É isso, acho. Kelvin já foi um Rensenbrink feliz.
Uns perguntam
Quem?
Outros resmungam
Que parvoíce!
Não sairíamos daqui toda a tarde. Todas as comparações têm esse problema: não há pessoas iguais enquanto não avançarem de vez para a clonagem, logo é preciso acrescentar
Com as devidas diferenças, claro…
Por isso, vou repetir
Kelvin já foi um Rensenbrink feliz.
Tem nome de pintor, e ficava bem, assinado em tela colorida. Também o terá sido, ao seu jeito, mas Rob Rensenbrink, a quem constantemente tiro um n e acrescento um c por estupidez que a idade já não resolve, amigo do seu amigo e, acredita-se, bom pai de família, foi o segundo melhor jogador da Holanda Mecânica dos anos 70, atrás de Johan Cruijff. Este sim, com ij pela mesma razão que o bairro de Roterdão é Feijenoord, e Van Nistelrooij e Sneijder partem do mesmo princípio que os ingleses acham difícil de entender. São, claro, outras histórias, e levam y. Ou não.
Rensenbrink, com n antes do s e sem c a anteceder o k, não era infeliz por culpa de Cruijff, embora a presença do 14 no Weltmeisterschaft de 74 o empurre para mais longe da baliza do que no Anderlecht.
Eles, lado a lado, confundiam-nos. Cabelo comprido, franzinos, elegantes. Diziam que só não era tão bom como Johan na sua própria cabeça. Dizia Mulder, antigo colega em Bruxelas, outros repetiam. Viveu na sua sombra quase sempre, menos numa única ocasião.
A infelicidade do nosso herói surge precisamente quatro anos depois, entre os papelinhos que caíam e o controlo apertado da ditadura de Videla.
Monumental de Núñez, Buenos Aires. O país prepara-se para a festa, mas o primeiro título planetário teima em confirmar-se, parece que só virá no prolongamento. Sem Cruijff e Michels, mas com Rensenbrink a comandar em campo e o austríaco Ernst Happel a partir do banco, a Laranja continua ainda bem sumarenta e eficiente na sua mecânica, e dá luta.
O prolongamento anuncia-se, mas mandam que espere à porta. É tempo de descontos ainda. Todos sabemos como o tempo pára nos momentos de suspense. Move-se tão devagar que parece uma eternidade. Se há coisa real nos filmes de Hollywood, é isso. A vida entra em super slow motion. Um minuto dura dez.
Um livre. Longe, desde o outro lado do meio-campo. A bola sai do defesa, cai na área. Passa o primeiro argentino, que percebe que erra no preciso momento em que a deixa bater. O grande Fillol antecipa tudo em pensamento. 1+1 igual a perigo. Sai dos postes. Tapa o que pode da baliza. Rensenbrink chega primeiro e toca. O guardião, centésimos de segundo atrasado, desvia a cara. Não só do eventual choque, mas do que pode vir a acontecer. Caprichosa, a bola encontra o poste. E as bancadas reencontram o movimento, os adeptos recuperam o alívio entre os papelinhos pisados.
O 2-1 a centímetros e, se bem que muitos lembram sempre o quão controlado estaria esse Mundial pela ditadura, poderia ter muito bem valido o caneco. Os custos para a Holanda serão talvez até menores do que para o próprio Rensenbrink. O golo dar-lhe-ia o título mundial sim, mas também o de melhor marcador e o de melhor jogador, que caíram para Mario Kempes no prolongamento, e eventualmente até a Bola de Ouro, ganha por Kevin Keegan, que andava a espalhar classe pelo grande Hamburgo.
O que tem Kelvin a ver com Resenbrink? Nada, ou tudo. Certamente, alguma coisa.
Nos descontos de um FC Porto-Benfica que vale indirectamente o título, passa em poucos minutos de fezada de última hora de Vítor Pereira a autêntico herói. Carrega toda a carreira num remate cruzado de pé esquerdo, que ajoelha Jesus e perdurará acompanhado pela referência ao minuto 92, em rigor 91, ligado ao resto da época dos rivais.
O golo no momento mais decisivo pouco fez pelo herói do tricampeonato portista. Equipa B no ano seguinte, empréstimo ao Palmeiras, empréstimo ao São Paulo, novo empréstimo ao Vasco da Gama, regresso em janeiro ao Dragão para rescindir em Abril.
O talento enorme de Rensenbrink acertou no ferro mais largo que encontrou em Buenos Aires, mas ainda o recordam como uma das lendas do jogo. Não das maiores, mas lenda ainda assim. Ficaremos sempre a pensar o reconhecimento a mais que teria se aquela bola tivesse entrado.
Uma promessa brasileira com muito por cumprir fez a jogada da sua vida, conquistou um título que não parecia tão próximo quanto isso, e falhou depois a entrada na elite.
Kelvin estará sempre aí para lembrar-nos o quanto o futebol é aleatório e feito de encruzilhadas, e Rensenbrink que a diferença entre o Olimpo e apenas uma excelente carreira podem ser medidos pela largura de um poste no caminho.
Kelvin foi um Rensenbrink feliz.
A duração da felicidade dependerá da memória de cada um.