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    Técnico falou com o zerozero

    João Carlos Pereira, um dos portugueses da «grandiosa» Academia do Qatar: «Há quem diga que é a melhor do mundo»

    2019/05/10 12:20
    E1

    Parte I da entrevista do zerozero a João Carlos Pereira, antigo treinador de clubes como Marinhense, Sp. Pombal, Nacional, Moreirense, Estoril e Belenenses. Atualmente desempenha funções de coordenador do treino individual da Aspire Academy, considerada uma das melhores Academias do mundo.

    Bem disposto, sorridente e com uma vontade imensa de falar de futebol. «As conversas são como as cerejas e quem gosta de falar de futebol… estica-se», disse, com uma grande dose de boa disposição, João Carlos Pereira, ele que aceitou carinhosamente o convite e falou com o zerozero a longa distância. Já lá vão oito anos sem pisar solo português, pelo menos em trabalho. Foi visto pela última vez em Belém, ao leme do Belenenses, em 2009/10. Daí partiu para o Chipre e depois para a Suíça, sem que ninguém lhe pusesse mais a vista em cima.

    «É uma versão atualizada do João Carlos Pereira que treinou em Portugal, digamos. As pessoas até já se esqueceram de mim… [risos]», afirmou, em jeito de brincadeira. Mas há um motivo «grandioso» por trás. Não tão grande como o Qatar, mas sim como a Aspire Academy, academia de formação na qual coordena «o treino individual» há seis temporadas.

    qTenho abordagens, duas ou três situações que vão demorar um pouco para serem concretizadas, mas queria voltar a Portugal. Quero voltar para Portugal
    João Carlos Pereira
    É um dos vários portugueses que trabalham no país do sol tórrido, do vasto deserto e do «tamanho do distrito de Beja» que tanta polémica tem levantado nos últimos tempos. Ainda assim, convém não medir tudo pela mesma bitola. Porque a conversa, desde o futebol de formação ao Mundial 2022, passando por Xavi e Jesualdo Ferreira, teve pano para muitas mangas e até começou com uma revelação surpreendente...

    ZEROZERO: Fala-nos desde o Qatar?

    João Carlos Pereira: Não estou no Qatar, mas estou fora de Portugal. E depois vou para a Polónia para acompanhar o Mundial sub-20.

    ZZ: Está na sexta temporada na Aspire Academy, correto?

    JCP: Exatamente. Sexta e última.

    ZZ: Então... Vai terminar esta temporada?

    JCP: Vou sair no final de junho.

    ZZ: E tem algum projeto em mente?

    JCP: Tenho abordagens, duas ou três situações que vão demorar um pouco para serem concretizadas, mas queria voltar a Portugal. Quero voltar para Portugal.

    ZZ: São muitos anos lá fora…

    JCP: Já são oito épocas a trabalhar fora do país e eu, por uma questão familiar, preciso de um outro tipo de desafio e quero ter um onde esteja mais integrado, digamos assim.

    ZZ: O que é a Aspire Academy? Parece que está muito bem cotada...

    João Carlos Pereira ao serviço do Servette, da Suíça ©Getty / EuroFootball
    JCP: É um projeto grandioso que abrange várias áreas do desporto e basicamente é uma academia de excelência para o alto rendimento. Temos alguns atletas que até já ganharam medalhas olímpicas: temos o campeão do mundo em salto em altura, por exemplo, um lote de atletas de alto rendimento e a maior parte dos desportos são individuais, mas depois temos o futebol que é o desporto onde a Academia ou o projeto investe mais recursos. Temos uma escola dentro das instalações, acreditada pelas instâncias superiores internacionais, que serve os nossos atletas estudantes e adequa-se às particularidades de cada desporto e de cada individuo.

    Isto porque alguns são mais solicitados porque participam em meetings internacionais, no que toca às equipas de futebol temos torneios internacionais no estrangeiro. Temos jogadores que por via de acordos pontuais passam temporadas em equipas de referência na Europa, com quem temos parcerias, e, nesse sentido, ou levamos professores com os atletas ou criamos um programa adequado às disponibilidades deles.

    ZZ: Portanto, é um projeto grandioso a pensar no futuro.

    JCP: Num período que vai até 30 anos. O nosso objetivo, em termos de academia, era sermos uma referência no mundo em 2020 e já o somos há dois anos. Há quem diga que somos a melhor academia do mundo. Em termos de infraestruturas, não duvido, quanto ao resto é muito difícil de quantificar, até porque estamos em clara desvantagem perante outras que já estão instaladas há muitos anos e situadas em contextos competitivos completamente diferentes. E temos poucos jogadores. Para ter uma noção, o Qatar tem à volta de 2000 e poucas licenças no total, tem o tamanho do distrito de Beja, mais ou menos, e qualquer cidade europeia tem mais jogadores do futebol do que este país inteiro. Além disso, não havia cultura desportiva há uns anos atrás, as competições locais e internas ainda são fracas, embora agora tenham dado um salto qualitativo tremendo.

    ©Arquivo pessoal
    Quando entrei, o Qatar competia contra outras seleções asiáticas e perdia praticamente com todas. Mas tudo tem vindo a mudar. A seleção sub-19 sagrou-se campeã asiática há dois anos, nas últimas três edições foi sempre até aos quartos de final, e há uns meses atrás, a seleção nacional AA venceu a Taça Asiática com o grosso de jogadores que a venceram nos sub-19. Agora, as equipas das mais distintas gerações competem contra qualquer uma europeia. Perdem, vencem, mas competem. Provavelmente até perdem mais vezes, mas estão em condições para disputar qualquer jogo. No escalão sénior, a maturidade competitiva é outra e no ranking está abaixo do lugar 100. Agora, por exemplo, a seleção sub-20 vai estar na Polónia, onde também está Portugal.

    ZZ: E o mister faz o quê?

    JCP: Sou coordenador do treino individual da academia. Temos à volta de 300 atletas, jogadores de futebol de distintas gerações e eu e a minha equipa de trabalho desenhámos um programa de desenvolvimento individual para cada um com diversas áreas de intervenção. Ou seja, além do trabalho coletivo, nós temos um trabalho paralelo de acompanhamento com treinos por setores, por posição, com programa especial de cabeceamento, visionamento de vídeos, com exercícios adequados às suas necessidades. Cada um deles tem um plano individual baseado nos seus pontos fracos, mas também trabalham nas suas potencialidades. Por exemplo, na seleção nacional temos alguns jogadores que passaram por este processo há alguns anos atrás e o trabalho continuou com outras gerações. Inicialmente foi-me proposto arrancar com este departamento, com recursos que não teria em mais nenhum lugar do mundo.

    Neste momento, a academia está a passar por uma fase de transição e esse foi um dos motivos que me levaram a sair, porque todos os jogadores que podem eventualmente jogar no Mundial [2022] já estão a trabalhar nas equipas seniores e, portanto, na minha cabeça não fazia sentido continuar. Fiz o que me foi proposto e o que for feito a partir de agora é para outras gerações e para outro Mundial.

    ZZ: É um trabalho muito meticuloso…

    ©Arquivo pessoal
    JCP: Sim… É detalhe, detalhe puro. Muita gente me pergunta: ‘Então e o futebol profissional? Não sentes saudades?’. Claro que senti saudades durante este período de tempo, embora pontualmente tenha convivido com uma geração ou outra quando havia necessidade de arranjar um treinador para participar em torneios internacionais.

    Por exemplo, o selecionador sub-19 saiu, a Federação estava em negociações com o substituto e havia a necessidade de preparar a equipa para a Taça Asiática. Durante cerca de dois meses assumi o cargo, nesse período de transição. Tenho andado envolvido na competição, mas o que a Aspire [Academy] e todos estes anos me deram foi a possibilidade de me tornar num técnico muito mais conhecedor, principalmente na cadeia toda, porque estava habituado a trabalhar com profissionais, mas agora sei o que é desenvolver um jovem jogador, desde os infantis até ao alto rendimento dos seniores. Deu-me a possibilidade de dominar o detalhe [risos]. Sou realmente um detalhista…

    ZZ: Ou seja, acaba por ser a imagem do futebol moderno.

    JCP: Isso mesmo. Todos os pormenores contam e para nós, situações como a movimentação corporal, para onde controlar, como controlar, o vir antes de receber, a superfície de contacto com que se transporta e com que se aborda o 1x1… Todos são fundamentais para a formação, mas serão ainda mais para os seniores porque na competição quem tiver mais ferramentas e quem dominar melhor a ocupação de espaços, tem uma grande vantagem. Quem assimilar melhor as zonas de ação, fora ou dentro do centro do jogo, mais capacidade terá para tomar melhores decisões. Todos estes pormenores são fundamentais.

    ZZ: A Aspire Academy alberga mais portugueses, correto?

    JCP: Sim. No scouting, no recrutamento, nos talent centres, nos feeders, nos full time… São três grupos de gerações distintas. Ou seja, os talent centres são os mais pequenos, os feeders são pré-iniciados e depois os full time são os iniciados. São apelidados de full time porque a maior parte deles está a tempo inteiro na academia. Estudam e desenvolvem a sua atividade desportiva, neste caso o futebol, a tempo inteiro e alguns deles até dormem lá, até porque temos instalações para isso.

    Um dos campos da famosa Aspire Academy, do Qatar ©Arquivo pessoal

    «No Mundial do Qatar não vai acontecer seguramente a mesma situação do Brasil [2014]»

    ZZ: Uma das questões mais polémicas dos últimos tempos prende-se com o Mundial 2022 que se vai realizar... no Qatar. De que forma está o país a preparar-se para receber uma competição tão grande?

    JCP: Cheguei numa altura em que já estavam a começar a fazer investimentos. Não ainda nos estádios, mas nas infraestruturas. O Qatar nestes últimos anos tem sido um autêntico estaleiro de obras. De um dia para o outro mudam as estradas, temos que encontrar um caminho alternativo, gruas por todo o lado… Para termos uma noção, construíram um novo porto com o intuito de ser um dos maiores a nível asiático para navios de carga, fazendo a ligação com a Europa. Para além disso, construíram um novo aeroporto que começa a competir com o do Dubai como via para a Europa e para o resto do continente asiático. Construíram também um metro, auto-estradas, vias rápidas e ainda uma cidade de raiz. E depois os estádios. Um deles está terminado, o Khalifa Stadium, e os outros estão bastante adiantados.

    Não vai acontecer seguramente a mesma situação do Brasil [Mundial 2014]. O Qatar preparou-se muito bem, estudou ao detalhe como poderia fazer um planeamento perfeito e tudo está a correr como o previsto. Vão existir grandes surpresas em termos tecnológicos nos estádios, existem alguns à beira mar e ainda ilhas artificiais que alojarão grande parte dos adeptos de outros países… Enfim, é fantástico. Quem vier para o Qatar na altura do Mundial não se vai arrepender.

    ZZ: Choveram críticas em relação ao clima e a eventuais subornos...

    João Carlos Pereira
    Belenenses
    2009/2010

    18 Jogos
    3 Vitórias
    8 Empates
    7 Derrotas

    12 Golos
    20 Golos sofridos

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    JCP: O Mundial vai ser jogado no inverno, novembro, dezembro. Por isso, o clima não vai ser um grande problema. Nessa altura estarão à volta de 20/30 graus e os estádios vão estar altamente equipados. Nós jogamos com temperaturas perto na casa dos 40 graus à noite… Agora, existem outras questões que são colaterais como a exploração da mão de obra, as questões de eventuais subornos… Esses são alguns pontos que se falam desde sempre e na Rússia existiram casos assim. O Qatar não é exceção e alguns deles nem deveriam ser assunto, como os acidentes de trabalho, até porque há uma preocupação tremenda em seguir os protocolos de segurança. Acabam por ser consequências do trabalho em si.

    ZZ: A equipa do Qatar que venceu a Taça Asiática e que vai ao Mundial é jovem e tem jogadores como o Almoez e o Akram Afif que passaram pela Aspire Academy. A conquista surpreendeu-o, já que existiam seleções teoricamente superiores?

    JCP: Não me surpreendeu. Surpreendeu-me sim a consistência e a capacidade competitiva da equipa. Nós que estamos dentro do processo avaliamos o rendimento e não os resultados e sabíamos que a seleção estava em condições para competir contra formações como o Japão, Coreia do Sul, Irão que eram tidas como as favoritas. Já em jogos frente a outras seleções se notava uma grande evolução. Como disse e bem, é uma equipa jovem e à medida quem eles ganham maturidade, crescem em todos os aspetos. O Akram Afif, que na Europa não teve o mesmo protagonismo que tem na Ásia, é realmente um jogador que faz a diferença. É um jogador do género do Neymar, que tem qualidade, talento e criatividade, mas jogar numa LaLiga ou noutro campeonato europeu com 18 anos é muito difícil. A Aspire tem parcerias com clubes de referência na Europa e que permitem o intercâmbio de jogadores. Alguns deles são mesmo propriedade da academia.

    ZZ: Um deles está na Bélgica.

    O Bayern Munique é presença assídua na Aspire Academy ©Getty / Lars Baron

    JCP: O Eupen, sim. E muitos outros, como a Cultural Leonesa, Leeds United, Real Sociedad… Chegámos a realizar um acordo pontual com a Académica, onde estiveram dois jogadores a treinar e a jogar nos juniores durante um determinado período de tempo. Tentamos encontrar contextos competitivos que contribuam para o desenvolvimento dos jogadores. É verdade, ainda assim, que eles estão habituados a um contexto cultural distinto e sentem muitas dificuldades. Essa é uma das razões para que jogadores dos 17 aos 20 anos tenham dificuldade em adaptar-se a contextos competitivos europeus. A cultura é diferente, os hábitos alimentares também e eles ficam sob stress quando vão para fora. É uma realidade, mas faz parte do crescimento deles como jogadores e homens.

    ZZ: Grande parte dos jogadores deram os primeiros pontapés na bola na Academia?

    JCP: Neste momento temos um lote de 50 jogadores que estão a ser monitorizados. Nem todos estão na seleção AA, mas jogam tanto na sub-19, sub-20, sub-23 e até na seleção olímpica. Diria que nestas equipas, 90 por cento dos jogadores são produtos da Aspire. Da equipa principal e titular, 60 ou 70 por cento são ou passaram pela academia. O [Akram] Afif é um desses exemplos, tal como o Bassam, o Abdulkarim Hassan, o Tarek… Todos eles foram meus jogadores. Grande parte da equipa que disputou a Taça Asiática teve formação na Aspire.

    ZZ: É obra…

    JCP: É um trabalho incrível. A QFA [Federação Qatari de Futebol] e a QSL [Qatar Stars League, campeonato do Qatar] têm acordos connosco. Nós fornecemos os treinadores e somos responsáveis pela formação das seleções. Neste momento, os selecionadores de todos os escalões trabalharam todos na Aspire.

    ZZ: Portanto, todo o futebol qatari passa pela Aspire?

    JCP: O futebol do Qatar passa fundamentalmente pela Aspire. Existem projetos para dar formação aos treinadores dos clubes e projetos de guarda-redes em que todos os que militam na Liga vêm treinar connosco. Foi uma intervenção grandiosa que tem por trás a visão de duas ou três pessoas, nomeadamente do Sheik Jassim, do Ivan Bravo, diretor geral, Valter Di Salvo… Eles traçaram um caminho e nós limitámo-nos a criar, organizar e estruturar tudo.

    [Veja a parte II aqui]

    Portugal
    João Carlos Pereira
    NomeJoão Carlos Serra Ferreira Pereira
    Nascimento/Idade1965-04-11(59 anos)
    Nacionalidade
    Portugal
    Portugal
    Dupla Nacionalidade
    Angola
    Angola
    FunçãoTreinador

    Fotografias(18)

    Liga 2 SABSEG: Académica x FC Porto B
    Liga 2 SABSEG: Académica x Nacional

    Comentários

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    motivo:
    Txii
    2019-05-10 16h23m por Jorusescu
    Nem me dei ao trabalho de ler a noticia depois de ter lido o titulo, mas posso estar errado, quantos jogadores de classe mundial passaram por esta "melhor academia do mundo" mesmo?
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