheriff Tiraspol no play-off de acesso à fase de grupos da Liga Europa (3-1 no agregado) e garantiu a quarta presença na fase de grupos da prova, juntamente com Arsenal, Vorskla Poltava e Sporting.

Esse primeiro encontro com equipas portuguesas não seria particularmente feliz, já que o Qarabag perdeu por 2-0 em Alvalade e sofreu uma pesadíssima derrota por 1-6 em casa, frente ao Sporting de Marcel Keizer. Ficaria no último lugar desse Grupo E da Liga Europa, mas isso não impediu o sexto título consecutivo a nível doméstico.

Foi preciso que chegasse a pandemia (Covid-19) para o Qarabag não se sagrar campeão azeri. Primeiro num ano em que nem sequer foi atribuído um vencedor, em 2019/20, e depois, na época seguinte, quando o Neftchi terminou com dois pontos de vantagem no topo da tabela.

Voltariam aos títulos logo de seguida, sagrando-se campeões do Azerbaijão pela oitava e nona vez em 2022 e 2023, tornando-se, dessa forma, a equipa mais titulada na história da competição. Nesse período, estrearam-se na nova Conference League, passando a fase de grupos em temporadas consecutivas.

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