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Da Bombonera, com amor
Luís Mateus

Kelvin foi um Rensenbrink feliz

2019/04/06
E3
«Da Bombonera, com amor» é uma coluna de opinião/crónica da autoria do jornalista Luís Mateus e a sequência lógica da rubrica “Era Capaz de Viver na Bombonera", publicada originalmente de 2008 a 2018, pelo mesmo autor, no jornal MaisFutebol.

É isso, acho. Kelvin já foi um Rensenbrink feliz.

Uns perguntam

Quem?

Outros resmungam

Que parvoíce!

Não sairíamos daqui toda a tarde. Todas as comparações têm esse problema: não há pessoas iguais enquanto não avançarem de vez para a clonagem, logo é preciso acrescentar

Com as devidas diferenças, claro…

Por isso, vou repetir

Kelvin já foi um Rensenbrink feliz.

Tem nome de pintor, e ficava bem, assinado em tela colorida. Também o terá sido, ao seu jeito, mas Rob Rensenbrink, a quem constantemente tiro um n e acrescento um c por estupidez que a idade já não resolve, amigo do seu amigo e, acredita-se, bom pai de família, foi o segundo melhor jogador da Holanda Mecânica dos anos 70, atrás de Johan Cruijff. Este sim, com ij pela mesma razão que o bairro de Roterdão é Feijenoord, e Van Nistelrooij e Sneijder partem do mesmo princípio que os ingleses acham difícil de entender. São, claro, outras histórias, e levam y. Ou não.

Rensenbrink, com n antes do s e sem c a anteceder o k, não era infeliz por culpa de Cruijff, embora a presença do 14 no Weltmeisterschaft de 74 o empurre para mais longe da baliza do que no Anderlecht.

Eles, lado a lado, confundiam-nos. Cabelo comprido, franzinos, elegantes. Diziam que só não era tão bom como Johan na sua própria cabeça. Dizia Mulder, antigo colega em Bruxelas, outros repetiam. Viveu na sua sombra quase sempre, menos numa única ocasião.

A infelicidade do nosso herói surge precisamente quatro anos depois, entre os papelinhos que caíam e o controlo apertado da ditadura de Videla.
Monumental de Núñez, Buenos Aires. O país prepara-se para a festa, mas o primeiro título planetário teima em confirmar-se, parece que só virá no prolongamento. Sem Cruijff e Michels, mas com Rensenbrink a comandar em campo e o austríaco Ernst Happel a partir do banco, a Laranja continua ainda bem sumarenta e eficiente na sua mecânica, e dá luta.

O prolongamento anuncia-se, mas mandam que espere à porta. É tempo de descontos ainda. Todos sabemos como o tempo pára nos momentos de suspense. Move-se tão devagar que parece uma eternidade. Se há coisa real nos filmes de Hollywood, é isso. A vida entra em super slow motion. Um minuto dura dez.

Um livre. Longe, desde o outro lado do meio-campo. A bola sai do defesa, cai na área. Passa o primeiro argentino, que percebe que erra no preciso momento em que a deixa bater. O grande Fillol antecipa tudo em pensamento. 1+1 igual a perigo. Sai dos postes. Tapa o que pode da baliza. Rensenbrink chega primeiro e toca. O guardião, centésimos de segundo atrasado, desvia a cara. Não só do eventual choque, mas do que pode vir a acontecer. Caprichosa, a bola encontra o poste. E as bancadas reencontram o movimento, os adeptos recuperam o alívio entre os papelinhos pisados.

O 2-1 a centímetros e, se bem que muitos lembram sempre o quão controlado estaria esse Mundial pela ditadura, poderia ter muito bem valido o caneco. Os custos para a Holanda serão talvez até menores do que para o próprio Rensenbrink. O golo dar-lhe-ia o título mundial sim, mas também o de melhor marcador e o de melhor jogador, que caíram para Mario Kempes no prolongamento, e eventualmente até a Bola de Ouro, ganha por Kevin Keegan, que andava a espalhar classe pelo grande Hamburgo.

O que tem Kelvin a ver com Resenbrink? Nada, ou tudo. Certamente, alguma coisa.

Nos descontos de um FC Porto-Benfica que vale indirectamente o título, passa em poucos minutos de fezada de última hora de Vítor Pereira a autêntico herói. Carrega toda a carreira num remate cruzado de pé esquerdo, que ajoelha Jesus e perdurará acompanhado pela referência ao minuto 92, em rigor 91, ligado ao resto da época dos rivais.

O golo no momento mais decisivo pouco fez pelo herói do tricampeonato portista. Equipa B no ano seguinte, empréstimo ao Palmeiras, empréstimo ao São Paulo, novo empréstimo ao Vasco da Gama, regresso em janeiro ao Dragão para rescindir em Abril.

O talento enorme de Rensenbrink acertou no ferro mais largo que encontrou em Buenos Aires, mas ainda o recordam como uma das lendas do jogo. Não das maiores, mas lenda ainda assim. Ficaremos sempre a pensar o reconhecimento a mais que teria se aquela bola tivesse entrado. 

Uma promessa brasileira com muito por cumprir fez a jogada da sua vida, conquistou um título que não parecia tão próximo quanto isso, e falhou depois a entrada na elite.

Kelvin estará sempre aí para lembrar-nos o quanto o futebol é aleatório e feito de encruzilhadas, e Rensenbrink que a diferença entre o Olimpo e apenas uma excelente carreira podem ser medidos pela largura de um poste no caminho.

Kelvin foi um Rensenbrink feliz.  

A duração da felicidade dependerá da memória de cada um.



Comentários

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motivo:
sofintas
2019-04-18 09h15m por Tarik_10
Quem nao consegue ser imparcial devia fazer uma declaraçao de interesses á partida. Se isso acontecesse era capaz de levar as pessoas a serio mas como não acontece…
É a mesma coisa nos programas de tv. Como levar a serio por exemplo o Pedro Henriques na sporttv quando da opiniao como isento? Toda a gente sabe que nao é e por isso para mim a opiniao vale zero. Aceito a opiniao de toda a gente desde que tenha alguma logica e desde que nao seja sempre no mesmo sentido. Quando alguem tem ...ler comentário completo »
SO
Tarik_10
2019-04-12 00h05m por sofintas
Bem mais rico estaria o zerozero se todos os colunistas estivessem ao (alto) nível de Luís Mateus.
Luís Mateus
2019-04-08 14h19m por Tarik_10
A dor ainda está fresca pelo que vejo caro Luís.

"da Bombonera com amor"
A sério Luís?! Da Bombonera?!

Nota-se que o ZZ está mesmo a perder qualidade quando vai buscar "comida requentada".

Em primeiro o ZZ e em segundo o Jonas. . .

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