Correu pela internet a imagem de Francisco Geraldes esta quinta-feira, antes do jogo com o Valência, sentado no banco de suplentes e agarrado a um livro, enquanto, a seu lado, Matheus Pereira se entretinha a passear o polegar pelo telemóvel, de auriculares ligados. Quantos dos que estão a ler encarnariam o papel de Geraldes? E o de Matheus? Eu apontaria para 2 por cento o primeiro e 98 o segundo.
Atenção, longe de mim estar a fazer juízos de valor. Pelo contrário, é este o decurso atual da sociedade - eu mesmo estou a escrever este artigo no telemóvel, imagine... Isso não é o ponto que importa.
O que motiva esta abordagem é a postura fora da caixa de Francisco Geraldes. Acho que só uma ou outra vez falei com ele, mas sigo-o regularmente nas redes sociais e há ali qualquer coisa de diferente. Tal como no campo.
O Francisco é refém da ditadura do físico no futebol. Faltou-lhe espaço em Alvalade, depois de tanto espaço ter abrangido na equipa B. Acompanhei-o aí alguns jogos, mas foi no Algarve, na final four da Taça CTT (num nível superior), que me apercebi realmente da sua peculiar qualidade quando atrás de si tem dois médios de trabalho e raça (eram Cauê e Fernando Alexandre). Ou, por outras palavras, quando a ele lhe era dada liberdade em campo para pensar, arquitetar, construir, manipular todo o jogo da equipa. É um talento maravilhoso. Tem futebol de sobra. Futebol arrumado num livro que ainda não se leu em Alvalade. Nem vai ler.
Jorge Jesus tem a sua linhagem. Bernardo Silva bem o sabe. E não estou, de todo, a criticar o treinador do Sporting.
O futebol português tem a sua linhagem. E não estou, de todo, a condenar o estilo do nosso campeonato (isso fica para outra vez).
Simplesmente, não se coaduna com a literacia de Francisco Geraldes vê-lo assim, num banco com um livro na mão. Um menino que tem de andar de livro aberto em campo precisa de um relvado que o acolha. Há uns tempos, escrevia neste espaço que Rúben Neves padecia precisamente deste problema. O futebol português não está para rapazes de pantufas. Está para armaduras de ferro, que ricocheteem bolas, e para cavalgantes velocistas. Sempre foi um pouco assim. Há por cá doutores da bola, médicos do campo, elites da sabedoria e da criatividade. Que pena é vê-los abafados pela febre resultadista.
No Brasil, com apogeu nos anos 80, o Doutor Sócrates foi um génio que interligou o futebol e o intelectual. Brindou o Mundo com uma série de sábias declarações. Chegou a entrar em campo com uma camisola de apelo ao voto. Opinou sobre política, sociedade ou mesmo logística de estádios. E jogava... deslumbrava. Bom, não é um caso comparável (nas causas... e no físico de cada um, diga-se), mas há algo em Geraldes que me sugere o paralelo.
Impera que surja uma oportunidade para Francisco Geraldes. Temo que ela não apareça em Alvalade. Receio que seja um caso como foram Bernardo Silva ou Rúben Neves. E acho um ultraje que portugueses tão talentosos precisem de saltar a fronteira, qual tempo de ditadura, para que possam escrever livremente os seus livros, impreterivelmente bons!