Imagine o seguinte cenário. Você, caro leitor, é um jogador de futebol profissional que joga na Liga Portuguesa, mas sabe que o clube em que joga - um Vitória SC, por exemplo - precisa de encaixar algum dinheiro com vendas e por isso, uma vez que é um internacional e ainda jovem, acaba colocado na lista de transferíveis. Nesse momento surge uma oportunidade para sair da Europa pela primeira vez desde a adolescência, com um convite da Liga da Arábia Saudita.
Não são os cifrões que chamam, mas sim a voz de um treinador com quem já privou e com quem sabe que pode voltar a ter sucesso. Primeiro ri-se, mas depois de alguma reflexão opta por aceitar esse apelo à aventura e faz as malas para jogar uma competição (supostamente) periférica. Cinco meses depois, Cristiano Ronaldo aterra nesse mesmo país, trazendo com ele os holofotes do ocidente e promessas de um futuro glorioso para o futebol nessa fatia do Golfo Pérsico.
Foi assim o último ano de Alfa Semedo, que o relatou em primeira mão ao zerozero numa altura em que goza umas merecidas férias depois da temporada de estreia no Al Tai. À conversa com o nosso portal, o guineense relatou outras experiências, como a mudança para o Benfica, o futebol inglês e a mítica CAN.
zerozero: Foi há quase um ano que deixaste a Primeira Liga e te mudaste para a Arábia Saudita. Que tal está a correr essa experiência no Al Tai?
Alfa Semedo: A experiência em termos individuais está a correr bem, em termos coletivos também. O clube conseguiu alcançar o objetivo que era a manutenção, apesar da equipa ter qualidade para mais. Ficámos em nono. Tem sido uma experiência diferente, num campeonato diferente e uma cultura diferente, mas sempre positivo.
zz: Chegaste a começar a temporada no Vitória SC, com a qualificação europeia e a primeira jornada da Liga. De onde veio essa saída? Foi o Pepa que te «levou»?AS: Eu no início da temporada sabia que o Vitória queria vender alguns jogadores e eu estava na lista dos que podiam sair, por diversos motivos. Depois o Pepa foi para o Al Tai e foi numa conversa que tive com ele que surgiu a possibilidade. Eu no início até levei na brincadeira, mas lá fomos falando e falando... Às tantas disse-lhe «liga ao meu agente e se for uma coisa boa, vamos conversar». Começou com uma graça, mas depois...
zz: Primeiro com Pepa, que já conhecias bem, e no final da temporada também foste treinado pelo José Pedro Barreto. O quão importante foi para a adaptação?
AS: Ajudou bastante. É um mundo diferente, mas teres um treinador que já trabalhou contigo, que conheces e que te conhece, faz a diferença na adaptação. Ter o Pepa e a equipa dele ajudou-me, mas os colegas também foram top. Os árabes recebem bem os estrangeiros.
zz: «Diferente, diferente...» É uma palavra que usas muito para falar desta tua nova vida, não é? Qual foi a maior diferença que sentiste nesta mudança de realidades?
zz: Quando falamos de jogar futebol na Arábia Saudita, é como se houvesse um elefante na sala... Como viveste a chegada do Ronaldo em janeiro e toda a atenção que trouxe?
AS: Posso dizer que a chegada do Ronaldo mudou tudo. Antes de ele ir, a televisão em Portugal nem sequer passava os jogos da Arábia Saudita. É o Ronaldo, um dos melhores do Mundo...
zz: Quando chegou, ele falou muito sobre o potencial da Liga, dizendo que podia vir a ser uma das melhores do Mundo. Acreditas nisso?
AS: Do jeito que eles estão a investir, sinto que sim. Daqui a uns anos vai deixar de ser «Vou para a Arábia Saudita ganhar muito dinheiro» e passar a ser «Vou para a Arábia Saudita ganhar dinheiro a jogar num campeonato com qualidade». Agora vem Benzema, Kanté, Rúben Neves, Koulibaly e tantos mais... O campeonato cresce em qualidade e os restantes jogadores valorizam-se, o que é bom para todos.
zz: Imaginas-te a fazer parte dessa evolução da competição. Isto é, ficar lá vários anos?
AS: Tenho contrato por mais um ano e no futebol tudo pode acontecer. Não posso dizer que tenha já uma preferência entre ficar lá ou voltar para a Europa. Estou focado, mas no que vai além do meu contrato... É um logo se vê.
zz: Claro que apesar de teres ido para a Arábia Saudita com apenas 24 anos, acumulaste experiências diferentes na Europa. Qual foi a Liga em que te sentiste melhor?
AS: O Championship. Estive lá dois anos e fiz muitos jogos no Nottingham Forest e no Reading. Não podia estar aqui a dizer nenhuma outra resposta, porque foi onde joguei mais e onde vivi duas temporadas muito boas. Apesar de ser um segundo escalão, é um campeonato muito, muito bom. É um futebol físico, mas também se joga. Equipas que não só lutam, mas que sabem jogar muito bom futebol. A segunda liga inglesa é muito superior a alguns primeiros escalões.
zz: Depois desses dois anos, regressaste mais forte a Portugal...
AS: Apareceu o Vitória SC. Um grande clube, um dos maiores até. Eles quiseram-me muito e eu também achei o projeto interessante. O treinador queria-me. Uma equipa que quer a Europa iria sempre cativar-me para voltar a Portugal.
zz: Recuemos até à primeira vez que viajaste para Portugal. Como foi essa transição, em 2014, do futebol da Guiné-Bissau diretamente para os juniores do Benfica, numa das melhores escolas de futebol da Europa?
zz: Qual foi o maior desafio dessa mudança, quando ainda eras tão jovem?
AS: O desafio era estar afastado da família, da minha mãe. Não vou dizer que o lado do futebol foi fácil, obviamente que, por mais que já jogasse bem na Guiné, essa foi uma grande mudança. Mas eu já tinha tido sorte de ter apanhado em África um treinador, o Tiago [Conde], que me deu muita cultura tática e permitiu-me facilitar essa transição mais tarde.
zz: Uns anos depois, já após passagens pelo Vilafranquense e Moreirense, chegas a jogar na equipa principal do Benfica. Meia época, com 16 jogos e uma medalha de campeão. Soube a pouco?
AS: Jogar no Benfica é jogar no Benfica. Todos sabemos a grandeza do clube e eu não posso dizer que soube a pouco porque estou grato ao clube. Independentemente de tudo, é o clube que me fez jogador.
zz: Não tarda a bola volta a rolar e entras na tua segunda temporada ao serviço do Al Tai. Quais são os objetivos?
AS: O plano é tentar fazer melhor que esta temporada. Sabemos que a equipa tem qualidade para mais e por isso vamos atacar o campeonato para tentar garantir a manutenção o mais rapidamente possível e depois, a partir daí, chegar mais acima.
zz: Também é ano de CAN, e a Guiné-Bissau já está qualificada...AS: Sim, claro! Estamos apurados e ansiosos para janeiro. Já tive uma primeira oportunidade na CAN [na última edição, disputada em 2022], mas tive o azar de apanhar Covid e só fiz um jogo. Desta vez, se deus quiser, vou voltar estar nessa que é uma das melhores competições do Mundo. Nas últimas três vezes não conseguimos passar a primeira fase, por isso creio que o objetivo é isso.
zz: E olhando mais para a frente, a médio e longo-prazo, quais são os sonhos e objetivos para cumprir?
AS: Jogar na Arábia Saudita não significa ficar perdido lá. Eu sei que tenho qualidade e que nunca me vou deixar de esforçar. No dia em que sair de lá, sei que vou ter êxito. Sempre quis jogar na Premier League, tal como a maioria dos jogadores, porque é o melhor campeonato do Mundo. Se vai acontecer? Vamos ver...